Goitacá Escafandrista inicia sua caminhada no rap contaminando o DNA goiano. No último dia 5 de março lançou seu primeiro videoclipe solo chamado “Bem-Vindo a Césio City”, se referindo o maior acidente radioativo do mundo fora de uma usina nuclear, que aconteceu em Goiânia em 1987, colocando a capital no mapa das maiores tragédias mundiais. Embarcando nesse episódio, Escafandrista rima flores póstumas às vítimas e relata várias outras mazelas goianas.
Para além disso, o rapper retira da cápsula mental mais de 20 referências históricas de luta que pautam a rotina dos goianos há pelo menos 30 anos. Nessa identidade sonora e audiovisual, Escafandrista “mete o louco” e ameaça o governador do Estado, compara a tradicional procissão do Fogaréu da Cidade de Goiás com o grupo extremista Kun Klux Klan, derrama lágrimas de sangue da estátua O Anhanguera, ressuscita o bandidão Pareja da década de 90 e manda recado para os terraplanista tipo Froid: “Patéticos”, canta ele. Roteiro pesado!
Quem é ele?
Escafandrista nasceu na Vila Santa Helena, região central de Goiânia. Com 24 anos hoje, cresceu em meios a buchicho sobre o acidente Césio 137. Aos 11 anos, foi morar na região Noroeste da capital onde teve contato com pichação, torcida organizada e assistiu de perto o crime. “Vi meus amigos indo embora, um por um, negros e brancos, em sua excelência pobres”, lembra ele.
Crescer na periferia marcou sua adolescência, mas foi determinante para que ele enfrentasse a vida com outras armas, rajada de conhecimento. Wilton estudou nos melhores colégios públicos e privados da city, ingressou na Universidade Federal de Goiás e hoje é fomentador cultural no rap. Fundou o Pangeia Cultural, propagou batalhas de conhecimento na capital, é membro do coletivo Mente Sativa e produtor de rap na banca Noiz Por Noiz.
“O rap veio como fôlego, dando sentido a tudo que estudei, vi e vivi. Hoje busco a síntese dessa reflexão com referências sobre temas relevantes que não são debatidos”, explica.
Bem Vindo ao Césio City é uma breve aula de história sob uma atmosfera de luto, um curta-metragem sobre gangstas, mortes e violência, “pique Pasolini”. Tem produção fonográfica Noiz por Noiz, captação de Wilker King, Master/Mix por Vinicius Jimy e beat de Danilo Gomes (DZR). A Produção Visual ficou por conta da CM Filmes.
Selecionei algumas referências e curiosidades que aproximam esse trampo áudio/visual com o cotidiano goianiense. Dá o play nesse boombap e boa leitura!
Césio 137 ainda vive!
Começando pelo começo, Escafandrista já liga seu GPS mental e te situa da narrativa, cordialmente, logo no título. “Bem vindo a Goiânia”, a Césio City! Ironicamente, o rapper faz referência ao maior acidente radioativo em área urbana do planeta, que vai completar 31 anos em 2018. Marcada por histórias de sofrimento, descaso e desinformação, a tragédia resultou na morte de pelo menos 66 pessoas e na contaminação de 1,4 mil. O rapper acredita que houve falha no trabalho investigativo, fruto de um descaso político e sanitário. Em respeito às vítimas, Escafandrista cita “Leide das Neves”, a criança que se contaminou com a substância e que virou símbolo desse acidente. O local do clipe não poderia ser outro, gravado no terreno onde foi encontrada a cápsula de Césio, no setor Aeroporto.
“Jose Nilton Pereira, vizinho do local onde aconteceu o acidente do césio 137, pai de 6 filhos, assim como o a pessoa que abriu a cápsula de Césio, trabalha com reciclagem, abriu as portas da sua casa para uma filmagem” – Escafandrista.
