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Dj Rennan da Penha: vítima do nosso racismo de cada dia

Rennan Santos da Silva. 24 anos. Mais conhecido como Dj Rennan da Penha. Poderia ser só “mais um Silva que a estrela não brilha”, mas brilhou. Brilhou porque é bom, porque tem qualidade, porque é inovação.
O engraçado é que Rennan não gostava de funk, ele começou ouvindo rap (ele tem uma tatuagem da G-Unit no antebraço). Diferente do Silva que canta Mc Bob Rum, Rennan conseguiu sobreviver e ascender como um dos artistas da linha de frente do funk 150 bpm. O Dj é um dos maiores responsáveis por colocar o Baile da Gaiola e o 150 no mapa das novas musicalidades que vão surgindo no Brasil ao longo dos anos. Além do mais o músico foi quem levou o 150 para a rádio com o seu programa na Rádio FM O Dia.

Falando estritamente sobre o funk 150 bpm, ele nasce da ideia de acelerar a batida, que estava sendo popularmente produzido em 130 bpm pelo funk paulista. O inventor, se podemos dizer assim, dessa aceleração foi o Dj carioca Polivox. Foi o Baile da Nova Holanda primeiramente que começou a tocar o 150. De lá se disseminou pra todos os bailes do RJ. Existem dois mini docs contando a história do ritmo, veja clicando aqui e aqui.

Existem muitas coisas interessantes que o ritmo trouxe. Talvez o funk una mais os seus elementos que o próprio rap em algum grau, pois o MC é parte importante, o DJ voltou para o papel de protagonismo e o passinho é fundamental no baile. Além disso o 150 bpm conseguiu uma maior integração das mulheres, por exemplo. Nos docs acima você poderá ver uma das primeiras mulheres a produzir em 150, a Dj Iasmin Turbininha. Temos também a Mc Rebecca, sendo talvez a cantora mais popular de 150 bpm do momento. Essa integração já é algo histórico do funk carioca. O ritmo acelerado ainda trouxe de volta o baile funk para as comunidades do RJ, apesar da intervenção militar do inicio de 2018 e a truculência de sempre da polícia que sobe o morro atirando. Novamente o funk da periferia estava sendo feito para o periférico. E é por isso que os bailes e seus artistas sofrem novamente a tentativa de criminalização.

Criminalização essa que sofreu a capoeira, o samba e o rap. Elementos esses frutos da diáspora negra no Brasil. A capoeira já foi tida como vadiagem. O samba era visto como “coisa de malandro”, até ganhar os grandes palcos do mundo a fora. A bossa novalização do samba incorporou instrumentos eruditos como o piano e o violão clássico, além do embranquecimento do seus artistas. Cartola canta um pouco desse processo em sua canção Tempos Idos. E o rap, que para alguns ainda hoje faz apologia ao crime, também sofreu (e sofre) com o preconceito. Você pode ler mais sobre clicando aqui. O funk é mais um gênero do povo negro e de periferia que sofre com o ataque por parte das classes mais altas e dominantes desse país.

O funk surge no Rio de Janeiro como o primeiro ritmo eletrônico dançante do Brasil. No fim da década de 80 e início dos anos 90 o funk toma conta do RJ, fazendo a alegria, dos jovens principalmente, nas periferias da cidade. De uma forma ou de outra, assim como aconteceu em São Paulo com o rap, o povo da favela estava começando a se sentir representado nessa cultura. Uma música que conversava com a juventude daquela época. Clicando aqui você poderá ver o documentário Funk Rio (1994) sobre o começo do ritmo carioca. No doc dá pra ver que ser preto e funkeiro era sinônimo de arrastão, de bandido, de vagabundo. Todo esse preconceito sofrido pelos funkeiros favelados faz parte do processo de criminalização e marginalização do funk e de seus personagens que ocorre desde o inicio dos anos 90. Desde a culpabilização dos arrastões, passando pela CPI do funk até chegar na prisão dos Mcs Frank, Ticão, Max e Smith, foram tentativas de travar e manchar a cultura. Ainda em 2017 foi rejeitado no Senado um projeto que visava criminalizar o funk como crime de saúde pública a criança, aos adolescentes e à família. O artigo de Marcos Palombini, Funk Proibido mostra como foi feito de tudo um pouco por parte das instituições públicas para colocar o funk como cultura de violência, de bandido. Ora, a violência está no seio da sociedade brasileira desde os tempos que eramos colônia. Violência essa que o homem branco operou (e opera até hoje) sobre homens e mulheres negras por mais de 300 anos. A violência sempre foi pulsante no Brasil. No século 20 passamos ainda por duas ditaduras. As camadas populares reagem a essa sociedade que os oprime, as vezes de forma violenta outras de forma pacífica, como é a arte (mesmo a arte podendo ser violenta também). O problema é que o brasileiro médio pra cima ainda acredita que a violência tem seu início de baixo pra cima, quando é justamente o contrário.

