Acredito que uma das lembranças mais antigas que tenho é de um churrasco em família quando criança, onde escutava os adultos conversando sobre o filho de quem havia entrado na faculdade e se perguntando se um dia os seus filhos teriam condições financeiras disso.
Hoje pode parecer algo bem mais comum, mas acredite, naquela época, uma pessoa de classe econômica mais baixa e com a pele escura, era algo extremamente difícil. Até hoje ainda é para muitas pessoas, tanto que quando decidi fazer jornalismo fui apenas o segundo da minha família a ter ensino superior, e o meu maior objetivo era poder escrever para pessoas que, assim como eu, precisaram batalhar muito para alcançar qualquer objetivo.
Fico pensando, se para mim que nasci em São Paulo, com tantas oportunidades, ainda foi complicado, como é para quem vem de cidades menores? E desse relato, eu gostaria de falar novamente sobre o trabalho do JotaPê, um cara que inspira e que desta vez, trouxe um lançamento que nasceu como um projeto de estudo da faculdade.
Direto da cidade de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, o rapper baiano e independente, JotaPê, volta à cena com mais um lançamento. Desde 2017 na caminhada independente, o artista já possui ótimos trabalhos, como é o caso de “Fora do Padrão”, projeto lançado em 2019 com 9 faixas e que envolve 18 artistas de sua cidade.
Em 2020, o rapper lançou uma mixtape com 4 faixas, intitulada de “Minha Utopia”, um trabalho mais voltado para o lado romântico que encantou o seu público e desafiou o artista em sua musicalidade, mostrando mais do talento do Mc que saiu totalmente de uma zona de conforto que muitos rappers permanecem por anos.
Depois disso, JotaPê ainda lançou três singles, a faixa “Oração” e “Pac-Man”, mixadas e masterizadas por Mansha, e o som “Só Falam”, com produção de Sico e Faustino. Desta vez, o rapper se desafia novamente e lança o EP “Arte Viva”, um trabalho de faculdade que fura a zona de conforto e vem para as pistas para o público apreciar.
Esse novo projeto traz em sua essência diversos aspectos trabalhados em sala durante o semestre, na UFBA, visando sintetizar os debates, isso mesmo, de maneira aberta e incentivando o dialogo. Sem querer concluir assuntos, o EP é um pontapé inicial para questões que estão presentes em nosso cotidiano, utilizando a arte como convite para as pessoas, sejam elas espectadoras ou ouvintes, incentivando a participar de discussões de cunho político-social.
A temática do novo EP nasceu da vivência de JotaPê na faculdade, com leituras de textos propostos pelo professor Claudenilson Dias, nas aulas de Estado das Cultas, divididas em programa semestral de três blocos:
- BLOCO 1 — REVISANDO A COLONIALIDADE;
- BLOCO 2 — CULTURA E IDENTIDADE;
- BLOCO 3 — CULTURA E RELIGIOSIDADE.
Com base nessas aulas, nasce o EP “Arte Viva“, que conta com três faixas dedicadas a cada bloco e abordando os assuntos colocados em sala pelo professor em sala.
Faixa 1 — Estado Cínico: A primeira música do EP fala exatamente sobre o início, mas o do nosso povo. Não dos nativos que viviam aqui, mas dos que vieram para povoar o nosso país, abordando todo processo de colonização, que deixou marcas que não foram cicatrizadas até hoje.
Com uma pegada bem ríspida em um instrumental calmo, JotaPê teve como base para a composição da faixa livros que abordam diretamente o racismo, patriarcado, globalização, opressão, e soberania branca, tendo como refrão o “Estado Cínico“, título da mísuca, demonstrando a carência social de políticas inclusivas para pessoas pretas, além de ser um grito e um pedido de socorro para que alguém faça algo.
“(…) proletário, pobre, preso nesse hobby imaginário tão real, natural: essas plantas, não são mantras, raves que disfarçam a soberania branca. São séculos e décadas, são metros ao quadrado de um mundo enquadrado em… Mais um enquadro”.
Faixa 2 — Arte Viva: Dando nome ao EP, a faixa “Arte Viva” é a cara de Salvador, sendo mais que a representação de um povo em forma de arte, eles também são conhecidos como a cidade da música, então, a faixa também traz um batuque que lembra o Olodum, e uma forte crítica ao falso livre arbítrio pregado por muitos.
Abordando a dificuldade de se encontrar em um mundo e o preconceito sofrido pela comunidade LGBTQIA+, o som busca empoderar quem se enquadra nesse âmbito estigmatizado. A principal mensagem aqui é o respeito que precisamos praticar cada vez mais em toda a sociedade.
“Que a arte viva e o artivista sempre esteja em campo. A arte mista nos coloca em
um conceito amplo. Que o palco seja a praça, o largo ou roda cultural e o respeito seja
sempre o primordial”.
Faixa 3 — Cantar Para Ser: Fechando o EP, a faixa “Cantar Para Ser” nos traz uma mensagem mais positiva e otimista, falando de fé, de que por mais que as coisas pareçam difíceis, precisamos continuar lutando por um futuro melhor. Sem perder o tom de protesto, JotaPê também aborda questões extramente relevantes, como a resistência, intolerância religiosa, o candomblé, conflitos de religião, que nos transportam para relatos de discussões sobre o racismo religioso com a fé afro-brasileira.
“Não adianta colocar textão no insta se na pista é diferente daquilo que tu propaga,
conhece Floyd e o Black Lives Matter foi sua militância, mas não vi você falar de Rafa
Braga. Jayro Pereira é só mais um para pesquisar e Vó Nitinha você tem que aclamar.
Intolerante a gente passa para outro plano. Interessados tô aqui para informar”.
O som ainda conta com um breve depoimento de Alice Saraiva, candomblecista, que aborda o orgulho e a felicidade de pertencer à religião.
Neste projeto, o artista contou com as participações do beatmaker Matchola e do Mix e Master de Dante, de Alice Saraiva na terceira faixa.
JotaPê já acumula mais de 180 mil streans em todas as plataformas digitais e é um dos artistas mais importantes da cidade de Lauro de Freitas, tudo de forma independente. O rapper e o novo EP são provas vivas de como o estudo amplia a visão do ser humano e nos torna melhores.
Confira o lançamento do EP “Arte Viva“: