(Texto por: Eduardo Salgado da revista Exame)
Se a história pode servir de baliza, não há dúvida: a busca pela igualdade total de renda é completamente insana. Não há exemplo de povo que tenha evoluído ao instituir um modelo de remuneração desligado do esforço, da ambição e do talento individual. Os países da esfera comunista tiveram sete décadas para provar que seu modelo poderia funcionar.
Em 70 anos, nem um único produto de consumo de sucesso saiu de trás da Cortina de Ferro. Quando o Muro de Berlim caiu, em 1989, os alemães-orientais invadiram as estradas do lado ocidental com seus Trabant, carrinhos com motor em dois tempos e velocidade máxima de 90 quilômetros por hora.
Muitos desses Trabi, como eram chamados carinhosamente, foram simplesmente abandonados nas ruas.
Mas nem por isso o polo oposto — uma sociedade marcada pela disparidade extrema — não merece repulsa semelhante. A opulência de uns pode ser um estímulo poderoso às massas, desde que a maioria não esteja presa em um círculo de miséria ou se considere fora do jogo.
Se no século 20 cabia ao comunismo comprovar sua viabilidade, no século 21 é o capitalismo que está sob escrutínio. Não pela capacidade de gerar riqueza, bem entendido. Vale aqui um paralelo à famosa frase do ex-premiê inglês Winston Churchill sobre a democracia: o capitalismo é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros.
Ninguém com um pingo de juízo duvida de sua eficiência. O ponto é outro. O que, sim, está sendo cada vez mais debatido é a forma como a renda gerada é distribuída na sociedade. A pergunta de nossos tempos: por que o capitalismo é tão injusto? Por que perseguimos há mais de 200 anos o ideal de uma sociedade menos desigual — e continuamos falhando miseravelmente?
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Uma mostra cabal de como o tema anda mexendo com corações e mentes é o que se passou na vida do economista francês Thomas Piketty nas últimas semanas. Até recentemente, Piketty era apenas um professor e pesquisador da Paris School of Economics virtualmente desconhecido mesmo entre seus pares.
Quando EXAME o entrevistou, em março, quase ninguém tinha ouvido falar de seu novo livro, O Capital no Século 21 (com previsão de lançamento no Brasil para este ano). Mas o fenômeno Piketty estava prestes a estourar. Ao chegar às livrarias americanas, no mesmo mês, o livro revelou-se um estrondoso sucesso.
A obra, um calhamaço de quase 700 páginas, continua vendendo a uma média de quase 200 cópias por hora. A editora, que já teve problemas para dar conta da demanda, está prestes a lançar mais uma edição de capa dura. Até o fim de maio, os direitos de publicação tinham sido negociados para 27 países — talvez o mais improvável best-seller de todos os tempos.
Piketty obviamente renega a volta à aventura soviética. Embora faça já no título uma clara referência à obra de Karl Marx, o francês tem sido o grande assunto do momento por três outros motivos. Primeiro, porque faz um longo e inédito levantamento sobre a concentração de renda e de riqueza — principalmente nos Estados Unidos, na França, na Grã-Bretanha, na Alemanha e no Japão.
Algumas séries históricas voltam mais de 100 anos. Segundo, porque chega ao que acredita ser uma nova lei do capitalismo: no longuíssimo prazo, o retorno sobre o capital, o que inclui propriedades, investimentos, terras e máquinas, é maior do que o da economia.
Em outras palavras, o capitalismo teria uma tendência inevitável à concentração. Por último, o francês, seguindo uma linha altamente polêmica, arrisca um remédio: a criação de um imposto global sobre a riqueza.
Do vencedor do Nobel Robert Solow, de 89 anos, criador da teoria que explica o crescimento econômico, ao príncipe Charles, todos se sentiram motivados a dizer algo sobre as ideias de Piketty. Nos principais centros de pesquisa conservadores de Washington, onde até pouco tempo a palavra desigualdade era tida quase como um tabu, não se fala de outra coisa.
O francês virou o economista mais pop do momento. Mais recentemente, ele foi acusado pelo jornal inglês Financial Times de fazer barbeiragens na coleta de dados, de ter feito arredondamentos sem critério e, pior, de não ter base estatística para bancar seu diagnóstico do capitalismo.
