Há cerca de um ano atrás eu me encontrava escrevendo sobre o “Good Smell“, trampo do niLL lançado em 2018, e falava sobre como ele conseguia traçar um paralelo entre o seu álbum “Regina” e o lançamento da época. Apresentei minha visão sobre como o MC construía através de sua vivência, capítulos de uma história muito íntima e minimalista, permeados por sentimentos como amor e saudade. Tudo feito de forma que soasse bem espontânea, recheado de experimentação e com uma baita ambientação estética com o uso do lo-fi e vapporwave. Agora, em 2019, niLL chega com talvez seu trabalho definitivo em que ele consegue resumir em 12 faixas, a envergadura de um artista infinito, que viaja o tempo de diversas formas em suas criações.
“Lógos“, lançado no último dia 22 de agosto, é a mais nova temporada que niLL nos apresenta através de sua vida e produção artística. Mesmo sendo ator principal de sua própria história, nesse novo álbum ele vem cercado de “coadjuvantes” que dividem a tarefa de dar luz a uma obra tão incrível. Nomes como BK, Callíster, ManoWill, Nave e Tan Beats, participam dessa viagem conceitual e niLL, como um bom personagem de anime faria, soube muito bem trabalhar em equipe. Mesmo com todas as colaborações, tanto cantando quanto produzindo, o MC de Jundiaí soube muito bem fazer algo que tivesse sua identidade e marca.
Tudo isso fica bem evidente quanto analisamos o nome e capa do álbum, produzida pelo ilustrador Wagner Loud.
“Lógos” vem do grego e seu significado mais puro é “discurso“, algo que para um rapper é extremamente relevante. Na Grécia Antiga, uma série de filósofos chamados de pré – socráticos adotaram esse conceito como um explicação do mundo que os cercava. Era uma exposição racional onde suas visões de mundo eram compartilhadas de forma argumentativa, fugindo dos mitos que eram as mais comuns formas de explicar a sociedade e a vida até então. Além disso, o Lógos é uma maneira de compreender que a existência possui um sentido e a vivência humana é capaz de compreende-lo e representa-lo, o que casa perfeitamente com o que niLL faz.
Essa idéia de um discurso racional era algo bem disruptivo na época desses filósofos, fugia de um padrão estabelecido há centena de anos pela humanidade e escolhia um caminho mais difícil e menos simplista para produzir conhecimento. A capa do álbum seria a representação visual de um momento de desprendimento e revolução como este, onde niLL foge de amarras em busca do que ele realmente quer, como é exposto logo na primeira faixa, homônima ao disco.
“Faz parte de um grande plano eu sair daqui
Nem montanhas, nem oceanos vão nos dividir
Nós somos como fogo, e se o vento apagar?
O importante é: não deixei de tentar”
(Lógos – niLL)
Adotar um direcionamento, posicionar-se e fazer disso uma filosofia de vida é algo bem complicado. Porém, niLL encara isso como uma ferramenta para seu próprio crescimento, como pessoa e artista. Tanto em letra quanto em produção, ele usa o que já faz parte de sua identidade, para gerar algo totalmente novo, mas que não foge da sua concepção do que é ser artista ou de ter as rédeas de sua própria criação, que é um assunto recorrente em suas músicas.
A relação com a tecnologia por exemplo, que vem sendo apresentada desde “Regina”, ganha uma forma quase corpórea em faixas como “Bullet’s” e “Siri“. niLL soa como um fruto de sua própria realidade, e diferente de rappers que parecem abandonar certos conceitos após trata-los em suas canções, o MC só faz amadurecer a forma com que encara o que está a sua volta.
“Siri, eu não quero recomendações
Essas coisa que ‘cê me mostra muda minhas canções
Meu mundo é repartido em dois
‘Cê já sabe o que iremos assistir depois”
(Siri – niLL)
Esse crescimento e noção de que certos aspectos da sociedade sempre vão estar presentes na nossa vida, transforma a forma com que niLL encara o amor por exemplo. Sempre com uma visão bem influenciada pelo conceito de pós-modernidade, dessa vez o relacionamento aqui ganha uma forma um pouco amadurecida e mais palpável. Os problemas já saem um pouco do campo virtual e aqui já vemos duas vidas que tentam andar e conviver juntas.
“Bolei um plano pra depois
Comprar a cama à vista, parcelar a TV em dois
Eu vou querer uma arara
Tudo bem deixar meu tênis em qualquer canto da sala?
Acho que não, né?” (Mulher do Futuro só Compra Online)
A valorização do cotidiano não diminuiu a importância dos acontecimentos retratados, na verdade, só demonstra como qualquer construção importante é baseada em pequenos elementos que juntos criam algo incrível.
O próprio niLL é a personificação dessa ideia. Numa realidade onde só o “novo” existe e o streaming cada vez mais te obrigar a olhar pro quantitativo que sua arte atraí, alguém que consegue trazer pra si a leveza de produzir a vida real na música, é muito corajoso.
E a existência nasce a partir de ciclos e tratar sobre isso requer não repetir assuntos, mas encara-los com outros pontos de vista e aborda – los com outras roupagens. O niLL dos outros trabalhos está presente em “Lógos“, assim também como o do presente, fazendo dele esse viajante do tempo que faz esse trabalho atemporal.
Valorizando o ontem e o agora, ele nos apresenta uma nova temporada que com certeza deixaria Regina muito orgulhosa.