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O poeta mostra seu olhar sobre a cidade que tanto ama odiar…

Há muitos anos, principalmente quando começou a circular fazendo poesia, Victor Rodrigues tem pensado sobre a experiência de morar em São Paulo. Nascido e crescido na periferia da cidade, na ZL, até seus 20 anos conhecia muito pouco da metrópole. Por muito tempo, limitou sua vida ao “seu lugar”. Aprendeu a andar na Paulista aos 20. Pisou pela primeira vez na Vila Madalena aos 22. E, nessas andanças, reconheceu-se em outros lugares também. Na sujeira da República, das galerias, nos botecos do Bixiga, no Glicério. Pegou na Zona Sul todos os ônibus e trens que ouvia nas músicas do Racionais. Conheceu Pirituba, Cachoeirinha, Brasilândia. A própria ZL como um todo.

“Essa cidade é uma droga. Quanto mais conheço, mais quero ir embora. É tóxica, bruta, machuca. Dá tristeza, stress, depressão. É o mal do século. Mas quanto mais conheço, mais sou ela e mais quero ser. Os encontros. Os riscos. Não tenho orgulho nenhum de morar aqui. Não mesmo. Queria ter nascido no mato. Mas já nasci preso”, diz o poeta.

Depois de gastar boas horas cruzando – e vivendo – a Cidade Cinza, Victor transformou todo esse sentimento em poesia… e em imagens.

Victor Rodrigues e Cidade Linda” é a mais recente produção do poeta. Artista do spoken word entre saraus, slams e intervenções, mostra mais uma vez sua disposição em explorar as linguagens e formatos que a poesia proporciona.

Nesse videoclipe, produzido por Vras77 e Anna Bitelli e trilha sonora de Alexandre Moraes, o artista expõe sua relação com a cidade maldita onde cresceu e construiu sua poesia, tão caótica e clichê quanto. O texto original foi publicado em 2014 no seu livro “Aprender Menino“, último volume de três do processo de aprendizagem iniciado em 2012 com “Praga de Poeta“.

“Escrevi este texto há alguns anos. Já disse, odeio esse lugar. Mas foi esse lugar que me construiu. Foi com essas pessoas que atiram umas nas outras que convivi a vida inteira. Infelizmente eu sou isso também. Ando tentando mirar melhor, mas tem espelho e câmera em todo lugar. O poema é um respiro olhando para isso. Vou chorar a cidade até a última garoa. Mas não vou chorar quieto. Pelo menos enquanto achar que ela ainda existe”, completa o poeta.

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Não posso nem pensar
em te perder de vista
nem consigo imaginar
outra em seu lugar

preciso desses olhos secos
da garganta rasgada
das veias poluídas
sua estupidez que me apalpa
com esse toque de muitas mãos
que pede mas não quer
e um jeitinho de nunca dar

logo você
que não deseja e seduz mesmo assim
abre caminhos pra mim
como se fosse carinhar
como se eu pudesse querer
depois me joga pras beiradas
tentando esquecer
me provoca me sufoca
quando saio pra te ver
você que nunca me chama

está sempre atrasada

dorme um sono
acumulado e descoberto
pesado como seu concreto
não quer levantar da cama
sonha ser postal
e acorda de ressaca
vomitando fumaça
nos pés do policial

você é um boquete
às três da tarde
no verde da praça
a carteira a carreira
o vermelho no pelo

é tudo aquilo
que tenta esconder nos seus bueiros
tem também essa graça
tem também esse cheiro

uma pilha de corpos
manda homens e mulheres à guerra
que não voltam nem lutam
crianças são fruto bruto
duras feito pedra
chutadas feito lata
animais que te brotam do chão
disputam seus espaços tapa a tapa

você é meu quintal
e suas folhas caem de tédio

você todinha
é meu suicídio do alto do prédio

esse ir e vir de se perder
uma paisagem que não me olha

esse evangelho de placas
na entrada do paraíso a catraca
e um céu disputado que já não cabe oração
sem santa que se empreste
sem santo que se passe
nem reza que se preze
sem quem faça ou escute

estômagos roncando
junto aos motores
a sinfonia estridente
o assovio de uma boca sem dente
o berro do corre
o canto da sereia que afoga nos córregos
anúncios de promoção
cadeados e correntes

você não consegue parar
falta perna pra te alcançar
e chão pra te suportar

você é uma fila
que ninguém sabe onde vai dar

sei que no fundo queria estar sozinha

não lembro de te ver sorrir
não sei se sou feliz
algo diz que devo ficar
você diz que devo partir

mas eu perdoo seus golpes
eu recolho seus cacos
eu escuto seus sons

você minha pausa
você minha canção
allegro ma non troppo
nego mas não saio
pago o preço todo
pra te ter por perto
por costume ou prazer
e odeio como poucos
pois pareço com você

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