Enfim, mais um post aqui no RND fazendo analogias entre discos e outras obras artísticas. Para quem não sabe, eu pego obras que me chamam a atenção e tento expressar aquilo que absorvi de ambas. Não é uma crítica, ou uma interpretação ”oficial”. É uma expressão de sentimentos e ideias.
Quando eu era mais novo, lá por 2014 e 2015 eu estava fascinado em Mad Men, série da AMC com Jon Hamm ambientada nos anos 60. A ironia é que na época, eu considerava Don Draper o protagonista da série, um exemplo de homem. Um publicitário rico, bem sucedido e cheio de atitude. Ele tinha uma esposa bonita, diversas amantes e um carisma inegável. Na época eu achava que Mad Men era uma série que exaltava o sonho capitalista americano da melhor forma… Minha mente juvenil que tinha sofrido lavagem reacionária não podia estar mais errado, ainda bem.
Ontem eu me peguei ouvindo o “Roteiro Para Aïnouz, Vol. 3” de Don L, e no momento que ele fala em ”Eu Não Te Amo” sobre Don Corleone, Beira-Mar entre tantos outros nomes, algo veio na minha cabeça. Eu pensei em fazer uma analogia entre o disco e Walter White, Tony Soprano, e até mesmo com Bladerunner, nenhuma ideia fechou. Então, na aba de recomendados no Youtube surgiu um vídeo sobre Mad Men, e aí achei o ideal.
Primeiro de tudo, Don L que me perdoe por compará-lo com Don Draper, ambos são totalmente opostos. Enquanto Don L é uma pessoa admirável, Don Draper é uma pessoa desprezível. Don L é comunista assumido, Draper um publicitário que explora sentimentos e ideais das pessoas para transformar em mercadoria. Don L em “Mexe pra Cam” crítica o revenge porn, Draper trai sua esposa sempre que possível. Mas, é justamente por isso que eu creio ser fascinante escrever sobre os dois.
Uma das coisas que mais me deixou intrigado em RPA ontem, que não tinha percebido, é como o disco é de certa forma contido. É como se o disco fosse ambientado em um quarto pequeno e isolado, e lá Don L começa a contar suas histórias do passado e amadurecimento. Eu não diria minimalista, não de uma forma igual “Blonde” de Frank Ocean ou “Yeezus“, mas íntimo, como “Flower Boy” do Tyler. Em ”Eu Não Te Amo”, a faixa que abre o disco, eu não sei dizer se Don L está fazendo uma metáfora sobre o rap game, falando de uma pessoa real, ou ambos. O que me chamou a atenção é que ali ele é um cara mais velho, experiente no jogo, já Diomedes Chinaski entra ali com uma energia mais jovem, criando esse contraste.
Voltando a falar um pouco de Mad Men, ela surgiu na época em que Família Soprano tinha terminado, e o ”anti-herói” na TV entraria em auge. Pouco tempo depois surgiriam Walter White, Jax Teller entre muitos outros personagens com a moralidade ambígua. Mais para frente, Game of Thrones surgiria na época em que era vendida como uma espécie de “Terra-Média encontra Sopranos”. No meio disso tudo temos Don Draper, protagonista de uma série sobre… Publicidade, ao menos é o que aparenta ser no começo.
Mad Men percorre os anos 60 inteiro ao longo de suas 7 temporadas, assim a crise dos mísseis em cuba, assassinato de Kennedy, a luta pelos direitos civis, entre vários outros eventos são retratados como pano de fundo. É nesse ambiente que habita Don Draper, veterano da Guerra da Coreia, homem casado e com uma bela família. Ele tem um passado misterioso que ele tenta enterrar e fugir a todo custo, e é basicamente isso a premissa básica. Conforme os episódios a gente vai desvendando o passado de Don, entendendo a razão de ele tanto querer fugir e enterrar aquilo.