Sociedade midiática
Outra coisa que chama a atenção logo no início do clipe é o enxame de noticiários sobrepostos das principais emissoras de televisão de Goiás. Taí o que eu chamo de 4º poder da massa. A mídia tradicional geralmente pauta os assuntos mais debatidos pela população e utiliza o próprio telespectador como massa de manobra. Tá no DNA da rotina das pessoas acompanharem as falácias televisionadas. E ao longo dessa narrativa, você vai ver que a influência dela é muito maior do que pensamos!
As Ocupações de 2016
Escafandrista também lembra as ocupações nas escolas públicas em 2016, manifestação contra a terceirização da educação em Goiás. Proposto pelo governo, a ideia era transferir a administração das escolas para entidades filantrópicas, às organizações sociais (OSs), projeto este que afetaria mais de 300 mil estudantes no Estado. Contrário a esse novo modelo de gestão, estudantes secundaristas acamparam nas escolas estaduais por dias reivindicando melhorias na qualidade ensino. Foi um dos maiores protestos estudantis que Goiânia já vivenciou.
Irish Vive!
Nessa temática militante, o rapper lembra de Guilherme Irish, jovem morto pelo próprio pai por ser comunista e engajado na luta pelas ocupações. “Pare pra pensar! Onde o pai mata o filho por pensar”, canta Escafandrista. Lembrando que a mídia fez seu papel de mostrar apenas a parte hostil da manifestação na época, o que estimulou uma rejeição à luta. A tragédia Irish é um bom exemplo.
Sequência histórica
O rapper não veio brincar de rimar. De cara já lança o que eu chamo de um dos momentos mais marcantes do clipe. Meio implícito, insinua ameaça de morte ao atual líder político do Estado de Goiás, Mxxxxxx (PSDB), que inclusive está em seu quarto mandato neste cargo público, um recorde nacional! Escafandrista chama o político de GangStar (“estrela das gangs”). “Deixa estar, sua hora chegará”, rima ele fazendo um sutil gesto cortando a garganta. Ousado! Se outro rapper goiano foi tão explícito assim contra o governador, me apresente.
Os Reis do Crime
Delegado Vxxxx também não passou despercebido no som. Foi citado em comparação a outra referência goiana histórica “HITLER Mussolini”, diretor do Agência Prisional – Cepaigo nos anos 90. Punho cerrado pro alto, qualquer semelhança não é mera coincidência. Escafandrista resgata este personagem para ressuscitar também Leonardo “Pareja”, um criminoso que foi preso na época, em Aparecida de Goiânia, e que fez refém o presidente do TJ-GO durante rebelião em 1996. Visshhhh! Pareja também fez história hein.
“Bartolomeu, o Anhanguera escorre sangue”
Quem já estudou a história de Goiás, saca quem foi Bartolomeu Bueno da Silva, um explorador e sertanista bandeirante, idolatrado com uma estátua fincada no cruzamento da Goiás com a Av. Anhanguera. O que poucos goianos sabem é que o “descobridor de Goiás” desbravou esse Estado sem dó nem piedade. Recebeu dos índios o apelido de “Anhanguera”, que significa “Diabo Velho” ou “Espírito Maligno”. Em luto a todo sangue indígena, de mulheres e crianças derramados com a vinda destes bandeirantes que Escafandrista desromantiza o monumento.
Resposta à Froid, o terraplanista!
O rapper de Brasília, Froid, um dos artistas em ascensão no rap nacional, é defensor da teoria que a Terra é plana e fez milhares de fãs assumirem essa ideia. Escafandrista aponta o dedo nessa visão, dizendo que a hipótese é viagem de gente louca de droga. “Plano massivo, terreno esférico, campos de visão aqui são hipotéticos. Parece complexo, se sinta perplexo, sem efeito dos sintético, repito, seres patéticos”. Sob esse trecho, o rapper afirma em entrevista que quis sim dá uma resposta à Froid e seus seguidores. E disse: “Sem efeito dos sintéticos eles não são nads”, comenta ele.
