Minha mãe é professora, e tipo a melhor que eu já conheci falando bem a verdade. Eu e ela não batemos em muita ideia, visão, e formas de viver e ver as coisas, o que é natural da convivência do ser humano. Só que ela é a melhor professora que já vi, e eu já tive aula com ela. Tipo, nunca vi ninguém dominar a sala de aula, todos os conceitos educacionais, teorias do Paulo Freire (que se você falar é capaz de ela negar, por conta de umas ideias mais conservadoras), e principalmente analisar a história e o lugar que cada aluno vem com tanta maestria. De conseguir ensinar individualmente cada um, ao mesmo tempo cuidando do coletivo da criançada. É incrível, como se a sala de aula fosse o trabalho artístico dela, cada turma nova um disco. É uma paixão pelo ensino, e educação de cada aluno. A mesma paixão que uso pra escrever isso, e outras ideias guardadas em meu bloco de notas que um dia solto para o mundo talvez.
Recentemente eu estava ouvindo o Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa do Emicida, e imagens do filme Vidas ao Vento de Hayao Miyazaki me vieram a cabeça. O disco é uma pintura sonora, o filme uma pintura audiovisual, juntada de quadro a quadro formando uma sequência belíssima. As duas, com uma paixão de base.
Antes de ir mais a fundo, essa não é uma crítica, uma análise e nem uma interpretação oficial das duas obras. Nunca servi pra isso, a propósito. Eu simplesmente quero falar de duas obras que me tocam, e assim formar um paralelo ou analogia entre ambas. Talvez seja uma visão menos crítica, e mais artística. Não vou falar do filme cena por cena, e nem do disco faixa por faixa.
O filme conta a história de Jiro Horikoshi, um jovem que tem o sonho de se tornar um piloto de aeronaves, mas suas deficiências o impedem disso. Em um momento, ele percebe que sua paixão pelos voos não é totalmente em vão, quando decide estudar para se tornar um engenheiro e assim construir aviões. Isso em um país imperialista, que logo entraria em guerra. No meio do caminho ele se apaixona por uma mulher chamada Naoko Satomi uma verdadeira artista. Esse é o básico do filme, já volto a falar dele.
O Emicida a trajetória já é conhecida. O cara que começou em batalhas de rima, lançou mixtapes que vendia mão a mão, e no fim chegou no topo, e gravou até para a Rockstar. Acusado de se vender por uma galera, chamado de comunista, petista por outra galera. No fim parou de batalhar contra outros rappers, e seu alvo virou maior como racistas do MBL. Construiu uma gravadora independente, vende suas roupas e agora vive no topo. Alguém que transformou sua paixão em ouro, e hoje é um dos maiores artistas do Brasil. No fim das contas, o cara que gravou a primeira mixtape cresceu, está em outro lugar, experimentou novos sons, ideias, conheceu artistas, mas… A paixão continua ali… Dessa vez, sua paixão se focando nas raízes.
Por que falei da minha mãe no primeiro parágrafo? Pelo fato do disco começar com a faixa Mãe, uma bela homenagem a Dona Jacira. Isolada, funciona tão bem, em conjunto com o resto do disco melhor ainda. É aí que começa os resgates a suas raízes, começando pela familiar, chegando a dos seus antepassados. E qual melhor forma de introduzir essa ideia do que falando sobre a pessoa que te deu a vida no momento em que nasceu?
O filme de Miyazaki introduz quem já tá acostumado a suas características de uma maneira parecida. Você já sabe que ele é fascinado por voo, logo a primeira cena de Jiro é um sonho dele nos céus. Aos poucos ele desenvolve os personagens em um ritmo calmo, sem nenhuma pressa e assim introduz as suas conhecidas mensagens anti-guerra, e feministas. Quando você começa a assistir, é como entrar num território familiar, mas reformado. Jiro tem sonhos com sua maior inspiração, Giovanni Battista Caproni, e nesses momentos tudo fica bem, o clima de guerra se vai e sobram os belos campos e planícies.
