Connect with us

Hi, what are you looking for?

Old

Ok, eu queria falar sobre Rico Dalasam e o filme Moonlight, e…

Eu tenho o costume de deixar alguns áudios no WhatsApp e mensagens que me marcaram salvas, agora de pouco eu estava ouvindo a de uma garota de uma conversa uns dois meses atrás pouco antes da gente ter eleito aquela coisa na presidência. No áudio ela tava falando sobre como as mulheres por conta de fatores como construção social desde crianças são limitadas a brincar de boneca, casinha e esses lances, e como isso pode ter matado futuras artistas, e engenheiras entre várias outras profissões. E, poucos minutos atrás uma amiga acabou de assistir Bohemian Rhapsody, e contou como chorou no filme a ponto de sentir que ela podia fazer o que quiser. Não consigo achar uma razão lógica pra isso, mas o áudio e a mensagem me fez ter inspiração para escrever esse post.

Antes de tudo, eu sou branco e heterossexual, logo não posso me aprofundar nas questões raciais e de sexualidade das obras, por obviamente não ser meu lugar de fala. Meu foco no post é falar sobre o que absorvi, e assim criar uma relação. Sabendo disso, gostaria de deixar aqui o link do canal do Caio César no Youtube  que retrata as questões das masculinidades de um homem negro.

Enfim, eu conheci o Rico Dalasam pela música “Mandume”, do Emicida e apesar do verso dele sempre ter sido meu favorito, ele passou batido por mim de início. Um dia por acaso no Youtube achei uma entrevista do Rico com o Ronald Rios, e resolvi assistir de curiosidade. As palavras dele naquela entrevista me tocaram na hora, com foco na parte de não se pertencer plenamente a uma só coisa. Esse é o link da entrevista para quem tiver curioso.

Quando terminei de assistir a entrevista, imediatamente coloquei o seu primeiro EP, o Modo Diverso e fiquei em choque. A execução das músicas era brilhante, e Rico realmente não se encaixava em nenhum rótulo ali. Eu não sou muito fã de música pop, e aquilo realmente me deu vontade de dançar, ao mesmo tempo em que ele soltava rimas num nível do Emicida. Eu já ouvi gente dizendo que ele era o nosso Frank Ocean, ou Kevin Abstract por ser um rapper LGBT, só que preciso discordar, pois o Rico é simplesmente o Rico e essa é a parte brilhante.

O filme Moonlight é o meu favorito dessa década junto com O Conto da Princesa Kaguya, e A Rede Social. Eu já estava curioso para ver esse filme antes mesmo da confusão do Óscar, e quando vi fiquei em choque de como é possível se identificar com ele.

Basicamente, o filme conta a história de Chiron um homem negro que mora em uma área pobre de Miami tomada pelo crack. Com uma mãe viciada, o filme retrata as três fases de sua vida. Começa quando Chiron era criança e perseguido pelos outros garotos por conta de seus trejeitos. Ele conhece o traficante de crack Juan, que age como uma figura paterna para o garoto, aconselhando em relação a sua sexualidade e oferecendo abrigo para se proteger das outras crianças. Quando adolescente, sua sexualidade se desenvolve assim como sua atração por um amigo de infância, e problemas como o bullying só pioram. E por fim, quando adulto Chiron se torna um traficante vivendo em uma máscara criada por traumas do passado.

A razão de eu ter falado do áudio no whatsapp no primeiro parágrafo é por conta desse sufoco que muitas pessoas sentem, no caso ela me falou de como a construção social, o lance patriarcal impede muitas mulheres de serem quem elas são realmente, e as sufocam. Já o lance da masculinidade tóxica impede muitos homens de serem quem eles são. Isso vai desde o clássico homem não pode chorar, tem que ser bruto, em alguns casos se vestir como ”homem” que as vezes é tipo um cantor de sertanejo universitário (o que eu sempre achei estranho, principalmente com as calças que apertam o… Ok, parei por aqui) e não poder chamar outro cara de bonito por medo de ser ”gay”. Isso sem contar casos mais absurdos, um tempo atrás já vi caras me falando que não conseguiam ouvir Frank Ocean apesar da música ser boa, pelo simples fato de ele falar sobre amar outros homens, como se aquilo botasse a masculinidade dele em cheque. Além de óbvio, caras que não limpam nem a bunda devido ao medo de sua masculinidade ficar em cheque.

Por um bom tempo, especialmente na minha adolescência eu me comportava de maneira extremamente homofóbica. Eu queria provar para todo mundo que era mais ”másculo” que todos, e aquilo foi se acumulando e não preciso falar mais nada exceto que acabei absorvendo ideias bem tóxicas. Eu tentava me justificar com ”nada contra, só não quero na minha frente” mas na raiz do negócio tinha preconceito não importava a justificativa. Eu me lembro que na época eu tinha dado chilique por uma cena House of Cards, onde o personagem do Kevin Spacey (fuck Kevin Spacey, a propósito) beijava outro homem, e era só isso. É estranho olhar para trás agora, e ver que eu nutria esse tipo de sentimento. As pessoas falam que eu me desconstruí, e eu honestamente não sei o que essa palavra significa, e vendo o tanto de esquerdomacho que usa esse termo para se descrever, prefiro ficar longe desse rótulo… No entanto, foi um questionamento e choque de realidade de tipo… Qual a razão de tudo isso? E obras como a música de Frank Ocean, filmes como Brokeback Mountain e o próprio Moonlight que moldaram minha cabeça para ficar cada vez mais longe desse sentimento tóxico.

