Dona de uma voz marcante, personalidade forte e um talento diferenciado, Tamara Franklin nasceu e cresceu em Ribeirão das Neves (região metropolitana de Belo Horizonte).
Aos 8 anos começou a escrever seus primeiros versos e não parou mais. Aos 14 anos fundou o grupo H2S2 (hip hop sobre o salto) e participou de importantes eventos e festivais musicais dentro e fora de Minas Gerais e foi a primeira mulher mineira a cantar em um dos palcos alternativos do maior festival de hip hop da América Latina, o HUTUS.
Com o videoclipe da faixa “Anônima” ganhou destaque na cena local e nacional em 2014 e em 2015 lançou seu primeiro álbum oficial de mesmo nome.
“Fugio” (Estúdio304) é o nome do disco que a rapper Tamara Franklin lançou neste 25 de agosto de 2020 — num Brasil no qual, 132 anos depois do abolição da escravatura, homens e mulheres negras seguem na mira das “balas perdidas” saídas dos fuzis policiais, da negligência das “patroas” e “patrões”, da pandemia que os vitima com especial força. Em suas dez faixas, o álbum se afirma — tal qual aquelas fugas — como ato de resistência. O princípio do aquilombamento.
“Fugio” (fugiu) era a primeira palavra de muitos dos anúncios de jornal que comunicavam a fuga de um escravo negro no Brasil do século XIX. Anúncios pagos pelos senhores, que ali ofereciam recompensas a quem recuperasse o “negro fugido” — descrito em “pernas grossas” e “pés esparramados”, como máquina, corpo desumanizado, mera força de
trabalho. Por trás da crueldade banalizada naquelas poucas palavras, se escondiam histórias de homens e mulheres que se recusavam a aceitar o papel que era reservado a eles naquele mundo. A quem exigia deles a obediência, respondiam com a fuga — ato de resistência, de heroísmo, de coragem. O princípio do aquilombamento.
A consciência da ancestralidade que se revela no título atravessa todo o disco. Tamara sabe que o chão que pisa hoje — “Fugio” é em tudo, sonoridade e texto, um fruto deste tempo, que aponta para o futuro — foi construído ao longo de séculos. É nessa história que a rapper se insere.
Trajetória faixa a faixa:
As vozes negras da Guarda de Congo feminina de Nossa Senhora do Rosário abrem o álbum, em “Procissão” — faixa que tem ainda a participação do Coral Vozes de Campanha, de Ribeirão das Neves (cidade natal de Tamara, da região metropolitana de Belo Horizonte), costurando conexões sob os versos que exorcizam “navios brancos trazendo pretos” e invocam “na marcha grave, procissão de espíritos”. No fim da gravação,
ao fundo, um cachorro late — som que carrega em si toda uma espacialidade de periferia, de terreiro, de quilombo.
A história de Tamara se insere nessa história negra que remonta à grandeza das civilizações africanas, à opressão sobre seu povo, à desobediência e à busca de reconstrução da identidade estilhaçada pelo trauma da escravidão.
O meu primeiro disco, “Anônima”, fala sobre anonimato, identidade.
Sempre tive muitos problemas para conseguir me reconhecer. Entendi que tudo isso passa pelo racismo, que sempre atravessou e vai atravessar pessoas pretas no Brasil. A luta começa pela existência, antes da resistência. A gente entender que existe e em que condições. Porque, após o horror da escravidão, a pessoa preta tem hoje no Brasil uma sensação de não-lugar. Tô aqui, mas não era pra estar, me trouxeram, e agora nem me querem tanto aqui. Mas se eu quiser voltar pra África vou encontrar o que lá? Por isso,
quando penso no congado, no Reinado de Nossa Senhora do Rosário, em todas essas tradições que estão no “Fugio”, é como se fosse uma metáfora. Como se o rap fosse eu e todos os pretos da diáspora e a gente precisasse desse autoconhecimento que tem que partir da nossa ancestralidade. É como se o Reinado, o congado, o candombe abraçassem a cultura hip hop e dissessem: “Você não tá sozinho” — Tamara Franklin
O caminho de Tamara até “Fugio” começou ainda criança, aos sete anos, quando ela ouviu pela primeira vez no rádio de sua tia e madrinha “Mágico de Oz”, dos Racionais MC’s.
“Às vezes eu fico pensando
Se deus existe mesmo, morô?
Porque meu povo já sofreu demais
E continua sofrendo até hoje” — Racionais MC’s
Os versos de Mano Brown marcaram a menina que já gostava de escrever e brincar de fazer rimas. Começou a buscar grupos de rap gospel como Apocalipse 16 e Juízo Final — sua formação é evangélica. Passou a compor seus próprios raps, formou a dupla H2S2 com a irmã Winy (hoje sua empresária, ela assina a produção executiva de “Fugio”), estreou solo com “Anônima”, conheceu a cultura do Reinado (“Foi arrebatador, teve o mesmo impacto de quando ouvi o primeiro rap”). Estavam plantadas as bases para que ela chegasse a “Fugio”.