Dado todo esse contexto do Rio de Janeiro na década de 90 é fácil enxergar que o funk carioca sempre foi um gênero dos negros feito para os negros. Óbvio que o ritmo se espalhou pelo Brasil, criando vertentes em cada região, além de começar a tocar nas áreas mais nobres das cidades. Hoje em dia quase todo jovem consome funk, seja qual classe for. Uma festa sem tocar um funk, sei não hein. Mesmo com o grande alcance o funk ainda fica de fora de grandes festivais brasileiros, porquê será? Dentro dessa pequena linha da história está a prisão do Dj Rennan da Penha. Uma prisão política, orquestrada pelo nosso judiciário racista.

O Dj tinha sofrido acusação de associação com o tráfico la em 2016, mas foi absolvido pela falta de provas concretas. Eis que o MP do Rio de Janeiro “resolveu” recorrer a segunda instancia, com provas bem duvidosas em mãos. Rennan foi condenado a 6 anos e 8 meses de prisão. A questão é que na teoria o MP não poderia ter feito isso, pois Rennan já havia sido absolvido em primeira instancia. Se alguém teria o direito de recorrer seriao próprio Rennan, pois ele era o acusado. Leia clicando aqui um artigo de autoria de GG Albuquerque para a Vice explicando melhor o caso.

Esse texto da Vice elucida como o sistema vai passando por cima do que for, até da nossa Constituição. No meio de todo esse absurdo eu gostaria de pensar um pouco sobre o racismo do MP-RJ. Uma imagem de Rennan com uma arma, que o Dj alega ser de brinquedo, foi anexado ao processo. Só consigo pensar em uma frase: preto com arma é bandido, branco com arma é cidadão de bem. Eu não vejo nenhuma pessoa branca ser associada ao tráfico por estar com uma arma, ou até mesmo droga. Em uma reportagem do G1 do ano passado uma menina branca apreendida com 3,2 kg de cocaína era uma simples transportadora. Parece surreal, mas veja aqui. Rafael Braga está preso ha 5 anos por causa de um pinho sol. Outro “indício” da associação com o tráfico seria que nas festas em que Rennan toca ele facilitaria a venda de drogas. Toda festa contem drogas, mesmo que haja seguranças, policiamento. Como Rennan trabalhando poderia estar vendendo, ou facilitando o comércio de drogas? Porque as grandes raves, as festas que Dj’s brancos tocam, não há batidas de polícia também? Novamente, droga na favela é associação com tráfico, droga em bairro nobre são só usuários. Essa é a grande seletividade da justiça brasileira.

Ilona Szabó, especialista em segurança pública e política de drogas explica nesse vídeo aqui: as drogas existem desde que o mundo é mundo. E até no momento em que se dividiu quais drogas seriam licitas ou ilícitas, isso foi feito com base em quais drogas usavam o ricos e quais usavam os negros e pobres. Ela mostra que o álcool e o tabaco causam mais danos que a maconha. Dráuzio Varella, famoso médico oncologista, também afirma que a maconha era taxada como uma droga dos negros, leia aqui. A questão que esse texto quer abordar que há caminhos melhores para o combate ao tráfico. Como Szabó tem mostrado, a descriminalização e a regulação a longo prazo são algumas das opções para minar o tráfico. O uso de drogas não deveria ser algo de segurança pública. Ela enxerga que a política de “guera as drogas” falhou. Mas ai fica a pergunta, a quem essa política interessa? Quem morre nessa guerra? Qual povo sofre com o encarceramento em massa? A gente sabe quem.

Clicando aqui, você pode ver uma matéria da BBC sobre a corrupção policial, que aumenta a violência, traz enriquecimento ilícito para o agente e não muda nada na segurança do Rio de Janeiro. Tudo parece piorar quando vemos que as milícias estão tomando conta das periferias. Milicianos que estão ligados diretamente com o nosso sistema político atual. O presidente e seus filhotes já HOMENAGEARAM publicamente milicianos, se mostrando a favor da regulação dos grupos paramilitares. Até que ponto o tráfico de armas e de drogas são financiados em sua maioria pelos usuários? Armas que são de uso da polícia. Da uma assistida nos dois filmes do Tropa de Elite. Quando tudo isso chega ao cargo máximo do nosso país, que é a Presidência da República, corremos o sério risco de ter esse poder paralelo com muito mais força do que já se tem hoje. Onde o Estado não chega a milícia atua, acarretando em casos como foi o do desabamento de dois prédios no Rio de Janeiro, em área comandada por esses grupos. Clique aqui e veja.

