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RND Entrevista: Joca e ‘A Salvação é pelo Risco – O Show do Joca!’

Entrevista com Joca, dono de um dos melhores discos de 2019. Falamos sobre processo criativo, influências e a pandemia no contexto dos artistas independentes.

Pense: o que você estava fazendo no ano de 2018? Pelo que você estava passando? Quais eram suas emoções? Suas vivências?

Nesse mesmo ano, João Caetano, o Joca, construía e reconstruía pouco a pouco o seu disco, A Salvação é pelo Risco – O show do Joca, que foi lançado no final de 2019.

O artista mineiro radicado na região dos lagos, além de mc é produtor e percussionista. Ouvindo-o responder as perguntas, falando sobre a linha do tempo de construção do seu álbum, eu me peguei pensando sobre os meus momentos em cada época.

Capa por Manoel Manoel

É muito complexo pensar na temporalidade das coisas, porque quando escutei o disco em 2019, eu pensava no que tinha me acontecido nos anos anteriores. Nesses mesmos anos, Joca estava criando, mesmo que de forma ainda inconsciente, o disco.

Os versos que eu ouvia me remetiam a uma época que já tinha passado. Se eu tivesse ouvido esses mesmos versos em 2018, eles iriam bater de forma diferente. Além de tudo, se esse disco fosse lançado em 2018, provavelmente teria outra forma. Tudo existe no seu tempo e espaço.

Joca é um artista que brinca muito com a temporalidade em seu trabalho, isso fica expresso em suas linhas. Por exemplo, na faixa Throwback ele aborda esse ato de voltar no tempo através da imaginação, da memória. A consequência da memória é o ato de relembrar, que tem o efeito de trazer diversas sensações. Nossas memórias podem ser individuais ou coletivas, carregam passados e só podem ser mexidas no presente, no agora. A Salvação é pelo Risco tem esse caráter autobiográfico e poético, que situa o autor no tempo, ao mesmo tempo em que faz a obra ser atemporal.

Além de ter essa veia do rap, Joca é baterista da banda Almoço Nu, o que talvez explique também em partes esse viés orgânico que o projeto carrega, com essa musicalidade múltipla. As faixas carregam as influências musicais e artísticas do mineiro radicado na região do lagos, hoje morador de Niterói (terra de Gustavo Black Alien), afirmando a sua postura hip hop.

Joca é muito Hip Hop, pois as faixas, além de conterem muitas colagens, samples, sofreram uma espécie de resgate, de ressignificação ao longo do tempo. Versos soltos foram se colando e sendo colados, características intrínsecas da música rap.

Siga a entrevista logo abaixo

RND – O disco tem um conceito bem amarrado, você poderia falar sobre como foi esse processo criativo? Creio que você não tomou essa decisão da noite pro dia, mas como foi esse inicio de produção?

Joca – Então, o processo criativo do álbum realmente não foi da noite pro dia, mas o início da produção foi antes de saber que eu faria um álbum. Eu comecei a produzir espontaneamente, nas experimentações que me dava vontade de fazer, fosse com beats, com composições, com fragmentos de textos escritos, com registros da minha própria imagem e de imagens que me influenciavam. E ai o processo direcionado pro álbum veio em 2018. Por volta de 2018, eu tava num emprego, um pouco insatisfeito, faltei uma semana e comecei a resgatar todos esses registros, fragmentos de produção, e tentado organizar eles de uma maneira que fizesse sentido.

O conceito do álbum ficou bem amarrado porque como é o primeiro e tem um “quê” biográfico nele, é verossímel né, já que eu fui recortando e colando vários fragmentos de mim mesmo, da minha produção solta. E pelas referências que eu tenho em artistas como Itamar Assumpção, Black Alien e o Kanye West, que eu sempre cito quando eu vou falar do álbum, eu incorporei essas referências que eu tinha deles de construção de narrativa e fui trabalhando as sonoridades que eu fui achando que tinha a ver. Então no corpo da primeira versão do álbum, tinham menos músicas e algumas que não entraram.

