Na primeira parte (leia aqui), abordamos a questão do surgimento do Trap em Atlanta, das questões sociais relacionadas a origem do Trap, e um apanhado geral de personalidades influentes nesse universo.
Agora vou dar segmento nas reflexões, trazendo o debate pra cena no Brasil e explicando mais algumas características que são importantes pra entender esse gênero.
O Trap é um gênero contemporâneo, uma expressão cultural que transcende a música e é carregada de elementos e símbolos. É difícil tirar conclusões sobre o Trap, justamente porque ele está acontecendo agora, ou seja, não é um gênero com amplos estudos e esgotado como é o Jazz, por exemplo.
O Trap é o “novo” Rock?
A estética das sonoridades desse gênero, até ele se transformar no que é hoje, tem origem e influência no Crunk, estilo que surgiu no Hip-Hop no começo dos anos 90. O maior expoente do gênero é o Three 6 Mafia, um dos meus grupos preferidos desde sempre:
Se vocês ouvirem essa tape inteira, que é de 1994 (!!!), vão encontrar muitas sonoridades que se aproximam do Trap contemporâneo.
DJ Paul e Juicy J, membros do Three Six, foram dois personagens muito influentes no Hip-Hop anos 90, especialmente pela vocação experimental. Ambos eram amantes declarados do Rock’n Roll e essa marca do Rock foi determinante pra estética de som do grupo. Essa é uma das razões pela qual o Trap sofre grande influência do Rock, sendo algumas vezes chamado de “o novo Rock“.
O Trap abraça elementos do Rock, desde a produção, até a própria identidade visual. Na produção, o uso cada vez mais recorrente de distorções, é algo que certamente veio do Rock.
O uso dos subs 808 (graves), valoriza uma “sujeira” na sonoridade, tipico do Rock.
Nas palavras do gênio Luiz Café, “O 808 é a nova guitarra“. Alias, essa característica de produções sujas, é efeito direto do “Do it yourself” (faça você mesmo), herdado do movimento Punk. Assim, o Trap rompe com a hierarquia da produção, porque parte do principio de que não é necessário nenhuma megaestrutura para construir a música, ou seja, ao invés de inferiorizar a produção caseira e “suja”, ele valoriza esse tipo de produção, criando abrangência para uma série de experimentos e novas técnicas que subvertem os valores da alta cultura, criando uma cultura musical subterrânea, popular e muito mais acessível.
Esse fenômeno torna o Trap um gênero bastante democrático, colaborando para o fomento de uma cena underground paralela, enquanto a cena mainstream segue voltada para as superproduções.
Drill, Plug, Trap Soul
Há também um debate bem interessante sobre os subgêneros no Trap. Pra que não predomine a confusão, vou tratar desses gêneros brevemente.
O Trap Atlanta é aquele gênero de Trap que tratamos no primeiro guia, com raízes no mundo do crime, no gangsta Rap, e cujo palco é a cidade de Atlanta, nos EUA. Expoentes como Gucci Mane e Migos dispensam comentários e já são muito conhecidos.
Há também a Drill Music, cujo maior expoente é o produtor Lex Luger, que seria o Trap com raízes na cidade de Chicago, mais sujo, niilista, com graves muito marcantes, voltado pra temas relacionados ao mundo do crime (Drill é uma gíria usada pra falar de armas automáticas nos EUA), com linhas mais ritmadas e com menos “punchlines”.
Um estilo de Trap com BPM menor, que vai direto ao ponto na realidade de periferia, sendo um contraponto ao “Rap de mensagem”, que costuma propor uma politização ou um “dever ser“, voltado para a crítica social, ao contrário, o Drill busca retratar uma realidade criminal nua e crua, sem necessariamente pautar nas letras qualquer tipo de mudança social, buscando valorizar dentro do som a realidade dessas comunidades, usando o crime como uma forma de empoderamento.
https://www.youtube.com/watch?v=x5pDysDE8JE
Quanto ao Plug, o tema é bem complexo e muito interessante. A primeira vez que ouvi falar em Plug foi em uma entrevista que fiz com o Raffa Moreira, perguntei o que era o Plug e ele me disse que era “um mano plugado em tudo, nas melhores armas, nas melhores drogas, nos melhores estúdios”.
