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As memórias e o futuro em “AmarElo” e “Millenium Actress”

Fazem algumas semanas que venho tentando escrever algo sobre o disco “AmarElo” de Emicida, lançado no final do ano passado.

Ideias e rascunhos jogados fora, sem coesão ou textura alguma. Até que, em uma tarde de domingo qualquer, assisti o filme “Millenium Actress” de Satoshi Kon, de onde o corpo da matéria começou a fluir em minha cabeça naturalmente.

Sendo assim, fica novamente o meu velho aviso que isso não é uma interpretação técnica do disco ou do filme, nem mesmo pode ser considerada como verdadeira. São apenas coisas das quais absorvi consumindo ambos, e que sempre procuro fazer uma ligação.

Os filmes de Satoshi Kon são únicos no aspecto de questionar a quem assiste: qual é a linha entre a ficção e a realidade? E será que aquilo que nós vemos pode ser tomado como real, e os outros pontos de vista não?

O seu filme mais famoso “Perfect Blue“, retrata muito bem esse aspecto, de maneira intensa e aterrorizante, criando uma sensação de paranoia. “Millenium Actress” é um filme bem oposto em relação ao tom, mas ambos se complementam tanto quanto se opõem. A dualidade está presente em toda obra, a qual pretendo me aprofundar nos próximos parágrafos.

O álbum “AmarElo“, de Emicida, de início foi considerado um pouco controverso em relação ao seu tom, especialmente em círculos que esperavam o antigo Emicida, aquele da primeira mixtape, mas ao mesmo tempo, foi aplaudido por tantas outras pessoas.

São muitas críticas de gente dizendo que ele se vendeu fazendo um som mais leve, comercial, alguns ataques inclusive homofóbicos em relação a algumas colaborações dele, o que não faz sentido.

Ouvindo “AmarElo” qualquer pessoa percebe que aquela caneta pesada em relação a apontar os erros e feridas da sociedade estão lá, de uma maneira diferente, as vezes mais suave, como uma pintura de pincel, mas estão lá. Essa dualidade do álbum novo é diferente da do trabalho de Kon, e que para mim vai ser um prazer falar sobre ambas.

Millenium Actress” conta a história de uma atriz aposentada chamada Chiyoko, ela já está velha e vivendo em uma casa no meio das matas, longe de todo o drama da cidade grande. Dois homens desejam filmar um documentário sobre sua vida, e resolvem a encontrar para uma entrevista. E, a partir daí, ela conta sua história: quando mais jovem ela encontrou um homem procurado pelas autoridades que também era um artista, a quem ela deu abrigo e proteção. Em um determinado momento ele parte, e entrega a ela uma chave. E então, ela embarca em uma jornada para se tornar uma atriz reconhecida esperando que um dia ele a encontrasse e reconhecesse.

Até aí parece uma história comum de romance, amor, e amadurecimento, certo?

Mas, a forma que Kon conta a história é diferente. Conforme ela relata sua vida para os cineastas, sua filmografia, a ficção e a realidade começam a se entrelaçar. Cenas dos filmes em que ela atuou se cruzam com momentos de sua vida pessoal, enquanto os dois cineastas observam de fundo e até passam a interagir nesses filmes, como se estivessem lá.

E então, uma história ambientada no período feudal japonês se entrelaça com a de uma atriz perseguindo a memória de um homem do passado, que se mistura a jornada de dois cineastas documentando a vida de uma mulher idosa. E isso é a maior sacada de Kon, em momentos você questiona o que é o real, e o irreal, mas nunca se sente perdido na história. Pois, tudo ali é real e aconteceu, o filme, as memórias de Chiyoko, o documentário, mas ao mesmo tempo, nada é…

A dualidade em “AmarElo” é diferente, enquanto no disco anterior de 2015 tinha um contraste entre o Emicida que conquistou tudo na vida, está no topo, na paz, conhecendo suas origens, e a realidade violenta e caótica do país, desta vez, ambas se entrelaçam algumas vezes de maneira sutil, outras vezes não, ou para livre interpretação.

Mas antes de me aprofundar nisso em si, queria questionar uma coisa: Qual foi o último disco que vocês ouviram a ter um pastor na faixa de abertura, e algumas faixas depois um homem gay que é artista drag? Eu questiono isso pois, para mim, chega a ser uma das coisas mais belas do disco, e apenas um exemplo no meio de tantos outros.

Uma das faixas mais belíssimas é “Pequenas Alegrias da Vida Adulta“, a qual retrata apenas um dia rotineiro de uma família, em meio ao caos do mundo moderno, das redes sociais, a violência entre tantas outras coisas.

É uma música gostosa de ouvir, aquelas que você pode colocar até pra sua mãe que não curte muito rap, e ela com certeza cantaria e dançaria junto.

Em princípio é isso, mas e nos momentos em que a música fala pra ter cuidado, qual seria o motivo? Colocando no contexto do racismo e ódio contra a população negra atual, entre tantas outras coisas, será que isso não pode contextualizar a música de outra forma?