Na medida em que o álbum foi se desenrolando eu fui tendo acesso a outros instrumentais de amigos, outras sugestões de colaboração, a registros também de amigos como é o caso da Ana (Ana Frango Elétrico) e também do Alceu (integrante do coletivo UjimaGang, do qual Joca também faz parte). Foi bem por ai, o processo foi muito quebrado, até o momento que eu resolvi olhar pra trás e resgatar esse material, essa produção que eu já tinha desenvolvido pontualmente a cada caso. No momento em que começou a tomar mais corpo eu tomei decisões que trouxeram mais coesão ao álbum.

RND – Por que A Salvação É Pelo Risco?

Joca – A Salvação é Pelo Risco porque o risco tem dois sentidos ai, né!? O risco que se corre e o risco da grafia, do rabisco. Então o personagem do meu álbum que é um pouco eu, um pouco personagem, um pouco Joca, um pouco João Caetano, se salva pelo risco, pois pra chegar numa situação melhor ele precisa se arriscar, ao mesmo tempo que ele é salvo pelo risco, porque é rabiscando que ele encontra essa salvação. Então eu costumo dizer que o risco que se corre é o reflexo de uma existência que se redescobre e se encontra consigo mesmo, por mais redundante que pareça, através do rabisco.

RND – Com o lançamento do disco, além de expandir a sua arte, você apareceu em quase todas as listas de melhores do ano que são consideradas importantes. Qual foi a sensação de ver seu trabalho chegando nas pessoas e nas mídias da cena?

Joca – É incrível, até porque eu recebi algumas criticas quando meu trabalho começou a chegar nesses lugares, pelo fato de não ter número suficiente pra estar nesses lugares assim. Eu acho que é muito massa ver que esse reconhecimento vem não só através dos números. Que eu entendo que sejam muito importantes, principalmente quando a gente ta falando de internet e de um tipo de música que várias pessoas tem acesso a produção ne!? Mas eu fico feliz pela galera ter me inserido nessas listas e ter visto relevância no meu trabalho porque entenderam que é um trampo que carrega uma densidade, carrega uma qualidade musical, e é isso.

O que eu queria era deixar realmente um legado, se essa for minha única chance de ter um álbum feito, eu queria ter feito a parada que mesmo não gerando um retorno em larga escala a curto prazo, que gerasse um retorno pra história da música mesmo. Acho que a galera que é sagaz como o RND, por exemplo, percebeu isso e lembrou de mim na hora de pensar o ano passado.

RND – Conte-nos como aconteceu o feat com a Ana Frango Elétrico, uma artista fora da cena do rap.

Joca – A Ana é minha amiga desde 2015, 2016, acho que foi 2015, a gente faz parte da mesma banda que é o Almoço Nu, onde ela é vocalista e eu baterista. Desde essa época a gente já troca sobre composição, troca ideia sobre linguagem, sobre música. Esse feat com ela em específico veio porque na mesma época que eu escrevi InSônia em 2016, nesse processo de ter escrito várias músicas e poesias soltas ao longo do tempo, ela tava compondo muito, pro Almoço Nu e pro trabalho solo dela, e ai tinha uma música dela chamada ‘Sônia in my mind’ que eu gostava muito. Essa música não saiu em nenhum projeto dela, também não entrou no projeto do Almoço Nu.

Em 2018, nesse momento onde eu tava resgatando essas minhas memórias pra construir o álbum, eu peguei um gravador com ela emprestado, e a partir disso eu encontrei essa musica que já me amarrava e resolvi samplear ela em InSônia, na última faixa do álbum. Pra mim fazia muito sentido porque cada um compôs sua parte, cada um fez sua música separado mas a gente tava falando de um sentimento próximo, e ao mesmo tempo em lugares opostos. O feat pra esse trampo em específico surgiu assim, mas a nossa amizade já vem de um tempo, nosso contato e nossa troca musical.

RND – O áudio no final do som A Praia tem várias camadas interessantes, qual a história por trás daquele áudio?

Joca – Esse áudio é um áudio real, o Alceu me mandou quando eu tava indo dormir e ele tava indo trabalhar. Eu trabalhava a noite e quando chegava em casa eu ficava um tempo ainda sem conseguir dormir, e ele trabalhava durante o dia, tava começando num trabalho novo, ele me mandou esse áudio no ônibus. É engraçado porque eu fiquei com uma sensação de que ele mandava aquele áudio meio que ironizando essa animação que a gente tem pra começar um dia, num trabalho que a gente tem que fazer pra sobreviver, que não é muito nossa escolha né?! Ao mesmo tempo em que ele falava pra mim, ele tava falando pra ele também, como uma injeção de ânimo que servia pros dois ali no momento. E eu automaticamente joguei esse áudio na minha pasta de rascunhos do álbum e ele acompanhou ate o final do processo, quando eu escrevi a ultima musica, que foi A Praia, eu inseri o áudio dele nela e transformei num feat.

RND – Quem era o Joca da época do sonho de cantar com o Exaltasamba?

Joca – Era um nerd, era um nerdzão, com preguiça de estudar pra virar pagodeiro, porque tem que estudar pra caralho. Um pouco excluído talvez, muito retraído, recluso, que queria de alguma forma se expressar e fazer com que sua arte chegasse pras pessoas. Ai o exalta vinha como referencial do que eu gostaria de ser, bonito, que pudesse falar de amor, talentoso, boa pinta, querido por elas e etc (risos). Mas era um muleque tímido demais pra cantar no exalta, com certeza.

RND – O que tem de Sete Lagoas e o que tem de Niterói na sua arte?

Joca – Muito do que tem de Niterói no álbum, é dessa fase mais amadurecida né mano, depois de eu ter chegado aqui. Eu vim pra Niterói com 17 anos, depois de ter terminado a escola, e tem muito sobre minha busca artística, meu processo de auto conhecimento, de entendimento, construindo minha própria vida. Então tem minhas vivencias num processo de amadurecimento, no inicio da fase adulta. O começo da sociabilidade, as memórias e os afetos que eu construí aqui, nesse momento tão decisivo que é de faculdade ou começar a trampar, começar a desenvolver a vida a partir disso.

Já Sete Lagoas é quase que um paralelo totalmente oposto porque eu passei em Niterói os últimos 5, 6 anos da minha vida, e em Sete Lagoas eu passei os 5 primeiros. Então também tem muito da relação dos primeiros contatos sociais, primeira escola que eu frequentei, os primeiros amigos, meu primeiro contato com minha família, com a comunidade. Sete Lagoas pra mim tem uma presença muito forte na questão cultural, que é a Folia de Reis, o contato com grande parte da minha família, e os amigos de infância dos meus pais e os meus, as pessoas que sempre fizeram parte da minha vida antes da minha vida acontecer assim né, então é um paralelo interessante. E o momento que eu passei entre os primeiros 5 anos da minha vida e esses últimos 5 foram todos na Região dos Lagos, que é o lugar onde acontece minha formação musical e escolar.

RND – Como essa nova pandemia influencia no trabalho do artista independente, no quesito da fazer e divulgar a arte, de trabalhar e de manter uma sanidade nesse momento?

Joca – Sobre a questão da pandemia, acho que pra todo mundo é um banho de agua fria, vem uma coisa que a gente não consegue controlar, que afeta globalmente e todo mundo tem que ressignificar a forma que troca, que trabalha, que interage, que produz. Então num primeiro momento foi um baque muito grande, porque já tinham várias coisas sendo pensadas pra esse ano, pra esse semestre, que tiveram que ser adiadas, e a gente teve que repensar e replanejar vários pontos dessa trajetória artística. Depois desse primeiro choque, acho que vem uma vontade de continuar produzindo, mas também entendendo a seriedade desse momento.

Como é o momento em que a gente ta tratando saúde, é muito importante tratar a saúde mental também né, então o que eu tenho falado pra toda galera e pra mim mesmo é que é momento de se respeitar, de não se forçar. Entender que mudou a dinâmica e a gente vai demorar um tempo ainda pra compreender como ta funcionando tudo isso. Eu venho de um processo que é muito coletivo, pra mim a produção ta associada a movimento, a deslocamento, a coletividade no sentido de encontros, colaborações. E ai a gente se depara com um momento onde as colaborações têm que serem virtuais, os encontros também, a gente não pode se movimentar tanto, e acaba ressignificando a inspiração, de onde ela vem.

RND – E como fazer essa interação com o público, que quer mais lançamentos, mais projetos, mas tem que entender também esse processo de cada artista nessa quarentena?

Joca – Nesse momento a gente vê o quanto a arte é importante, ao mesmo tempo em que ta tudo muito nebuloso sobre como a gente vai ficar, a gente percebe o quanto é importante nesse momento onde todas as pessoas estão em casa a gente consumir arte e se entender. E eu entendo essa busca do público por um retorno de produção, de trampo, a galera ta ansiosa pra ver coisas novas. Além de estar muito interessado pra saber o que vem depois desse primeiro álbum, a galera também não pode colar nos shows, então acaba que a busca vem de ta esperando uma produção nova, e eu acho muito foda. Fico feliz pela galera ta recorrendo nesse sentido, ta ansiosa pros próximos lançamentos, porque é sinal de que continuam querendo acompanhar.

A gente ta trabalhando isso, trabalhando esses lançamentos, novas formas de interagir com o público, mas dentro desse processo de se respeitar, de respeitar o momento. Como tem sempre mais uma galera envolvida que só eu no trampo, a gente busca calma, principalmente os amigos que trabalham em estúdio, seja da produção musical, seja do audiovisual. A galera acaba que nesse esquema de homeoffice ficou muito sobrecarregada e precisa muito dar o corre também pra outros projetos, que são projetos que vão garantir o retorno financeiro, o sustento, isso é completamente compreensível.

Então os lançamentos tão vindo, não no mesmo calendário de antes da pandemia. A gente ta trabalhando todo mundo aos poucos e entendendo como vai conseguir fazer isso funcionar, já que todas as pessoas que trabalham comigo são artistas independentes também e tá todo mundo tentando entender como vai continuar trabalhando no que acredita e no que precisa trabalhar nesse momento. 

RND – O disco mostra como você é um artista versátil, original, influenciado por diversos gêneros musicais. Quais são as ideias pros próximos passos, projetos futuros?

Joca – A ideia pros projetos futuros, além dos projetos colaborativos com a UjimaGang, é o EP que eu vou soltar com o Rosa Bege, que é uma banda aqui de Niterói, esse ano. Seguem ai nessa experimentação mano, talvez falando um pouco menos de mim, um pouco mais do mundo, mas que obviamente acabam sendo a mesma coisa em vários momentos, porque não tem como pensar no mundo sem pensar que eu só penso no meu ponto de vista sobre ele. Ao mesmo tempo em que não tem como pensar sobre mim sem pensar em como o mundo me atravessa. É seguir tentando encontrar essa versatilidade, essa originalidade, e sinceridade acima de tudo ne mano. A salvação é pelo risco, e o risco ta na gente ser em quem a gente é de fato e confiar em si mesmos e cair dentro, e vamo que vamo!

O disco A Salvação É Pelo Risco está disponível no youtube e nas demais plataformas de streaming. Escolha a sua preferida e corre pra ouvir o disco, se não ouviu. Pra quem já ouviu, continue ouvindo, assim você estará ajudando os artistas independentes que você gosta. Fiquem em casa, só saiam se necessário. Cuidem-se!