Depois, troquei uma ideia com meu parceiro Nansy Silvvs, hoje o maior produtor de Trap do Brasil, e a visão que ele me passou é que o Plug é um tipo de Trap que surgiu com os drum kits criados pelo produtor Zaytoven, de Atlanta, um dos maiores nomes do Trap mundial. Na visão do Nansy, o real Plug só pode ser feito por quem tem acesso a esse tipo de drum kit.
Na gringa, o termo Plug diz respeito a um mano que tem os contatos, que tem os acessos reais de drogas e armas. No Brasil, alguns artistas como o Raffa Moreira tratam o Plug como gênero. Outros artistas, como Blackout, gostam de utilizar o termo como uma forma de Hype, ou seja, procurando ganhar status com o uso do termo.
No entanto, há um contraponto defendido por manos como o Raffazy (WeTheMix), que trabalha com os gringos e diz que o Plug na realidade não é tido como um subgênero do Trap na gringa, ou seja, ninguém fora do Brasil diz que é “um artista Plug”, ou que faz “Trap Plug”, sendo essa uma autodenominação utilizada no Brasil como uma forma de Hype.
De qualquer maneira, a sonoridade das batidas Plug, parece ter uma relação muito mais próxima com o Pop, geralmente (nem sempre) buscando melodias mais alegres.
Já o Trap Soul fala por si só, é um estilo de Trap com forte influência do R&B, com elementos da Soul/Black Music, Jazz ou Blues, onde geralmente o artista procura uma desenvoltura de canto em cima do beat, acompanhando o ritmo. É o gênero de artistas como Bryson Tiller e 6lack, por exemplo, também chamado de R&B moderno.
Esses são os gêneros mais citados, os gêneros predominantes, mas não quer dizer que não tenhamos novas ramificações, porque como foi dito, o Trap não é, o Trap está sendo: É uma cultura em construção.
Decifrando o Auto-Tune
Uma das maiores críticas com a chegada do Trap no Brasil, se refere ao uso do auto-tune, aquele efeito que “distorce” a voz, tornando quase uma voz metalizada, digital. Ouvintes mais conservadores simplesmente detestam a sonoridade do auto-tune na voz.
A realidade é que o auto-tune não é nenhuma novidade no mundo da música, a novidade é a forma como ele vem sendo usado. Vou sair em defesa do auto-tune, e vou explicar o motivo: O auto-tune é uma forma muito interessante de democratizar o ato de cantar.
O auto-tune, numa visão técnica, deveria servir para corrigir as notas que o artista erra ou não consegue buscar. Sendo assim, o auto-tune passou a ser amplamente utilizado no Trap, porque simplesmente relativiza a necessidade do artista ter uma técnica vocal avançada, ou uma voz diferenciada e preparada para o canto, e dá brecha para que qualquer um possa fazer Trap, independente de ser um bom cantor ou não.
A influência do auto-tune na música contemporânea é marcante e irreversível, com fartos exemplos de sons que utilizaram esse recurso, em todos os gêneros musicais possíveis. O auto-tune é um plug-in de produção dos anos 90, absolutamente consolidado e que o Trap absorveu e acabou transformando em um recurso muito característico, ao subverter o seu uso para além da correção das notas, e transforma-lo realmente num recurso onde o uso exagerado acaba sendo proposital.
Pra quem duvida da influência da música Pop e Eletrônica no Trap através do auto-tune, esse exemplo aqui já é suficiente, a geração anos 90 (minha geração) vai se sentir nostálgica 😉
O Trap no Brasil
No Brasil, o Trap tem registrado grande crescimento. Inicialmente produto de importação, está se consolidando cada vez mais como cultura plural com características locais. Já se pode falar sem dúvidas em um “Trap nacional” ou em “Trap brasileiro“.
