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O rap, os orixás, a vida: D’Ogum apresenta do ‘Banzo ao Orun’

Lucas, D’Ogum, 21 anos de São Bernardo do Campo é MC há 7 anos. O seu contato com o mundo do hip hop iniciou cedo nas ruas aos 8 anos, já enfrentando um cotidiano difícil fez perceber o quão complexo e maravilhoso seria conviver com a sua ancestralidade e o rap. Com isso apresento a vocês a minha primeira entrevista para o RND, particularmente ela é muito mágica. Não consegui tirar uma palavra sequer das respostas do Lucas pra tentar encurtar ou seja la o que fosse, o sentimento e a vontade de mostrar para o que veio torna D’Ogum pra mim, um dos artistas mais promissores e compromissado com o seu papel na cultura.

D’ogum, fala pra nós como começou a sua trajetória no rap, o que fez você ir até esse caminho?

O disco conta essa história! Começou na Av. Luis Pequini em São Bernardo do Campo quando tinha 8 anos. Naquela época eu vivenciava inúmeros quadros de violência e em meio a um desses episódios em que minha mãe sumiu numa madrugada e eu fui atrás dela, eu encontrei com uma Preta Velha na Rua que parecia saber (e sabia de fato) tudo que se passava em minha vida e toda turbulência que havia em meu peito.

… Dentre tudo que ela me disse, o que mais me recordo e o que me marcou foi a frase: “Com ferro suncê foi ferido, com ferro suncê vai voltar”

naquela época eu não tinha noção de que foi um encontro com minha própria ancestralidade, conforme fiquei mais velho esse encontro com a Preta Velha foi se apagando, justamente porque eu negava pra mim mesmo. Minha mãe era diagnosticada erroneamente com esquizofrenia, foi internada inúmeras vezes, carregava esse estigma de ser a louca, sabe? Diante desse acontecimento e de tudo que eu já vivenciava com minha mãe, eu pensei que eu era o filho da louca, que tinha a mesma doença, como muita gente já apontava, que era coisa da minha cabeça. A falta de referência histórica e identitária sobre uma perspectiva africana, uma perspectiva preta, gerou tudo isso! Fico imaginando se tanto eu, quanto minha mãe tivesse a presença do terreiro, da umbanda, do candomblé, como seria? Acredito que inúmeras violências, apagamentos e o roubo do tempo em nossas vidas seria evitado.

Quais foram os momentos mais marcantes pra você na sua trajetória?

Teve ruins e bons. Todos esses momentos me transformaram em uma pessoa imensurável. Lembro de que no Rio de Janeiro trabalhando com um Jornal autônomo sobre a luta antimanicomial, no Hotel e Spa da Loucura, no Hospital Psiquiátrico Pedro II, uma ocupação que, infelizmente, já não existe mais, eu com fome, sem dinheiro no Bolso, distante daquilo que queria pra mim e que no momento era inviável eu exercer, a profissão MC. Comecei a rimar nos vagões da SuperVia e fiz 300 reais em uma hora. A partir daquele momento eu consegui limpar uma bagunça mental, saciar a necessidade física e finalmente entender porque eu estava ali, porque estava temporariamente do que tanto amava, e que, na verdade, tudo estava co-relacionado. O jornalismo empírico que exerci na cidade do Rio de Janeiro é uma demonstração de que eu estava me engrandecendo ainda mais como MC. Jornalismo também está dentro de nossa cultura. Precisa ser valorizado e ser usado de forma inteligente e cirúrgica.

Outro momento marcante, foi quando eu já tinha voltado do Rio pra São Paulo e encontrei minhas irmãs, Sara Donato e Issa Paz (Rap Plus Size). Elas botaram vida em mim. Me ajudaram a me enxergar como realmente sou em meio a uma depressão. Elas foram as moças formosas que Maria Mulambo me disse que eu encontraria quando voltasse pra São Paulo. Tudo foi se encaixando. O ferro era o microfone. E elas foram as pessoas que me impulsionaram e juntamente após meu encontro com o asè, me ajudaram a firmar que tudo aquilo que aconteceu aos 8 anos era real. O Hip Hop é um espírito vivo! elas foram “usadas” e nem sabiam, me recepcionaram, disseram “parceiro, você é imenso, tem um propósito, tem uma missão, a casa é sua, entra!” Eu sou eternamente grato. Hoje vivenciamos o Hip Hop diariamente, partilhamos uma casa e sonhos.

