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Uma viagem através do tempo e da vida, por Ordem Natural

O rap nacional é cheio de histórias e personagens icônicos. Caminhadas marcantes que garantem a continuidade do som para as próximas gerações e que faz a música continuar tocando. Alguns artistas mesmo compartilhando vivências, conseguem transformar sua vida em algo singular, dar um ar especial e quase folclórico pra sua arte e suas próprias personas. Talvez Lumbriga, Gato Congelado e DJ Mako seja uma dessas personalidades notáveis dentro da cultura. Formando o Ordem Natural e produzindo seu disco autointitulado, lançado em 2014, o trio é dono de uma das jornadas mais ímpares e belas da cena. 

Essa narrativa tem um início muito anterior a essa década, ainda no século XX. 1999 é o ano de formação do Quinto Andar, lendário grupo de rap do Rio de Janeiro que promoveu uma revolução no conteúdo, estética e modelos de produção da nossa música até então, e também é o pontapé inicial de uma série de acontecimentos talvez nunca mais vistos na cena. Formado por Marechal, De Leve, Shawlin, DJ Castro, Xará, Lumbriga, Gato Congelado, Tapechu e Matéria Prima e Pai Lua, o time acabou só lançando um álbum, o clássico “Piratão” e diversas faixas emblemáticas, e após isso acabou dissolvendo-se. Porém, com suas rimas despretensiosas mas muito técnicas, além da maneira com que encaravam suas posições como artistas, foram responsáveis por permitir que novos elementos fossem inseridos no rap nacional. Por exemplo, “Rap do Calote” fala sobre a vivência do Rio de Janeiro sob a ótica de quem tá no veneno e precisa dar aquele jeitinho, seja pra comer ou pra pegar uma condução, tudo de contado de forma irônica e bem humorada, mas sem deixar de ser próximo da realidade. Esta desconstrução das óticas do movimento serviu não apenas pra influenciar novos artistas vindouros, mas também para a construção da identidade dos próprios rappers participantes do coletivo. 

2005 foi o ano da dissolução do Quinto Andar, que acarretou numa transição na vida dos seus integrantes, em diversas aspectos. Marechal e De Leve seguiram carreira solo e os demais membros do extinto grupo organizaram sob a alcunha de Subsolo. O nome do primeiro coletivo não possuía um significado, escolhido ao acaso e de certa maneira representando bem o que foi essa iniciativa que chegou tão longe. Porém, após essa significativa jornada, era impossível não entender ela como marcante na vida dos artistas. Subsolo refere-se a descida do “Quinto Andar” até a parte mais baixa do prédio, entretanto vai além do trocadilho. Trata-se de uma nova trajetória marcada por um período bastante difícil para os MC’s, evidente no teor do disco “Ordem de Despejo“, o único da formação. Até mesmo a produção do disco propriamente dita foi uma ocasião especial e uma reunião bastante carregada de sentimento. Todos os artistas isolaram-se num sítio no estado de São Paulo, onde fizeram as faixas do álbum. Encarando o caos social de suas realidades, lidando com luto de amigos próximos, a falta de grana e também com as novas e ainda desconhecidas perspectivas de vida e carreira, “Ordem de Despejo” fez-se como um dos registros mais pessoais, únicos e inovadores do rap nacional. Este disco abriu espaço para que outros MC’s pudessem falar de vários assuntos e mais que isso, se sentissem seguros para falar de suas inseguranças, antes mesmo que vários outros pensassem nisso. Uma vanguarda dentro do underground nacional.

Matéria Prima conta um pouco sobre algumas experiências do grupo em uma edição do podcast do portal Raplogia, confira abaixo:

O mesmo Matéria Prima afirma em “Ordem de Despejo”  que o grupo buscava ir além do que o rap já tinha mostrado. De certa forma isso vai além da cena, da música e do mercado, vai de encontro a alma e personalidade dos MC’s e nesse ponto que chegamos ao Ordem Natural. Após o lançamento do disco do Subsolo, cada um dos membros seguiu sua própria caminhada e Lumbriga, Gato Congelado e DJ Makô formaram seu time fechado. Indo além do que chegou Subsolo e Quinto Andar, o trio chegou no ponto mais profundo de todos, sua própria alma artística e pessoal. Carregando uma estética mais introspectiva, eles agregam todos os ricos elementos das formações que participaram e construíram um dos registros mais singulares, seu álbum autointitulado. 

