Escrever é um ato que requer muita responsabilidade. Principalmente quando é feito no sentido de apreciar um trabalho artístico relevante e feito com o máximo da capacidade humana de transformar sentimentos em expressão da realidade vivida por alguém.
Há muito poder nas palavras e temos o privilégio de dispor delas para transfererir nossas percepções e ideias. Este processo nasce das nossas perspectivas, que muitas vezes são influenciadas pela expectativa alheia, e é concebido em sua forma final através da arte. Com isso botamos em ação nossa necessidade de ser ouvido e de pertencer, que entram em consonância com a identificação.
De alguma maneira em todas as interpretações possíveis, sobre isso é “O.N.F.K” de Amiri, um dos melhores lançamentos de 2019 e eleito sétimo melhor álbum do ano que passou, aqui no RND. Apesar de ser quase uma unanimidade quando trata-se de lírica na cena do rap nacional, este é o primeiro grande trabalho do MC, após o lançamentos de diversos projetos menores, porém grandiosos em seus propósitos, como o clássico EP, “Êta, Porra” (lançado em 2012). Com uma qualidade inquestionável nas rimas, Amiri é um dos principais representantes da cultura hip-hop em todos os seus principais aspectos. Não apenas isso, em seu último trabalho, o rapper é uma força da natureza, ao representar seu cotidiano e realidade de uma maneira muito particular. Apresentando do início ao fim das faixas, uma carga política muito forte, Amiri não deixa de levar sua arte no caminho que deseja, fazendo-o ser ouvido e compreendido de forma exata e afiada, assim como suas rimas.
A concisão do artista não impede que as 10 faixas integrantes do trabalho não possuem um conceito que as une e cria uma ambientação e estética próprias. Devemos levar em consideração que apesar do MC manter-se como um nome inquestionável dentro do rap nacional, sendo um dos melhores em atividade, este é a primeira oportunidade que ele tem de dar a luz a um trampo dessa magnitude. Então, “O.N.F.K” mais do que uma coletânea de grandes rimas e protestos, também é uma apresentação e um belo cartão de visita a um novo público que talvez não conheça o grande artista que aqui falamos.
Antes mesmo de sua audição, o álbum já nos traz um questionamento, afinal qual o significado de “O.N.F.K“?
A sigla trata-se de um provérbio da filosofia africana desenvolvida pelos Akan, “Odo Nniew Fie Kwan” que em uma tradução livre significa “o amor nunca erra o caminho de casa“.
“Não chore minha ida, não sinta pena
Deixe a verdade cumprir seu papel
Eu desisto de existir
Que Deus me perdoe, que o amor me perdoe
Que seu amor me leve de volta pra casa” (Se Eu Morresse Hoje)
Os Akan são um grupo cultural natural de Gana, Costa do Marfim e no Togo, países do oeste africano, que transmitem diversos conceitos através de uma simbologia própria. A utilização destes símbolos, que representam ditados ou provérbios, nasce da experiência de vida dos Akan e estão enraizados em seu cotidiano. O conjunto deles, chamados adinkra, formam um sistema de preservação e transmissão dos valores acumulados pelos Akan. Este processo seria uma maneira de transmitir o conhecimento e a própria história deste grupo através das gerações. Desta maneira sua ancestralidade e identidade permanecem viva com o passar dos tempos.
“O.N.F.K” funciona desta forma por tratar-se de um registro não só da história do Amiri, mas também da realidade de todo jovem negro no Brasil. Claro que existem suas particularidades e peculiaridades, por tratar-se de uma manifestação pessoal, porém o álbum é uma ponte para a identificação sendo uma fonte de representação de um grupo. Todo o confronto com o racismo e a perspectiva da negritude com que esperamos em um trampo de rap estão presentes, contudo, ele se destaca justamente pelo caminho que adota para contar suas histórias. Como dito pelo ditado que intitula o álbum, o amor aponta o caminho de casa e é através de uma narrativa de afeto e autoestima que Amiri se coloca no centro, como alguém que existe e possui uma participação relevante na vida de seus iguais. Como mencionado, tudo que nossa expectativa cria por um rap, está aqui presente, entretanto, Amiri quebra essa pré noção, ao nos dar uma narrativa que demonstra que a existência vai muito além da dor e sofrimento, sem deixar de ser realista, forte e marcante.
Ao contrário do que pensamos, essa sensibilidade para compreender todos os aspectos da existência é mais comum do que parece e está fortemente presente em várias manifestações culturais. O historiador inglês Edward Palmer Thompson é um dos mais importantes autores no estudos dos costumes e culturas dos trabalhadores europeus contemporâneos a Revolução Industrial. Além de ser um dos pioneiros no estudo que chamamos de “história vista pelos de baixo”, que buscavam atentar-se a buscar o protagonismo histórico de grupos sociais que normalmente não eram referenciados em diversos estudos acadêmicos.
Segundo Thompson, algumas noções da vida social são internalizadas por determinadas minorias, e aspectos como consciência de classe e a relação com o trabalho, são perfeitamente percebidas por esses grupos que acabam buscando formas de viver da melhor maneira possível frente a esses atravessamentos. O que acaba sendo percebido em suas manifestações artísticas, culturais e em seus costumes, mostrando assim a capacidade dos povos de assumirem o controle e serem agentes ativos da história e não apenas peças de um jogo.
Mesmo apresentando-se em contextos completamente diferentes os trabalhadores europeus estudados por Thompson, os Akan e o Amiri, sabem do valor de suas vivências e cultura. O que os fazem ir além do que o mundo a sua volta coloca como pertencente a eles.
“Eu acordei de um pesadelo onde eu tentava torrar o desespero
Pensei: Só vou parar quando ficar fartode orar de joelhos
Mas eu caí no sono de novo e acordei rodeado de vencedores” (O.N.F.K)
O caminho de volta para casa é feito através do amor e da autoestima que Amiri encontra em si, para deixar para trás as mazelas que viveu e olhar para frente. Ele sabe de sua capacidade como artista, ao mesmo tempo que sabe das dificuldades que nascem no contexto de vida que ele está inserido. Porém, isso não o limita, pelo contrário, faz com que a força infinita de suas rimas cheguem da forma mais variada possível no produto final, que são as 10 boas músicas de seu álbum.
Amiri respeita sua ancestralidade, sua realidade e sua cultura, ao saber de sua força e do que é necessário fazer para não esquecê-la.