Voltando ao caso do Dj Rennan da Penha, ele já havia sido absolvido e o MP volta com “provas” que só demonstram como o sucesso de um negro favelado incomoda as nossas autoridades. O artista é uma das exceções que confirmam a regra, mas que mesmo assim incomoda, porque chacoalha o status quo. No site do Jornal Extra, associada ao grupo Globo, saiu uma matéria totalmente sensacionalista e omissa sobre a vida de Rennan pós-sucesso. A reportagem não fala que Rennan foi absolvido em 2016, somente que houve uma prisão. Além disso, o texto mostra que o Dj vive uma vida luxuosa, mas tudo sendo tratado de uma forma bem superficial, preconceituosa e arrogante. A grande questão é que um jovem negro de sucesso, que pode viajar pra fora do país, que pode comprar as roupas das grifes mais caras e que ainda pode ajudar outras pessoas negras contraria as classes dominantes. O dj carioca é a representação que essas pessoas não conseguem dominar e o fato delas não conseguirem moldar a imagem de Rennan gera sentimento de frustração e inferioridade.

É ai que está a chave para entender a tentativa extrema de prender Rennan da Penha. Já que você não consegue controlar esse corpo, você o aprisiona. Frantz Fanon, psiquiatra e intelectual negro do século XX, escreveu que o corpo negro incomodava postura corporal do branco. Fanon escreve isso devido ao estereótipo de que o negro seria mais viril e que seria sexualmente mais potente. Uma falácia que o branco europeu inventou e assim queria que fosse tida como verdade, fruto de uma visão racista. Logo essa questão do corpo do homem negro, seria um símbolo de inferioridade para o homem branco. Se sentindo inferior o homem branco busca se “vingar” castrando o negro. Essa é uma síntese bem a grosso modo de uma parte do pensamento de Fanon, mas que pra mim se relaciona de alguma forma com a prisão de Rennan. É mais uma vez uma tentativa de castrar o negro, mas nesse caso é confinando seu corpo em uma cela, o impedindo de trabalhar, de ganhar seu dinheiro. Além disso, são 25 famílias que tem sua renda ligada diretamente ao trampo do Dj Rennan da Penha. Há também a economia que os bailes geram nas comunidades. A reportagem O Fluxo do Fluxo, de Jeferson Delgado, apresenta que um comércio que fica perto ao Baile do Helipa em São Paulo ganha aproximadamente 5 mil por mês, imagina o Baile da Gaiola que se tornou um dos maiores do Brasil. Prender o idealizador do baile é uma das várias formas de intimidar a cultura, a comunidade, as pessoas que fazem o funk. Além de não poder exercer a sua profissão, a prisão do Dj influencia todo o sistema que foi criado ao seu redor. Essa seria a forma de castrar Rennan por ele ser um jovem negro de sucesso.

O pior de tudo é ver várias pessoas com esse pensamento racista de que se você é morador de comunidade, se é um negro com grana, é sinônimo de enriquecimento ilícito ou que você ta ligado a criminalidade de alguma forma. O funk desde o início sempre cantou a realidade que acontece na periferia, de modo muito explícito. Já se passaram 30 anos e tem gente que não entende que a música funk é uma crônica da realidade do favelado, que canta tanto a opressão sofrida quanto as vitórias conquistadas. Que conversa com o povo na linguagem que eles se identificam. Ao mesmo tempo há esperança, no dia 25/04 houve uma audiência pública promovida pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados a pedido das deputadas Áurea Carolina (MG) e Talíria Petrone (RJ). O debate também girou em torno da prisão do Dj carioca, e contou com presenças de peso como a do Mc Leonardo, da dupla Mcs Junior e Leonardo, produtores culturais, entre outros.

Por mais que esse texto não seja sobre rap em si, ele aborda a cultura de onde o hip hop também veio. Dj Rennan da Penha é vítima de um sistema penal que é reflexo da nossa sociedade, que pratica um racismo de forma velada. Mas ta aí na nossa cara, ta na nossa história, não é a primeira vez, a gente não vai se esquecer de casos como o de Rafa Braga por exemplo. A seletividade do nosso sistema é real, e o mínimo que podemos fazer é nos posicionarmos, é apontarmos o quão isso ta errado. No dia 24/04 Rennan se entregou, em alguns vídeos que circula na internet ele mostra que é um trabalhador, que não quer viver fugindo. Mas não é por isso que vamos parar de apontar o quão injusta é essa prisão. A história está ai para nos mostrar, a intenção do sistema é matar ou manchar a vida de pessoas negras que não se curvam. Mas a arte é maior que isso. Liberdade para Rennan da Penha.

https://www.youtube.com/watch?v=t9QA1S57aVs