Klan e o Fogaréu
Outra ideia radioativa do rapper goiano foi questionar festas e tradições culturais religiosas. Numa visão pagã, comparou a tradicional Procissão do Fogaréu, que simboliza a perseguição de Cristo e acontece anualmente na Cidade de Goiás, com o Ku Klux Klan, grupos extremistas, racistas norteamericano. Aí você assiste isso no clipe e “caralho, como eu nunca tinha pensando nisso antes!”. Não somente pelas vestimentas bem parecidas, mas pelo ideal. “Mouros Cristãos, Brancos X Bárbaros”, explicou o rapper sobre a comparação no som. Queria aprofundar mais nessa parte, mas vou estudar mais um pouco.
Os Caixa 2 goiano
Na arte de desmentir, o rapper tá entendido. Quem lembra do BEG? Banco do Estado de Goiás da década de 50, cujo estado acumulou milhões com dinheiro do povo. Outro acontecimento que o rapper cita é o caixa 2 na Saneago, episódio recente que deixou milhares de goianos prejudicados com a má gestão do órgão que fornece saneamento básico na grande Goiânia. “Assaltaram o BEG, o banco do estado. Decantação o caixa 2 da Saneago”, canta.
Vou asfaltar…
Nem os “Rezende” ficaram de fora. Escafandrista diz que “asfaltaram quase tudo”, lembrando a fama do político Íris de ter levado asfalto para todos os bairros de Goiânia. Na sequência, o rapper lembra das obras superfaturadas dos viadutos, aquele tal progresso pra capital. “Assaltaram cofres públicos, fizeram viadutos…”. Pega essa visão! Que acompanha a cena, sabe…
A Invasão do Parque Oeste
Outro tema lembrado pelo rapper foi a ocupação do Parque Oeste Industrial, região sudoeste de Goiânia. O bairro foi aprovado pela prefeitura de Goiânia no ano de 1957. Formado sem qualquer infraestrutura, o Parque Oeste Industrial tinha pouca visibilidade em Goiânia até meados dos anos 2000. Em 2004, várias famílias ocuparam uma área particular do setor e atingiu cerca de cinco mil moradores em menos de um ano. Essa “invasão” foi declarada ilegal pela justiça. Em 2005, uma operação policial de desocupação tornou-se um dos episódios mais violentos da cidade.
Enredo tipo Paolo Pasolini
Foi neste “pique Passolini” que Escafandrista narrou seu primeiro clipe solo. Curiosamente, Paolo Pasolini foi um dos grandes mestres do cinema italiano e mundial, autor de filmes com narrativas sadistas e oníricas, com enredo pautado em morte, sexo e violência. “Tem diferença?”, rima Escafandrista. A real comparação entre sua narrativa e os enredos do cineasta é metafórico. Entre os famosos filmes de Pasolini estão “As Mil e Uma Noites”, “Decameron”, “Édipo Rei”, “Teorema” e “Pocilga”. Referência pesada essa!
Outros situações vivenciada pelos goianos, como trânsito ruim, vizinhança sentinela, o crack na vitrine, leva a uma reflexão sobre o lado sujo da capital. “Parque oeste, Leide das Neves, seguimos de luto. Carreguem seus pecados, pecadores! Caiados, Perillos, Rezendes, pelos mortos em seus nomes, rimo flores, rimo flores”, finaliza a crítica desse enredo.
O melhor ainda está por vir (Spoiler)
Por essas e outras que este som carrega uma identidade goiana latente, sem passar pano, sem vislumbre poético, com mensagem cítrica, radioativa, que contamina qualquer romantismo histórico sobre Goiás. Quem curtiu o som já pode esperar muito mais de Escafandrista. O rapper já tem novo som engatilhado sobre Bullying, que promete chocar a crítica. Quem vai protagonizar esse novo videoclipe é o irmão mais novo do rapper.
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