É difícil chegar num consenso de como o Trap ganhou forma por aqui, mas existem fatores importantes. A internet trouxe a possibilidade de globalizar a música ainda mais, tornando-a mais acessível. O youtube globalizou a imagem através do vídeo. E foi assim que se tornou possível a busca e reprodução de gêneros musicais de qualquer lugar do mundo, basta ter um PC conectado com a internet.
Acredito que foi assim que o Trap chegou no Brasil num primeiro momento, sendo apreciado e reproduzido pelos artistas locais. A grande explosão do Trap aconteceu, sem dúvidas, com a popularização do fenômeno Raffa Moreira, a partir das citações de outros MC’s consagrados da cena, valorizando o trabalho do Raffa.
Aqui, vou tocar num ponto muito importante e absolutamente fundamental: apesar de existirem sons já há alguns anos que utilizam elementos do Trap (especialmente nas batidas) aqui no Brasil, aquilo que se pode chamar de “Real Trap” é algo bastante novo, e que só agora, nos últimos três anos, começou a dar seus primeiros passos.
O que aconteceu é que durante algum tempo tudo aquilo que possuía elementos do Trap na batida, era considerado e chamado de Trap. Então, artistas como Costa Gold, Primeiramente e muitos outros, costumam rimar em batidas de Trap, mas na realidade são só as batidas que correspondem ao Trap, porque a forma de composição desses artistas é bastante diferente do Trap “real”, vamos dizer assim.
Não vou entregar segredos de composição aqui, porque isso é bastante subjetivo e vai de cada artista, mas posso dizer que o trabalho desses grupos é geralmente baseado num padrão de composição de Boombap, em cima de uma batida de Trap. Prevalecem os conteúdos do Boombap e a forma de composição, os MC’s simplesmente rimam como se fosse um Rap normal, naquela pegada mais clássica de valorização das rimas e de montagem de punchlines técnicas, cheias de conteúdo e bem rimadas.
É uma música mais voltada para o conteúdo do que pra forma, porque tem um apelo muito mais reflexivo do que sensitivo, diferente do real Trap, onde o objetivo geralmente é colocar o ouvinte numa atmosfera de transe. Isso não é uma crítica a esses artistas, que realmente gosto bastante, mas sim uma correção de um erro comum, que é tratar tudo que usa batidas de Trap como sendo real Trap.
Podemos citar como pioneiros no Trap do Brasil, o Cachorro Magro (alter-ego do Shaw) e a rapa do Nectar Gang, que já se aproximavam do real Trap quando ninguém fazia isso aqui no Brasil, e
inclusive na época chegaram a ser bastante criticados por isso. Eu particularmente sempre gostei.
Saindo desse Trap híbrido e partindo para o mais raiz, com a pegada de composição e flow Atlanta, troquei ideia com uma penca de manos de peso do Trap nacional, de modo a reconstruir essa história.
DaLua (foto de capa da matéria) me falou sobre suas referências e a importância da influência dos gringos, lembrando o quanto foi marcante a descoberta do Young Thug, artista bastante conhecido pela desenvoltura e atitude caótica, na formação da sua identidade musical. O MC que hoje é um dos grandes representantes do Trap nacional, me contou que percebeu que algo diferente estava acontecendo justamente na transição do estilo de som do Three 6 Mafia, para o estilo que o Gucci Mane faz. Foi nesse momento que ele se deu conta da revolução que estava acontecendo e procurou absorver dessas referências elementos pra consolidar seu próprio estilo. DaLua tem amplo material e é responsável por um dos freeverse mais pesados que já tivemos aqui no RND:
Izumed, outra referência da cena, que despontou recentemente com o hit “Famo$o”, também lembra que o Trap tem muito a ver com a atitude do MC. Os artistas Trap costumam corresponder a atitude caótica, rompendo padrões e agindo com total independência, bem diferente de outros gêneros que se prendem a aceitação positiva ou negativa do público.
Com um tom de voz muito potente para o uso do auto-tune, Izumed passa os dias em uma verdadeira Trap House, trabalhando seus sons em estúdio enquanto outros manos se viram como podem através do crime. O MC, que começou no Rap, transfere toda a simbologia e seus gostos pessoais para o estilo visual em suas tatuagens e clipes.