A sonoridade do álbum, um tecido de tradição e urbanidade, foi construída no diálogo de Tamara com o produtor Chico Neves e os diretores musicais Rafael Dejero e Camilo Gan. Arregimentada por Dejero (baixo e teclados), a banda — formada ainda por Gan (percussão), Dgar Siqueira (bateria), Giuliano Coura (violão, violão 7 cordas, guitarra, guitarra portuguesa e cavaquinho) e DJ Pooh (scratches) — desenhou com a rapper a essência dos arranjos.
Neves, produtor de álbuns de Lenine, Skank e Lucas Santtana e, nos últimos anos, de artistas entre os mais celebrados da nova geração, como Julia Branco, Luiza Brina e Vovô Bebê, entrou no processo num segundo momento.
Tamara e banda já estavam há mais de um ano ensaiando as músicas, e a estética do “Fugio” já estava bem delineada. Na primeira reunião que fizemos ela me falou muito a respeito dos tambores de Reinado. Decidi que seriam os primeiros instrumentos a serem gravados, quis começar pelo que seria inicialmente uma novidade no rap. Isso foi determinante no conceito que encontrei para o disco — Chico Neves
O álbum também é marcado pelos timbres de violões que o cortam.
Os primeiros tambores que gravamos foram de “A rosa e o cravo”, e desde o início ouvia um 7 cordas tocando ali. Um dia falei isso com o Giuliano, e ele me disse que tinha um arranjo de 7 cordas para a música. Fiquei surpreso, pois nem sabia que ele tocava o instrumento. Propus que seguíssemos esse caminho no disco, deixando guitarras e distorções de lado para abrir espaço para o 7 cordas. Em cima de tudo isso, fiquei inspirado em colocar um pouco da eletrônica, pois sentia que a mistura daria um resultado inesperado, consolidando o conceito do álbum — Chico Neves
Em arranjos e discursos, “Fugio” soa coeso do início ao fim, elos de uma cadeia que amarra riquezas e perversidades (e a reação a elas) decorrentes da diáspora.
Depois do batuque de “Procissão” abrindo o caminho em versos de pergunta e resposta do congado, como “Viemos de paz ou viemos de guerra?/ Viemos de paz”. A faixa “A rosa e o cravo” sintetiza muito da potência do álbum. Estão ali o diálogo do batuque com o 7 cordas, ecoando os princípios do samba (no Rio, na Bahia, na África).
As fronteiras se estendem para a latinamérica negra na sonoridade (pontuada por sintetizadores) de “Saúde pras irmãs”, que tem as participações de Colombiana MC, Neghaum e Iza Sabino. A variação de
flows e gramáticas dos MCs reafirma a saúde da cena rap da capital mineira.
“Da cor de Deus” abre outra janela de “Fugio”, guitarra dedilhada e canto suave pra ambientação da canção de amor. Mas canção de amor preta, afetada pelo racismo, pela revolta e ódio que ele provoca, pela ancestralidade. Canção de amor que rima “TPM” com “PM”. A
relação amorosa entre duas pessoas cuja pele “tem a cor de Deus” lança uma afronta de natureza similar à da fuga do negro escravizado.
A percepção sobre o corpo da mulher negra é tratada em versos declamados em “E a Cris Vianna?”. A rapper estabelece relações entre os ataques racistas sofridos pela atriz em 2015 com o drama de Sara Baartman (africana que foi levada para a Europa no século XIX para ser exibida como aberração exatamente por seu corpo ter características diferentes da mulher branca “normal” de então). No último verso, direciona para racistas e machistas a ordem que dá título à faixa seguinte: “Encosta na parede”. A faixa é autorretrato no qual Tamara atropela com flow veloz qualquer um que atue pelo silenciamento de negros e negras.
Em “Fugio”, a canção-título, o bpm diminui, mas não a contundência. Sobre a cama climática de sabor pop (sem abrir mão dos tambores e ganzás), Tamara avança na ampliação dos limites da representatividade negra, exigindo espaços com a autoridade de quem está certo.
“Estupro” segue exigindo reparação, sob um groove originalíssimo construído em camadas de violão 7 cordas, guitarra acústica, tambores e programação eletrônica. A violência como constitutiva da fundação do país, e por isso replicada até hoje sobre as mesmas bases, contra as mesmas pessoas: “Índias e pretas te contariam com muita precisão/ Que de um estupro nasceu o Brasil/ Nossa nação”.
A morte, o luto, a serenização da relação com o fim, é essa a matéria de ”Pikena”, a faixa mais evidentemente pessoal de “Fugio” (um disco tão profundamente particular e universal). Sobre o dedilhado tranquilo do violão, Tamara canta para a irmã, que assinava Pikena (seu apelido em casa), que faleceu aos 15 anos, de uma infecção surgida a partir
da garganta. Sua mãe, Dona Beth, participa, pela primeira vez registrando sua voz em disco.
“Dona do ilê” encerra o disco ecoando umbigadas ancestrais com pés batendo com força no solo do Brasil de 2020. Celebração da potência, da beleza, da capacidade de luta e de vitória, porque como o historiador Luiz Antonio Simas costuma lembrar, citando o aforismo do compositor Beto Sem Braço, “o que espanta miséria é festa”. É exatamente
uma festa — antiga e nova como o álbum — que se ouve no fim de “Fugio”.
Confira o álbum: