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Rap de Direita?

Desde o ano passado, ainda num período de pré-eleições, alguns artistas ganharam destaque pelo tipo de música que eles fazem, o chamado “rap de direita“. No início, seriam apenas uns caras utilizando da cultura hip-hop para falar alguns absurdos, mas que de certa forma não alcançariam muita gente. A maioria dos sons não chegavam a 10 mil views e o público, no geral, era o nicho de pessoas que concordavam politicamente com eles. Porém, a realidade mudou, passada as eleições, nosso querido presidente foi eleito, e com isso uma porta foi aberta para cada vez mais os movimentos reacionários crescessem e, infelizmente, no rap não foi diferente.

Atualmente, músicas de alguns desses representantes reaças alcançam 100 mil visualizações, e eles conseguiram até uma matéria em um grande veículo de comunicação da imprensa nacional. No início, ignorar parecia a decisão correta, afinal, falar sobre isso só daria mais chance para que esses sons chegassem em mais ouvidos, mas ao que tudo indica, ficar calado não resolve mais.

Eles estão ganhando os holofotes que desejam, então é nosso dever repudiar essas ideias e demonstrar o porquê delas serem erradas. Eu gostaria muito que fosse desnecessário estar fazendo está matéria, mas não teve jeito, tive que mostrar que atrás de um trabalho musical horrível, existem pessoas extremamente mal intencionadas.

De início, é necessário responder uma pergunta óbvia, “Por que o rap não pode ser de direita?“. Para entender isso, é necessário que você saiba o significado dos conceitos de “esquerda” e “direita”, numa forma ampla, além de Lula e Bozo. Precisamos levar em consideração a realidade em que nosso país está inserido, pois assim o sentido de tudo fica bem mais claro.
Numa forma bem simples, “esquerda” e “direita” são dois conceitos que surgiram lá na França, após a Revolução Francesa. Houve a formação de uma República e, onde ocorreu uma Assembleia Nacional, os representantes das camadas mais pobres da população sentaram-se à esquerda e os grandes proprietários de terra sentaram-se à direita. Naquelas circunstâncias, para as pessoas mais ricas e fortes individualmente, manter seus privilégios e em conjunto com uma fraca atuação do Estado na sociedade e na economia, era uma forma de conservar seus poderes (daí que nasce o conservadorismo da direita). Já a esquerda, o lado com menos poder político, achava sua força na coletividade como forma de alcançar melhores condições de vida.

Claro que as pautas daquela época são bem diferentes da atualidade, mas de uma forma geral, é assustador como o Brasil do século XXI está tão ruim quanto a França revolucionária.
Analisando de um jeito poético, o rap como elemento da cultura hip-hop, faz parte de uma coletividade cultural e representativa, então, de certa forma, é impossível para ele estar ligado à algo que preze mais pela individualidade acima do bem comum. Além disso, é de consenso geral que o rap prega mudanças, logo, também é impossível ele ser ligado ao conservadorismo num país onde são necessárias transformações profundas na forma com que nos organizamos socialmente.

Agora você já pode se considerar alguém minimamente esclarecido e sabe porque esses caras estão errados só em relacionar o rap com a direita. Como se não bastasse, eles ainda conseguem desprezar movimentos extremamente importantes para melhorar a realidade de várias minorias e evitar perpetuar vários preconceitos em relação a eles. Por isso vou fazer alguns apontamentos usando como base a letra de uma música desses “rappers“, que eu infelizmente escutei. A faixa em questão é a “Entre Lucros e Lacres“, do Mensageiros da Profecia.

O primeiro verso é uma grande encheção de linguiça para a parte mais trágica da letra, que é onde infelizmente está todo o estrago. O discurso na real é bem parecido entre todos esses artistas, uma tentativa de diminuir ativismo ao atacar os movimentos negro e feminista. Além de transmitir discursos rasos e sem nenhum fundamento sobre política e legalização do aborto, por exemplo.

Em certo momento do som é dito o seguinte:

“Falo mesmo, seguro os meus B.O.
Sem pedir permissão pra você
Cê fala de democracia
Só pra quem pensa igual a você

Pelo visto, quando escreveram este verso, o autor não sabia que um dos princípios da democracia é a defesa dos direitos humanos fundamentais, como as liberdades de expressão, de religião, a proteção legal, e as oportunidades de participação na vida política, econômica, e cultural da sociedade. No Brasil, uma grande parcela de minorias não tem esses direitos garantidos, fazendo com que eles tenham uma força representativa muito pequena, como as mulheres, negros e LGBT+. Discordar de discursos que preguem a defesa da vida cidadã plena desses grupos não é criar uma democracia unilateral, e sim impedir com que maiores dificuldades sejam estabelecidas para essas pessoas.

Isso já seria o bastante para ser repudiado totalmente, mas o lixo lírico não para por aí:

“O samba nasceu na senzala
Cantando a liberdade que não se cala
Já o rap nasceu abolido
Mas preferiu retornar pra senzala

Eu não sei o que queriam atingir com essa punchline, mas de qualquer forma, tem muita coisa errada nessas quatro linhas.
Levando em consideração que vivemos em uma sociedade opressora, é necessário que existam movimentos sociais que mostrem aos oprimidos que eles possuem poder político e cidadão, esse é o tal do empoderamento. O rap é um desses movimentos, e é uma ferramenta que serve como voz para muita gente. Cantar o sofrimento do negro não é retornar para a senzala, é mostrar que a escravidão deixou marcas profundas na nossa realidade. Não é o que eles chamam de vitimismo, é ter noção de mundo.
Como se não bastasse, utilizar de um momento grave como a escravidão para fazer um ataque político não é de forma nenhuma uma atitude louvável e eu nem preciso explicar o porquê.

Faixa em que o Djonga exemplifica muito bem isso que falei acima:

E a maldição de lá
Não é o cristão caucasiano
É o MC mestiço
Que pensa que é africano

Versos que deixariam qualquer professor de história muito irritado. Numa tentativa de autoafirmar seu discurso furado, eles anulam toda ancestralidade de grande parte da população brasileira. Vivemos em um país que foi colonizado e onde, historicamente, a ascendência do povo preto principalmente, foi totalmente desrespeitada. Tirar a credibilidade da vivência de alguém apenas por achar que pelo fato de ela ser “mestiça”, ela não pode discursar sobre racismo, além de uma prepotência enorme, é de um mau-caratismo imenso.

Esses foram apenas alguns exemplos do que é reproduzido nas músicas desses indivíduos. A esperança é de que eles tenham cada vez mais espaço para poder compartilhar desses ideais. A cultura hip-hop não compactua com isso, então não é mais que obrigação rechaçar e impedir que cada vez mais “rappers reacionários” surjam. Isso não é impossibilitar a voz de ninguém e sim, mostrar que tolerância tem limite e que não devemos fechar os olhos para quem deseja através do rap, fazer a manutenção de preconceitos e desigualdades.