O ponto chave de RPA que me fez lembrar Mad Men, é o fato de que ambos os projetos falam sobre o passado, a diferença que o Don de Mad Men quer fugir, o de RPA encara. A minha faixa favorita no disco todo é “Aquela Fé“, e talvez a que retrata melhor isso. Nela Don L retrata uma época em que era jovem, com uma chama em seu espírito. Enquanto fala sobre a época em que saiu de sua terra natal e foi para São Paulo, também encara certas duvidas sobre o que acredita. Como ele pode ser comunista e curtir carros ao mesmo tempo? Ter sucesso e fazer amizades com fracassados? É com essa bravura de encarar esses pensamentos no lugar de fugir, que conduzem Don L em todo o projeto. Para finalizar, a participação de Nego Gallo, companheiro de Don L na época do Costa a Costa, ele reforça essa ideia de nostalgia, mas ao mesmo tempo um certo realismo e pé no chão em seu verso. Para Don L, encarar o passado é algo necessário para conseguir evoluir como pessoa e seguir em frente, como vai ser possível perceber para frente no disco.
Um dos episódios mais importantes para entender Don Draper é o terceiro da primeira temporada, ”Marriage of Figaro”. Nele Don Draper perde o aniversário da sua filha por irresponsabilidade, volta no meio da noite com um cachorro de presente para sua filha. É essa incapacidade de reconhecer os seus defeitos e tentar compensar depois que mostram sua verdadeira face. Quando a coisa fica feia, ele foge para outro lugar. É um péssimo marido para sua esposa, e um pai ausente, tudo vestindo a máscara de publicitário bem sucedido. Sabe aquela nostalgia que você sente ao olhar fotografias antigas? Ele pega esse sentimento e transforma em propaganda para vender. Mas, a contradição é que quanto mais ele tenta fugir do passado, mais se vê preso.
Em Mad Men todos os personagens acompanham a evolução dos anos 60, em vestimentas, ideologias, hábitos e tudo, mas Don é o único que se vê preso e não acompanha isso tudo. Com exceção de algumas experiências com drogas, a série termina no começo dos anos 70 e ele ainda se veste e parece um cara que está vivendo na década de 50. Ao mesmo tempo, ele não é um monstro, nunca chegou perto de cometer as atrocidades que Walter White comete na última temporada de Breaking Bad. Para os anos 60, ele é um personagem com ideias progressistas razoáveis, no meio de toda a homofobia e racismo escancarado ali. Tem uma relação profissional com as secretárias relativamente boa, em um ambiente que homens poderosos assediavam mulheres em cargos menores ou maiores sem dó. Esses contrastes é o que tornam Don Draper um personagem tão humano, e fascinante.
O disco de Don L termina com a faixa “Laje das Ilusões” uma musica com um clima mais para cima, onde Don L está totalmente confiante e o tempo é o foco. O que dá a impressão para mim é que depois de todo o tempo isolado naquele quarto onde conta suas histórias, Don L saiu com a maturidade de “Eu Não Te Amo” para sentir o calor do Sol.
O tempo não volta, é curto e a gente não pode ficar parado no mesmo lugar, tanto fisicamente quanto de ideias e espírito. Ele fala que quer ser jovem para sempre, o que me fez questionar: o que define a juventude? Será só fisicamente em relação a idade, ou é o espírito ousado de sempre correr atrás de algo novo? O disco termina com um Don L mais maduro que evoluiu, viveu muita coisa no rap game, e ao mesmo tempo tendo aquela energia jovem e revigorante da época em que se mudou para São Paulo. Don Draper no entanto, continua preso a sua velha hipocrisia, máscara, ao passado que tenta tanto fugir, enquanto o mundo evoluiu, a sociedade também.
Espero que sejamos como Don L, com a alma ousada e revigorante para o progresso e coisas novas, e não como Don Draper preso num passado que tenta fugir, onde as ideias, ou o lugar só te prendem e afogam.