Voltando para a música do Rico, eu sempre falo que sou fã de música que faz você se sentir ”livre” de certa forma. Seja o Kanye vulnerável em 808s & Heartbreaks, toda a loucura do Yeezus ou o mais introspectivo em musicas como Saint Pablo. O Frank Ocean mais sensível de Blonde, ou o politizado de músicas como Crack Rock, We All Try. O Don L encarando seus demônios do passado em RPA. Poderia passar um tempo citando todos, mas Rico tem um diferencial da maioria. O clima de sua música é mais festivo, até quando ele está soltando rimas críticas. É o tipo de música que tu pode colocar em uma festa que todo mundo vai dançar, e parar para ouvir em casa no seu quarto e absorver umas verdades. Esses contrastes complementam um ao outro, e é como Rico disse, ele não pertence a nada totalmente. Se o Chiron é um homem negro e gay nos Estados Unidos sendo sufocado por vários fatores, Rico é livre e inspira todos que ouvem sua música a serem livres. Riquissima que junto de Feel The Love do Kids See Ghosts é a música que eu mais escuto na minha cabeça quando saio fazer algo (eu não uso fone na rua, me sinto estranho com eles).

Uma entrevista recente do Jay Z no programa do David Letterman fala sobre seu relacionamento com a Beyoncé. Nela, ele conta sobre como a traição veio de fatores do passado, como o  ambiente em que foi criado que exigia dele ”ser um homem”, de como não podia chorar, e isso acabou afetando a forma como ele via as mulheres e como consequência quase arruinou seu casamento. Essa mesma ideia sobre ser ”homem” foi o que sufocou Chiron no filme, a ponto de reprimir sua sexualidade, seus gostos pela dança, personalidade, e fez ele vestir a máscara de um traficante ”machão” ouvindo Goodie Mob em seu carro. (gosto excelente, aliás)

E além dos exemplos acima que eu mencionei… Quantos caras que hoje na faixa dos 40-50 precisam se dopar de remédios para dormir por conta de coisas reprimidas no passado quando não podiam chorar? Isso não justifica traição de forma alguma, mas usando o exemplo do Jay Z mesmo, quantos caras  não desenvolveram essa ideia de que ”não pode recusar” sexo com nenhuma garota, especialmente perto dos amigos devido ao medo de ser visto como ”gay”?  Quantos caras héteros se sentem sufocados e as vezes até absorvendo ideias tóxicas por não ser ”másculo” o suficiente, não podem se expressar usando roupas mais ”chamativas” ou até mesmo fora do padrão normal por medo de ter sua ”masculinidade questionada”? Homens trans tendo que usar a máscara de garota por medo de não serem aceitos pela família, amigos, ou até mesmo de apanhar na rua. Gays com medo de sair do armário por conta de amigos, familiares, homofóbicos, serem considerados aberração as vezes por religiosos extremistas. Essas são as máscaras criadas todos os dias, desde a infância, o ambiente que a gente vive, companhias e tudo. A máscara que Chiron teve medo de deixar cair quando teve sua primeira experiência sexual, e que acabou vestindo totalmente ao virar adulto… Que por fim, uma hora cai novamente, e ele finalmente pode ser quem realmente é.

Em uma época onde temos presidentes que reforçam esse tipo de comportamento (ok não vou falar de política aqui…) é importante consumir artistas como Earl Sweatshirt, Kid Cudi, Tyler The Creator (em seu recente Flower Boy) lá fora explorando essa fragilidade como homem em relação a saúde mental, sexualidade, entre outras coisas. Artistas como Raphael WarlockLuiz Lins explorando esse mesmo tipo de sensibilidade aqui no Brasil… E olha, eu sei que tem muita gente que eu poderia citar aqui, mas preciso seguir em frente. O fato de termos tantos artistas tanto aqui como lá fora, mostra a evolução do hiphop em relação a saúde mental e até sobre o que significa ”ser um homem” quando algumas décadas atrás, músicas estilo Rock Bottom  do Eminem e Suicidal Thoughts do Big não eram tão comuns como hoje. O fato do próprio Jay Z em seu 4:44 ser tão introspectivo, em relação a suas falhas como marido e pai mostram essa mudança gradual de comportamento. E para terminar esse parágrafo ainda falando do Hova, ele ter colocado sua mãe se assumindo lésbica em uma das músicas mostram que o homem cresceu muito desde a época em que usava f-words para atacar o Nas em Takeover

… E por fim, nós temos artistas como o Rico Dalasam, com sua música festiva que assim como as outras faz a gente se sentir livre e solto… Um homem que não pertence totalmente a nada, que jogou fora suas máscaras e simplesmente é quem é. Apesar de eu não ter ouvido muito o seu EP Balanga Raba, pois achei pop demais para meu gosto, ele ter feito aquilo aumentou minha admiração. Rico é livre para fazer o que ele acha certo e melhor, um dia talvez ele lance um disco nada comercial, ou não, talvez invista em um gênero novo. É imprevisível, e isso que o torna tão humano.

Sem máscaras, só o amor e a arte. O fato do filme Moonlight, e a música de Rico Dalasam não poderiam ser mais diferentes, e é por isso que se complementam tão bem. E também, se você absorve ambas, é o que torna tão libertadoras.