“Ordem Natural nasce dos nossos principais questionamentos: O que buscamos aqui? Para onde estamos indo?” – afirma o grupo


O disco propõe a mais difícil viagem, que é por dentro da mente humana. Após fazer tanto, criar muito e construir uma relevância inegável, os artistas voltaram-se para si mesmos e entenderam que todas as questões surgidas durante a vida, podem ter uma resposta bem próxima do “eu“. É interessante perceber que essa abertura de pensamento e vulnerabilidade apenas dá-se pela contribuição que Subsolo e Quinto Andar proporcionaram a cena, funcionando como um arte que retroalimenta estes MC’s. Mesmo assim não é uma tarefa fácil se autoconhecer e colocar tudo para fora. Não à toa, a primeira faixa é uma oração de São Jorge, popularizada na música “Jorge da Capadócia” de Jorge Ben Jor e sampleada no álbum “Sobrevivendo no Inferno” do Racionais MC’s

Servindo como preparação, a prece soa um pedido de proteção para a caminhada em vista, pelo próximo desconhecido. Abre então caminho para os versos, que tem início em “Omm“. Segundo os artistas essa é uma palavra que define o som do universo, que carrega em si todas as outras palavras, uma representação do tudo. Essa generalidade demonstra um ideal comum entre as pessoas, que existem elementos que dividem nossa existência entre nós e que assim como as palavras, saem de dentro da gente. Talvez por dividirem caminhos parecidos por tanto tempo, o trio consegue notar estas semelhanças entre si e acabam funcionando com um só organismo.

“Tá no ar, no andar/ No pulsar, no olhar/ Em ser, vem viver e saber onde está/ Onde está?”

Essa faixa funciona como um incentivo, o primeiro passo na busca de uma paz com o mundo a sua volta. Não é uma procura por escapismo ou por uma positividade utópica (good vibes) e sim uma harmonia com si mesmo. Um equilíbrio que permite uma melhor visão da realidade e sua influência nesse processo. Seria impossível uma fuga do mundo nesse atual momento, afinal ele nasce do contato com o cotidiano físico e mental. Isto fica evidente nos seguintes verso de Lumbriga, na mesma faixa:

“Cada dia um momento, perfume ou lamento/ Veneno tragado jogado no vento/ Tormento sagrado uma busca divina/ Um presente soldado, missão sua sina”

Como mencionado, esta é uma jornada arriscada e não uma fuga. Não há possibilidade de esquecer do mundo concreto quando ele que te motiva a sair de seu estado pleno, em busca de uma “iluminação” ou simplesmente compreensão de si mesmo. Neste processo a arte serve de incentivo e ferramenta de desprendimento, transformando o concreto em abstrato e vice-versa, quase que num movimento cíclico.
Este desprendendimento vem de um movimento natural e bastante simples, mas que deixa de lado todas as amarras provenientes do medo. Requer exposição e coragem para falar de si e do que sente, apresentar-se em meio ao desconhecido contando sua história para quem não te conhece na esperança de quem sabe transmitir vida através disso. “Abre a Geladeira” é esse depoimento, onde Gato Congelado faz a fusão entre Ordem Natural e Quinto Andar. Brincando com seu apelido, ao mesmo tempo que utiliza da introspecção para contar  seu testemunho através dos anos.

“Sou congelado, mas tenho sentimento/ Cada dia passado serve de viga de sustento/ De telhado em telhado, nem sempre a favor do vento/ Eu quero algo de bom não só aos meus”  

Soando irônico Gato faz desta sua apresentação um exemplo de autoconhecimento. Um acumulado de experiência que o faz saber e entender como sua personalidade e mente funciona. Sua intenções e vontades são claras para ele e mais importante, também é para quem o cerca. O MC afirma que quem o ama, o entende, e este é o propósito, chegar a um ponto onde a arte é inspiradora e real. 