Momento também importante e extremamente marcante é o lançamento desse disco. É um presente dos meus Orixás, é atemporal, um marco na história. Enfim, tenho vivenciado muitos momentos mágicos juntamente ao reencontro ancestral que é o grupo que faço parte, Projeto Preto. Já fomos a outras cidades e é incrível sentir pulsando a nossa força em conjunto.”

Em um breve momento de emoção e reflexão D’Ogum cita: (Foda essa pergunta, hein, parça? Só choros! Haha)

Da pra sentir, né? O Hip Hop é a ancestralidade viva!

Qual sua opinião sobre a cena atual do hip hop no Brasil?

Eu acredito que o Hip Hop precisa ser mais reverenciado, mais vivido, mais sentido de fato. Numa perspectiva afrocentrada, numa perspectiva em que o começo e a raiz não são esquecidos. Nossa cultura é um espírito vivo. Quantas meninas e meninos como eu ainda precisam ser alcançados? Quantas vidas podem voltar a serem vividas de fato, a vibrar em todas as instâncias? O Hip Hop é um encontro e acredito que isso vem sendo ofuscado pelo embranquecimento da nossa cultura. Esse EP que lancei tem essa missão. Vem pra firmar a essência. Quando a essência é firmada, ela é reativada e volta a brilhar forte. Nenhum meio artificial que provém desse atrofiamento que parte de uma narrativa eurocêntrica e violenta pode esconder o que é real, entende?

O que significa pra você, ser um MC?

Dentre várias coisas, pra mim é MC é um mestre – e condutor – de uma cerimônia ancestral. É requerido humildade, sensibilidade, responsabilidade, conhecimento histórico, mandinga e ginga.

Algum desses sons terá trabalho áudio visual?

Todos terão! Já lancei o primeiro capítulo, “Na Fé dos Ancestrais“. Será feito 8 capítulos áudio-visuais que formará um filme sobre o disco e que futuramente lançarei como um vídeo-álbum.

Kitty: Eu fiquei muito apaixonada com o “Do Banzo ao Orun” vi ali um pouquinho da sua vivência e dificuldades, misturado com a fé, amor e o rap… Isso pra mim é divino, e pra você Lucas, o que o lançamento representa/representou? É realmente essa a mensagem que você quer passar aos ouvintes ou temos algo a mais?

É uma perspectiva afrocentrada que bebi diretamente da fonte. É o que acredito e sinto que seja o Hip Hop de fato. Do Banzo ao Orun é atemporal por transitar entre o passado, presente e o futuro sem ordem cronológica aparente. É a minha histórica e de incontáveis pessoas pretas captada sensitivamente por D’Ogum, nome esse que me foi concedido a partir do meu reencontro com o Axé na força do Ogum Xoroque, o senhor das guerras e demandas impossíveis, que mudou a sua vida e o presenteou com esse disco.

O “Banzo” é o estado mental e espiritual melancólico refletido de forma enferma no corpo de pessoas pretas que foram escravizadas. Manifestava-se com a saudade visceral da terra natal, na aversão aos maus tratos, na privação dos próprios sentidos, da proibição de culto e ligação com seus ancestrais, e principalmente, na aversão à privação da liberdade, o que levava ao suicídio. Esse Banzo atravessou séculos e nos acompanha de uma forma diferente, mas ainda assim, de forma extremamente cruel.

Nasci na Vila São Pedro, favela de São Bernardo do Campo, e vivenciei o banzo em meio as violências, a falta de uma identidade, a falta de uma história sobre quem realmente sou, de onde vim e o que mais me torturou: Pra onde iria. A resposta sempre foi uma só, a morte precoce. Até que eu, Lucas, encontrei D’Ogum, que se tornou o meu Orun.