Izumed também lembra que o Trap, apesar de algumas temáticas de ostentação, é um gênero onde a maioria dos artistas é oriundo de quebrada, e a ostentação serve como uma maneira de superar simbolicamente as necessidades que os artistas passam ao longo da vida.
O DJ Luketa, da Recayd Mob, também é uma figura muito importante dentro da cena. Ele é o idealizador da “Solta o Trap“, festa only Trap mais tradicional de São Paulo, e me contou um pouco da história da Recayd e de como eles se tornaram a Mob (máfia) de Trap mais impactante da cena nacional.
O que era uma brincadeira num grupo de whatsapp, se transformou numa equipe autossuficiente, onde os integrantes trabalham em todos os segmentos profissionais que se relacionam com o Trap, desde a identidade visual, até o Tour manager.
A Recayd hoje conta com alguns dos nomes mais expressivos do Trap braza: Derek, Igu, Jé Santiago e Klyn formam uma seleção de peso, e recentemente atravessaram o Brasil com os shows da Doko Tour, a maior turnê de Trap realizada no país até o momento. Luketa me falou que os membros acabaram se conhecendo nas próprias edições da “Solta o Trap“, e com o Trap como paixão em comum, surgiu a necessidade de tocarem juntos, mas como não havia muito fomento pra esse tipo de show, eles criaram a própria cena, exatamente na ideia do “Dot it yourself” Punk.
O RND junto com o estúdio Primeirarte fez uma cobertura foda da passagem da Doko Tour em Porto Alegre, e vale a pena a conferida:
Nansy Silvvs, do Rio de Janeiro, hoje o maior produtor de Trap do país, é uma verdadeira enciclopédia do gênero. Assinou recentemente o álbum ESÚ, do Baco, que dispensa comentários e com certeza estará entre as cinco melhores produções de 2017, colocando o gênero Trap no topo, num caráter bem reflexivo e experimental em alguns momentos. Além disso, Nansy também tem contato direto com artistas de Atlanta, inclusive produzindo para os gringos. Na visão dele, o Trap tem potencial expansivo para se tornar o novo Funk, por seu caráter popular e aberto a experimentação.
Nansy me falou que na realidade, agora que o Trap está realmente chegando no Brasil, e citou a influência do Raffa Moreira em termos de referência para outros artistas, porque, segundo Nansy, o que se fazia antes do Raffa em relação a Trap não era exatamente dentro do padrão que já foi explicado aqui na matéria.
Denov, um dos artistas de maior ascensão na cena do Trap BR, é o exemplo clássico do processo de evolução musical pela qual grande parte dos músicos passam até chegar no Trap. Denov me falou que suas primeiras identidades musicais vieram através do movimento Punk, onde foi bastante atuante.
Num segundo momento, Denov abraçou o Trap quando teve contato com o single “Doko“, da Recayd, tudo muito rápido e muito recente. O MC fez questão de relacionar sua atitude artística a característica autossuficiente do punk. Isso fica bem evidente, especialmente pelo fato de que a maioria dos seus lançamentos tem 100% do processo de produção feito pelo próprio artista, desde as cover arts, até as composições e mixagens. Com a alma punk incorporada, Denov surge como um dos nomes mais promissores da cena nacional de Trap.
Em breve, além do guia, vou estar trabalhando com material exclusivo de produtores como o Draco Raw e o próprio Nansy Silvvz, e de MC’s e parcerias como Florence, Denov, Izumed, WeTheMix, Banca Prime e muitos outros.
Poderia citar vários artistas do real Trap braza aqui, então resolvi montar uma playlist com alguns dos sons que eu considero mais pesados na cena.
E você, conhece algum som de Trap nacional foda que não foi citado na matéria? Manda aquele salve no meu inbox!
Na terceira parte do guia, vamos entrar mais a fundo em questões do Trap pra além da música, como o consumo de Lean (drink de sprite com codeína), os clipes, e a moda de vestuário.
Espero que tenham gostado!
SKRRRR
*Conteúdo produzido pelo jornalista e sociólogo Braian Gehlen (ZEN), para o portal RND, todos os direitos reservados.