Este relacionamento vai além de MC e ouvinte, é perceptível na visão que o trio tem das relações como um todo. Começando com o relacionamento construído entre os três, a faixa “Ordem Natural” é uma grande síntese do direcionamento do grupo, sua ética de trabalho artística e posicionamento de mundo. Aqui eles tentam ressignificar as mazelas e problemas da vida, agindo com uma grande consciência coletiva que divide o peso cotidiano entre si. Neste aspecto percebemos como os encontros e desencontros da vida acabam sendo feitos, por meio das dores, onde tentamos achar uma saída em busca da felicidade encontrada no conforto do amor. 

“Até o anoitecer muita coisa pode acontecer/ Mundos e mundanos pelos lindos pastos/ Terras e oceanos, pensamentos vastos/ Os astros regem minha vitória/ E por onde passo vou plantando muito amor e glória”

Estes espectros nos acompanham a vida inteira, o que muda é nossa percepção acerca do “eu”. “Vai Minha Tristeza Pt. 1 e Pt. 2” foram produzidas ainda em 2004, 10 anos antes do lançamento do álbum do Ordem Natural. Aliada a juventude onde há muita coragem, o som reúne uma infinidade de ideias, carregadas de samples, num dos registros mais belos do rap nacional. As duas faixas fluem como uma só em uma naturalidade ímpar, simultaneamente a dois MC’s cheios de vontade de transformar sua música em algo relevante. Eles conseguiram, graças a muita maturidade e discernimento. 

“Ri mesmo sendo abstrato/ Eu dou um trato nas minhas letras pra que eu não cometa/ Os mesmos erros que a caneta me induz a escrever sem tema nem trauma/ Com os lema que a alma adere”  

Do outro lado, “Quanto Pesa” apresenta a maturidade concreta e materializada pelos versos. As palavras aqui possuem um peso diferente, acompanhado pelo beat com uma atmosfera mais carregada que a até então apresentada no projeto. É um despejo de vivência depois de uma vida cheia de rima e contato com a arte. Mais que isso, é quase uma prece que evoca os sentimentos do grupo, seja a respeito de sua realidade mundana ou “espiritual“. Aqui a esperança é dosada e apresentada de maneira dosada, em reflexo ao difícil e cada vez mais predatória sociedade,

“Saio das ruínas em chamas em quanto todos/ Carregam suas cruzes/ Uma legião perdida na escuridão das luzes que/ Reluzem opacas/ Ao tempo que vejo punho cerrados quebrarem facas/ Rostos marcados suando sangue, omissão!” 

Caminhando para a conclusão, percebemos que o grupo dá holofotes para a ordem natural, o crescimento, as dúvidas, medos e dores. Tudo é compreendido como parte integrante da existência e essenciais para um bem viver, que nasce através da auto compreensão. É impossível construir uma relevância com sua vida, sem entender aonde você quer chegar e quem você quer atingir, porém o primeiro receptor desta mensagem deve ser você mesmo. “Ordem Natural” é como um parto, dado através de conceitos pré-existentes, mas que foram fundamentados pelo próprio grupo e que ajudaram a dar luz a uma transformação pessoal dos artistas.”Cara ou Coroa” transmite esse sentimento da forma mais crua possível, apontando todas as contradições e vontades não alcançadas da vida humana, mas apaziguadas pelo o que conseguimos conquistar.

“E por mais que se almeje/ E por mais que planeje/ E por mais que deseje/ Hoje passa, passou/ Isso é só o que restou/ Ainda aqui estou e o amanhã é agora”

A vida, não só de Lumbriga, Gato Congelado e DJ Makô, é ditada pelas transições, com elas percebemos as mudanças, aprendizados e resultados. “Ordem Natural” é o acúmulo de todos estes elementos e a representação feita por quem pode ainda não compreender tudo, mas tem coragem de partilhar o viver e suas sensações, que tem bravura de respirar e perceber que está vivo e tudo o que isso implica. 

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