“Orun” na cultura iorubana e nas religiões de matrizes africanas é o “céu”, o plano espiritual, é onde estamos plenos em relação a quem somos, onde estamos conectados com nossa ancestralidade, com a nossa casa, com o nosso chão, com quem verdadeiramente somos.

Do Banzo ao Orun é essa dança secular sentida em nossas peles, que enfraquece e fortifica a nossa melanina diariamente. Sem pretensão de apontar respostas prontas, mas sim de ativar os sentidos adormecidos dentro dos nossos para que a reconexão do que já fomos, do que ainda somos e do que sempre seremos, seja novamente restabelecida, de acordo com a subjetividade e complexidade da vida de cada um.

‘Exú matou um pássaro hoje com a pedra que atirou ontem’, do Banzo ao Orun poderia ser definido por essa frase.

Kitty: Você pretende manter essa linha de mensagem? Eu acho muito importante e um grande diferencial, fazia um tempo em que não via algo parecido, o último trabalho no qual eu me apaixonei era do Ralph Mc e você chegou com uma inovação muito boa…

Com toda certeza. A essência vai continuar vibrando e se expandindo. A forma como ela irá se materializar eu não sei, rs. Assim como não sabia quando fiz esse disco. Tudo se encaixou na hora certa. O tempo da ancestralidade que transpassa por mim é outro, então não dá pra dizer ao certo como será os próximos trabalhos. Mas a essência fica! O objetivo é fazer com que pessoas pretas se vejam refletidas em mim e que isso as leve a vibrar e retomar o nosso espaço, em todos os sentidos.

Você, acha importante propagarmos a cultura da religião afro com o hip hop? Pra mim, são coisas parecidas em alguns pontos, e ambas merecem respeito… e pra você?

É de suma importância que numa cultura preta todos os aspectos, simbologias e expressões pretas sejam reverenciadas. Não faz sentido dentro de nossa própria cultura termos que esconder nosso patuá, nossas guias, esconder nosso amor pelos orixás, nkisis e voduns. Viso que a força de uma perspectiva afrocentrada sendo expressada através de minhas músicas, podem e já acessam a vida de muitas pessoas como eu. Já recebi muitas mensagens de pessoas pretas, de asè, e até mesmo pessoas que não conheciam nada a respeito, me dizendo que se viram refletidas, que precisavam muito ouvir determinada coisa, que se sentem acolhidas, respeitadas e representadas. Isso pra mim já é a mudança acontecendo. É a ancestralidade se amplificando. E sinto que é só o começo, tem muita gente de asè sentindo esse chamado dentro da nossa cultura. É a volta pra casa.

Kitty: Lucas, o Brasil é um dos países mais preconceituosos do mundo! Hoje em dia tem sido difícil resistir a todo o ódio e maldade das pessoas, você é artista, negro, candomblescista e MC, como pensa em resistir e não se afetar ao caos?

Dada a seriedade, complexidade e subjetividade das coisas, eu não tenho uma resposta pronta pra isso. Partilho muito de uma visão de que temos que trabalhar por todos os meios necessários, pela nossa própria liberdade e autonomia, assim como dizia Malcolm X. O meu trabalho é na música. É direcionar os nossos para uma reprogramação de nosso próprio DNA. Tirar a catividade de nossas entranhas, olhar pra trás e relembrarmos quem sempre fomos de fato. A mudança acontece nisso. Podia muito bem estar morto uma hora dessa, mas alguém me alcançou, pra essa pessoa me alcançar, ela se reprogramou, eu tô me reprogramando e alcançando outras pessoas, em alguma fita resulta! Talvez a gente não esteja vivo pra ver, mas a catividade não é eterna, só questão de tempo!

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Termino sem palavras, só emoção e arrepiada da cabeça aos pés com todas as respostas. Obrigada D’Ogum, o rap precisa de pessoas como você!