Existe uma entrevista com o Emicida que eu gosto muito, nela ele fala sobre umas das mais bonitas e tocantes características do rap. A capacidade de estabelecer um diálogo com o ouvinte através de histórias e dessa forma alcançar uma proximidade entre o artista e quem consome sua arte. Por meio disso que surge a representatividade, pela liberdade de expor seu cotidiano para quem também vive o dia-a-dia. Em tempos em que o posicionamento político torna-se cada vez mais relevante, conectar-se com pessoas que identifiquem-se com sua realidade, é o melhor jeito de ser politizado.
Além de qualquer linha sobre a situação político-social do país, o que o hip-hop deve mais prezar é a liberdade de seus músicos. A possibilidade de cantarem suas vidas, seus desejos ou o que eles querem demonstrar para quem os ouve. Não é deixar de lado a vocação social do rap, muito pelo contrário, é entender que a vida é o maior movimento político de todos, é ver a existência como um todo e compreender a arte como o suspiro de alívio em meio aos acontecimentos.
No rap nacional tivemos ótimos trabalhos no últimos anos, que possuem essa identidade, como o álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…”, do Emicida e “Oceano” do Nego E. Um dos melhores Mc’s que conseguem transmitir essa sensação de cotidiano para suas músicas é o Don L. Desde sua mixtape “Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L” e seus trampos com o grupo Costa a Costa, ele já demonstrava sua capacidade de criar imagens com seus sons e trazer quem o ouve, para dentro de sua realidade através da identificação.
Em 2017 ele lançou um dos melhores trabalhos daquele ano, o EP “Roteiro Para Aïnouz, Vol. 3“. No meio de diversas faixas que falam desde o rap game, até relações sexuais, o principal conceito desse álbum é sobre um homem que busca a liberdade para viver, trabalhar e ser quem é. Tudo isso é bem resumido no áudio do rapper Gato Preto, na faixa “Ferramentas“.
“(…)É nóis fazendo o nosso, mesmo
Cê sabe como é que é, né?
E nóis vai fazer isso, mano
Nóis vai fazer o nosso
Do jeito que nós queremos, irmão
E outra, o principal de tudo:
Liberdade, no sentido mais pleno de sua palavra
Liberdade na premissa genuína do que é ser livre
Liberdade, cada um faz seu trampo
A forma que quer, do jeito que quer
E vamos pra luta, negão (…)”
Tudo que permeia a carreira e vida de Don, relaciona-se com a liberdade. Desde a produção de uma mixtape com seu grupo em uma época que o rap não era o que é hoje em nosso país, até a necessidade de fazer-se relevante e capaz de fazer seu trabalho da forma que acredita ser a melhor. Tudo isso ainda atravessando as dificuldades de ser um artista de fora do eixo RJ-SP e a sensação de ser um estrangeiro dentro do movimento que o acolheu como pessoa. Em “Roteiro Para Aïnouz” temos todos estes elementos, com a visão de quem chegou, venceu e mostrou que é o favorito dos favoritos. Nessa caminhada é impossível não absorver certas experiências, que incidem de formas diferentes sobre cada um, essa é a vida, e na faixa “Aquela Fé”, Don faz uma revisão de tudo que já fez e valoriza seu eu de agora, de antes e o que ainda vai ser.
A fé sempre é relacionada com eventos e ações futuras, com o que ainda não podemos ver e alcançar. Na música Don clama pela necessidade de voltar a acreditar, mas não no que ele ainda irá conseguir, e sim na pessoa que era “há 10 anos atrás“, antes de mixtapes e EP, antes de tudo. Isso é a verdadeira valorização do seu eu, ansiando cada vez mais poder ser livre, ser ele mesmo. Ao mesmo tempo que celebra tudo que conseguiu até então, sem perder a aura de sua juventude, no meio de tantas desesperanças que ele mesmo relata na letra.
“Tem dias que eu acho tudo inútil
Nossa melhor versão é puro ego
Fútil”
Olhando sob essa ótica, a presença de Nego Gallo nesta faixa é muito mais do que a reunião de dois grandes nomes que trabalharam juntos e fizeram história no rap nacional. É na verdade, a materialização dessa Fé, ao trazer alguém que foi tão importante na construção de seu Eu, Don exibe que “o moleque zica devoto da santa ignorância” ainda vive e não está sozinho. A junção dessas duas lendas evoca o quem tem de melhor nos dois, que são eles mesmos, cada um com sua vivência, ideias e particularidades, que juntas, transformam e influenciam a coletividade.
Quando olhamos para nossa situação política, social ou até mesmo para nossa vida, buscamos uma solução externa para os problemas, baseado no que podemos alcançar sem antes dar o primeiro passo, que é acreditar no nosso potencial humano. “Aquela Fé” nunca deve sair de nós e a memorável pausa nos versos finais dessa música, só mostra que olhando para o ontem, podemos ter a oportunidade de mudar o futuro dos nossos “eus” e de quem nos cerca. Achando em nós as respostas e acreditando que podemos ser livres, isso é ser hip-hop.