Na faixa com Zeca Pagodinho é uma homenagem para um amigo, mas logo percebemos que ele se foi. Restaram apenas memórias e saudades, frases como “se a bala come, mano, ele se põe de escudo’’, mostram que a violência e o ódio ainda está presente ali, apesar da homenagem linda, do ritmo, da melodia, e tantas outras coisas. No fim, são apenas memórias que são levadas para frente. E memórias e passado são coisas as quais quero falar.

Em “Millenium Actress“, Chiyoko fez uma carreira primorosa como atriz no cinema. Papéis únicos e aclamados, fez uma vida e chegou ao topo, enquanto estava presa ao passado.

Todas as suas conquistas não pareciam o suficiente, pois em sua percepção, o que importava era correr atrás daquele homem misterioso que desapareceu. Tanto que não olhava ao redor para tudo o que tinha, seja na vida em si ou do que viveu. No fim, era alguém que fez o seu futuro, mas estava presa em uma memória, de algo idealizado para ela mesma.

Uma das coisas que mais passou batido em “AmarElo” para mim, foi a faixa “9vinha“. Falar sobre o apego que um jovem tem com uma arma, e eu até me surpreendo em como isso passou batido de primeira, pois estava mais na cara do que parecia. E de novo, por fora a letra parece ser romântica, bonita, e no momento em que você se aprofunda nela percebe o duplo sentido.

Existe algo que expressa melhor a dualidade entre aproveitar a vida, ser feliz com o que tem, com a família, com os amigos, no meio de todo esse transtorno de caos e violência que isso? Como ambos se mesclam a ponto de vários jovens pegarem um certo apego a essa mesma violência que uma hora ou outra pode pegar eles também?

Ismália” joga a realidade que muitos se negam a acreditar na cara dura. A realidade dos 80 tiros, que depois disso fez também a menina Agatha de vítima do racismo que está impregnado estruturalmente em todas as camadas da sociedade. Dos sonhos que são destruídos por conta disso, entre tantas outras coisas.

O poema que Fernanda Montenegro recita é um momento de pausa e reflexão, para mim, quase como a famosa viagem de trem em “Viagem de Chihiro“, você apenas escuta, absorve e segue para a próxima faixa…  

… O que para mim é o verdadeiro triunfo do disco… É música sobre seguir firme e forte, e em frente. Sobre como apesar de vivermos em um país caótico, em tempos caóticos, uma presidência racista e homofóbica, podemos viver bem e prosperar.

Ver que ao nosso redor as coisas podem não estar tão boas, mas também não estão ruins. Valorizar aquilo que temos, nossa espiritualidade não importa qual seja a religião, enfim, as “pequenas alegrias da vida adulta”.

No meio de tudo isso, é uma música sobre seguir em frente. Pegar o passado que ainda gera feridas até hoje, e perceber que mesmo faltando muito para o ideal, é possível chegar longe. É sobre aprender, compreender o passado, nossas memórias, a história e progredir.

Lembram quando questionei sobre qual foi o último disco com um pastor e um homem gay que é artista drag? Pois bem, agora cheguei na faixa “AmarElo“, com Pabllo Vittar e Majur. Uma faixa que fala muito sobre a saúde mental, o desgaste, de apesar de você se sentir derrotado tem como dar a volta por cima.

É o que representa a esperança de tempos melhores, e ser possível alcança-los. E de novo, quando foi a última vez que vocês viram um pastor e um gay em um mesmo disco?

Sabendo de toda a homofobia institucionalizada dentro de muitas igrejas, em que pastores e padres distorcem totalmente a palavra da Bíblia para justificar seu ódio… Existe coisa mais bela que isso? Sem fazer nenhum afronte, ou nada, vemos como o verdadeiro cristianismo que é o do amor, tolerância e acolhimento ainda existe em meio a pastores gananciosos, bienais censuradas e outros absurdos. As referências a Nossa Senhora em perfeita harmonia com os elementos de religiões africanas, enfim, os exemplos são vários.

No meio de tanta gente mandando o governo se foder (e com toda a razão), a melhor forma de protesto que Emicida encontrou está nesse disco, botando um artista gay para cantar Belchior, quebrando estereótipos, botando um diálogo com sua filha ao abrir uma faixa… Retratando como todo o racismo, a homofobia, ou qualquer outro tipo de preconceito, qualquer dor do passado, apesar de deixar cicatrizes e feridas abertas, o futuro tá aí, e esse passado não vai ditar a vida de ninguém. Afinal, como a faixa AmarElo diz “permita que eu fale, não as minhas cicatrizes.’’

Chiyoko lutou, prosperou e conquistou muito, enquanto perseguia apenas uma memória.  Talvez seja por isso que ao contar sua história, tantos pontos de vistas se entrelacem e misturem. Que no meio de tantos sucessos em sua carreira, o seu coração e mente estavam concentrados ainda naquele homem misterioso, uma mulher engolida por essas lembranças, sem perceber que elas a ajudaram a seguir em frente.

AmarElo já é um álbum sobre o futuro, numa estrutura firmada no passado e construída no presente.

No fim, as duas obras têm muito sobre a questão do tempo de passado, presente e futuro nelas. Qual a relação entre ambas? Eu não sei, apenas se questione sobre como se sente em relação ao tempo, e é isso.

Obrigado Emicida, e obrigado Satoshi Kon