A paixão que Emicida buscou pra esse disco envolve também uma viagem pra África, terra de seus ancestrais trazidos a força por colonizadores brancos que os roubaram de tudo. A faixa Madagascar trata de seu sentimento de carinho, amor por essas raízes mais antigas, as quais colonizadores tentaram destruir, e séculos depois foram reconstruídas. Muita gente reclama pelos elementos de samba, e faixas mais cantadas do que rimadas que estão espalhadas por todo canto do disco… A música mais popular do disco talvez, Passarinhos, existe a beleza exposta dos versos, a voz da Vanessa da Mata e um sentimento de vitória. Como se ele tivesse voando pra terra de seus ancestrais, após enfrentar o racismo, a pobreza, a fome, traumas e morte. O segundo verso especialmente evidencia isso, por trás de toda sua paixão que o fez chegar até ali, o mundo ainda é feito por leis de injustos e poluição. Os sentimentos românticos de quem chegou no topo, a sequência de sonhos de Jiro do disco.
Quando escutei a faixa Chapa nas primeiras vezes, pensava que era sobre Emicida tentando se reconectar com sua quebrada, as crianças com saudade dele, a mãe e a comunidade toda. Depois percebi que era uma musica sobre alguém de sua comunidade, perdido nas drogas provavelmente, e acaba sendo uma forma de se reconectar com sua antiga quebrada da mesma forma. Em Baiana com Caetano Veloso ele se permite amar, sentir uma conexão romântica com alguém. Nas mãos de qualquer um uma love song significaria rimas vazias, superficiais e genéricas, provavelmente com metáforas do amor sendo uma droga, mas Leandro não está interessado nisso. Os vocais de Caetano complementam a canção com os versos de Emicida, o instrumental é doce, calmo. Se Madagascar era uma metáfora sobre a beleza e maravilha da terra de seus ancestrais, Baiana é um sentimento de amor romântico por alguém, de novo reforçando a humanidade.
Jiro se apaixona por uma artista. Uma mulher que ele viu uma vez, e seus caminhos se cruzaram novamente anos depois. Uma pintora, trazendo paisagens belas naqueles tempos de guerra. Jiro segue seu trabalho, construindo aviões que no fim serão usados para morte, e não para seu propósito original. O Japão passa por desastres naturais, o nacionalismo cega a população, muitos problemas estruturais. Mas são nos sonhos de Jiro, e quando está com sua amada que ele encontra conforto, um contraste entre esses tempos de guerra e caos, a razão pra viver e seguir em frente. Uma conexão com sua humanidade em tempos desumanos.
Existe um vídeo em que mostram para Miyazaki um robô capaz de criar animações praticamente perfeitas, algo que fez o diretor surtar de raiva. Qual seria a humanidade do produto criado por um robô? O sentimento por trás de cada traço, esboço e cenários desenhado? Miyazaki é um homem que não escreve o roteiro dos próprios filmes, ele vai bolando a história organicamente conforme desenha. Uma decisão controversa, podem reclamar do ritmo de algumas de suas obras, mas quer algo mais humano que isso? Você reconhece de longe temas como feminismo, ambientalismo, pacifismo em seus filmes, é inegável. Mas você também vê uma humanidade não presente em animes com mulheres de peitos enormes sexualizadas ao extremo. Uma humanidade capaz de ver o lado bom até nos vilões, onde é possível sentir um mínimo de empatia e compreensão por eles. Tudo isso em um mundo onde pessoas são desumanizadas a todo custo, pessoas marcadas como criminosas sem dignidade alguma para viver, um erro pode custar sua vida, família ou carreira. Um filme que irritou a direita que acusou Miyazaki de ser um traidor da pátria por seu conteúdo pacifista, e a esquerda por não ter retratado certos momentos da vida de Jiro.
