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A cor do crime e da resistência.

“Cor do Crime”, de Renan Ricio: um grito farto sobre o racismo.

Nas entranhas de um país deficiente no reconhecimento de sua identidade própria, corre um ideal colonizador de tamanha intensidade a jorrar nas periferias do corpo. O que jorra é sangue, e o que gera é o racismo.

Capa do EP “Viciado em R.A.P”.

Renan Ricio, em seu primeiro trabalho no Rap – o EP “Viciado em R.A.P” – utiliza a arte periférica e negra para denunciar um sistema cruel em que as várias formas de opressão ditam os espaços designados aos corpos dentro da sociedade, e, como uma das mais expressivas e enraizadas no nosso Brasil, a desigualdade racial. Renan, homem preto, expõe na música “Cor do Crime” as estruturas sociais que moldam uma sociedade em que 70% da população carcerária, 75% das vítimas letais das forças do Estado e 64% da população desempregada tem um aspecto físico em comum: a negritude; ela que é a cor do crime.

(Dados de 2020 https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418)

Eles querem que eu seja branco, / Não querem um preto com poder. / Eles querem que a minha cor seja / A Cor do Crime!

Eles querem que eu assalte um banco / Pra depois poder me prender! / Eles querem que eu seja da / Cor do crime.”,

Refrão da música “Cor do Crime”.
Foto do videoclipe de “Cor do Crime”.

A música começa com a icônica fala do personagem Roque do filme “Ó Pai, Ó” – dirigido por Monique Gardenberg -, em que Lázaro Ramos, com a sua forte expressividade, chega ao ponto de precisar reafirmar o seu direito, enquanto negro, à própria existência. No clipe produzido pela Swell Produtora, enquanto a voz de Lázaro Ramos soa firme sobreposta à melodia inicial da música, a câmera é posta num plano fechado frente aos rostos expressivos dos artistas participantes do videoclipe, em que, com exceção do policial violento, que é vivido por um ator branco, todos os outros integrantes são negros. O videoclipe também é marcado pela presença de uma coreografia que expressa a agonia e os horrores da violenta repressão policial contra um jovem negro. O EP e a música foram idealizados por Renan logo após a morte covarde de George Floyd, asfixiado pelo joelho de um policial, nos EUA. George se tornou, então, um símbolo da seletividade racial no uso da força policial.

Já se perguntou / Como é andar na rua com medo do protetor? / A Polícia passou e fez o seu papel. / Mais um filho sem pai / Iluminando o nosso céu.”,

Trecho da música “Cor do Crime”.
Foto do videoclipe de “Cor do Crime”.

Renan Ricio, em “Cor do Crime”, dialoga, em alguns momentos com a sua própria negritude – como no refrão -, mas, em grande parte da música, com a branquitude frágil dos ouvintes brancos. Renan questiona direitos básicos divergentes entre a branquitude e a negritude, tal como Roque o faz no diálogo de “Ó Pai, Ó”, no início da música. Soa como uma tentativa de gritar para a pessoa branca que ela tem privilégios – o que, pela fragilidade branca, é difícil de se reconhecer -, e, com um ar intrínseco à mensagem, expõe que essa desigualdade racial é a responsável pela situação em que a população negra foi colocada historicamente; ou seja, brancos só têm privilégios porque negros e não brancos são explorados. Os espaços culturalmente entregues à branquitude foram construídos pela mão de obra negra, e aí estão as injustiças semeadas por um sistema de opressão, em que os dominantes só estão no topo por terem em quem pisar; riquezas são formadas a partir da exploração, e, nesse contexto, até o inegável é negado pelos grupos privilegiados da sociedade – é aí que se escondem as fragilidades dos privilégios. Insinuar à branquitude contemporânea que a culpa do sofrimento negro recai sobre os seus antepassados e que, portanto, a branquitude atual deve assumir, não a culpa, mas a responsabilidade que carrega, soa, para um branco, como uma ofensa ao seu direito de existir, e Renan, como tantos outros artistas que compõem o Rap Nacional – sinônimo de resistência às opressões -, faz isso com firmeza e indignação em “Cor do Crime”.

O homem vai chegar em marte, / mas o negro ainda não é livre (nunca foi)! / Vi seu post no instagram, é até bonito mas só isso não alivia as minhas cicatrizes.[…] Eu sou neto do escravo que fugiu da sua senzala, / E é graças a ele que a minha voz não se cala (nunca vai)! / Se prepara pra ver os pretos na capa do seu jornal, / Ganhando prêmio Nobel e não sendo preso por policial.”.

Foto do videoclipe de “Cor do Crime”.

E, para além da exploração dos corpos negros, Renan Ricio também canta a reafirmação de uma cultura tomada pela branquitude. Entre os elementos sonoros da música, essas referências também ficam evidentes: o coral de fundo que percorre toda a música; na segunda metade do som, a introdução da batida típica apropriada pelo funk nacional – outro dos grandes patrimônios culturais originalmente negros do país -, e, nesse momento, começa uma coreografia que cultua a ancestralidade afro, e então as referências negras visuais, quando, nessa coreografia, a artista veste uma roupa branca, parecida com os trajes litúrgicos utilizados nas ritualísticas de religiões de matriz africana. No início do videoclipe, nos planos fechados nos atores, estes evidenciam, com gestos simples e poderosos, elementos que compõem a sua identidade negra – os cabelos, as correntes, etc. E, durante a música, Renan versa sua gratidão, para além das posições impostas socialmente, à rica cultura negra, que o formou como indivíduo consciente de sua identidade.

Te dei meu Samba, Hip hop, Funk, Soul e Rnb; / Michael, BB King, Jimi, Bob, Stevie e Dre. / São tantos nomes, como eu não percebi? / A cultura negra é foda e por isso que eu to aqui!”.

Foto do videoclipe de “Cor do Crime”.

Dessa forma, se hegemonizando nas indústrias culturais contemporâneas, as culturas negras resistem ao seu apagamento por meio de referências artísticas e culturais reafirmadoras… “A Cor do Crime” é, sobretudo, a cor da resistência!