E nesse contexto nós moramos no Brasil… A população negra ainda é marginalizada, marcada como bandidos pela polícia e pelo povo, assim como a periferia em si. Vítimas de estereótipos, racismo, enraizados numa cultura que vem sido repassada de geração em geração. Temos a homofobia, transfobia, machismo que também mata muita gente. Uma geração de pessoas mais velhas que nasceu e cresceu com esse pensamento atrasado, que precisam de diálogo para mudar e compreender. Pessoas de ponto de vistas diferentes brigando, ou melhor dizendo bolhas, gritando sem ouvir o lado do outro. A população de classe média alta e ricos zombando da mais pobre e de periferia. Religiões oprimindo outras religiões no lugar de seguir o caminho em comum de todas: a fé e compaixão. Vozes sendo ocultadas…
… E como um grito surge Boa Esperança. Uma em que parece o Emicida das batalhas retornando mais uma vez, com novos alvos: todo o sistema. Toda a estrutura racista que oprime a voz do negro, a religião africana entre tantos outros. É como um choque de realidade, em contraste com o resto do disco. Retratando as paisagens de guerra do filme de Miyazaki mas de olho no Brasil. Os estereótipos que de uma forma ou outra, você, e eu já ajudamos a propagar alguma vez sabendo ou não sendo jogados em nossa cara sobre como é ridículo. Se Madagascar era sobre a África, Boa Esperança seria uma resposta dos negros sobre os portugueses na época da escravidão…
Na qual segue pra Mandume, uma faixa longa onde Emicida fica no fundo, quieto e deixa os outros gritos ecoarem. Drik Barbosa falando sobre feminismo negro,a tacando toda a estrutura machista até dentro do rap que cala sua voz, são vários exemplos que poderia passar uma matéria inteira falando sobre, mas queria citar talvez meu verso favorito dessa década no Brasil… O de Rico Dalasam, um homem negro e gay, que talvez também seja meu artista brasileiro favorito atualmente. Um verso que usa o humor pra zombar da cara de pessoas racistas, comum tom político e também… Dançante, empolgante como se fosse não uma afronta, mas uma celebração por estar vivo quando elementos de funk tomam conta do instrumental. Em um país caótico, a voz desses artistas tomaram conta pra mandar uma mensagem sobre sua existência.
E dessa vez não será sobre o filme que falarei, e sim sobre Miyazaki em si. Um homem que está tentando se aposentar faz décadas, disse que Vidas ao Vento seria seu último filme e no fim vai fazer mais um. Alguém que na sua idade já está velho e contribuiu para o cinema mundial com clássicos. O homem que ameaçou o produtor Harvey Weinstein com uma espada quando ele queria fazer cortes em Princesa Mononoke no ocidente. É irônico que em seu último filme, após anos de mensagens ambientais o grande vilão talvez seja o próprio ambiente. Não só pela guerra, mas os desastres naturais no Japão. Miyazaki foi um homem que se recusou a pisar nos Estados Unidos quando eles estavam bombardeando o Iraque, levando sua mensagem de paz ao último nível. Que foi na contramão de toda a indústria do anime e fez obras mais sensíveis e contemplativas, que nunca se prendeu a um gênero. Que ainda pretende lançar um último filme ano que vem ou em 2021. Recebeu muitas críticas por seus posicionamentos sobre a indústria da animação, mas existe algo que demonstra paixão maior que essa? Não só pela arte, mas a humanidade em si?
Pra finalizar, minha mãe é uma mulher católica que nasceu numa cidade pequena no interior parananense quando era mais pequena ainda, se tornou professora e a paixão dela nisso é evidente quando no momento que ela pisa em sala de aula, aquilo vira uma obra de arte. Alunos de diferentes origens, criações e que tomaram destinos bem contrastantes direto quando eu encontro na rua sempre lembram dela com bons olhos. Emicida é um jovem negro que nasceu e foi criado nas periferias de São Paulo, enfrentou o racismo, a pobreza e o descaso do povo com o povo mais pobre. Por meio da rima ele subiu ao topo, e está aí se consolidando como um dos maiores nomes não só do rap nacional, como da musica brasileira ao todo. Eu sou só um maluco criado numa cidade do interior paranaense tentando levar pra frente algumas ideias que tenho, as quais fazer textos comparando rap a outras obras artísticas também faz parte. Nós três criados de origens diferentes, contextos diferentes que nos moldaram a ter pensamentos diferentes. Nós três fazemos parte de um país diverso, em questões éticas, culturais, artísticas e regionais. Que também é separado por homofobia, racismo, segregações políticas, transfobia, machismo, intolerância religiosa e brutalidade policial. Esses fatores, as épocas e pensamentos que fomos expostos e moldados nos tornam quem somos, cada um com uma paixão, semelhante ou diferente. E também temos Hayao Miyazaki, um artista e diretor japonês criado em um país imperialista, que faz parte de uma indústria de animação que vai contra todos os seus princípios. E meu propósito com isso que escrevi? Não sei, sempre falar sobre como a arte nos mantém conectados e existem semelhanças onde você menos espera. É isso, até mais