“Não sei se meus críticos estão sendo justos, mas tudo bem. Coloquei todos os dados em um site para que pudéssemos ter um debate aberto”, disse Piketty a EXAME, no fim de maio.
A discussão sobre a robustez de parte dos dados e a validade de sua teoria ainda deverão dar muito pano para manga. Mas uma coisa ele já conseguiu: ajudou a colocar o tema da desigualdade no topo da agenda global.
Os economistas tentam há décadas entender o fenômeno da distribuição de renda. Por muito tempo, a grande referência foi uma hipótese levantada na década de 50 pelo Nobel Simon Kuznets, segundo a qual a desigualdade tenderia a acompanhar o grau de desenvolvimento dos países.
Nas sociedades pré-industriais, dizia Kuznets, a desigualdade é baixa porque essencialmente todos são pobres. Com a industrialização, parte da população segue para as cidades, passa a ganhar mais e se distancia socialmente em relação a quem ficou no campo.
À medida que as economias vão se desenvolvendo, ainda segundo Kuznets, os benefícios do crescimento se espalham e a desigualdade volta a cair — mas agora com um bem-estar generalizado. A tese serviu para explicar o comportamento da disparidade americana no pós-guerra — e assim ganhou ares de verdade.
O economista Edmar Bacha, criador da expressão “Belíndia” (o Brasil seria a mescla da pequena e rica Bélgica cercada pela gigantesca e paupérrima Índia), acompanhou de perto esse debate.
Ele utilizou a imagem da Belíndia num congresso internacional nos anos 70 para argumentar que, no caso da América Latina, os sinais eram de que a redução das distâncias ainda iria demorar muito tempo para acontecer. “Isso era o máximo que se dizia. Naquela época, não questionávamos a curva de Kuznets”, diz Bacha.
Mais recentemente, porém, a teoria de Kuznets começou a ser colocada em xeque. A distribuição de renda nos países ricos, após muitos anos de queda, voltou a crescer nos anos 80.
“Agora, Piketty jogou a pá de cal na hipótese do Kuznets”, afirma o brasileiro Francisco Ferreira, economista-chefe para a África no Banco Mundial e autor de vários trabalhos sobre o tema. Ou seja, o tempo, por si só, não vai resolver o problema da disparidade.
O capitalismo, é inegável, tem se provado uma poderosa arma para combater a pobreza. Nas últimas três décadas, a população mundial cresceu 50%, mas o número de pobres caiu de 2,6 bilhões para 2,5 bilhões. O principal responsável por essa queda foi a China.
Desde que o Partido Comunista Chinês decidiu abraçar a economia de mercado, 600 milhões de pessoas saíram da pobreza, algo nunca visto na história da humanidade. Na ponta oposta, no entanto, os ricos estão ganhando cada vez mais. Por contraditório que pareça, essa inédita redução da pobreza tem acontecido numa época de elevação indiscriminada das distâncias.
Um estudo recente da OCDE, grupo que reúne as nações mais ricas, ilustra bem esse ponto. O trabalho examina uma série histórica bem menos ambiciosa do que a de Piketty.
Foca no que aconteceu desde meados da década de 90, mas conclui o mesmo: a desigualdade vem subindo nos Estados Unidos — e também no Canadá, na Alemanha, na França, no Japão, na China, na Índia e na África do Sul.
“Na quase totalidade dos países ricos e na maioria dos em desenvolvimento, a maré elevou todos os barcos nas últimas décadas. Mas os iates subiram mais do que os barcos menores”, diz o sérvio Branko Milanovic, que foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial por 22 anos e, ao lado de Piketty, é considerado um dos maiores especialistas no assunto.
Entre as grandes economias, o Brasil desponta como uma das raras e felizes exceções. Por aqui, a pobreza e a desigualdade caíram ao mesmo tempo — embora o país ainda seja uma das nações mais díspares do mundo.
Qual, afinal, é o problema?
Como explicar as duas faces do fenômeno — a queda na pobreza e o aumento das disparidades? A linha mais aceita liga ambos os fatos à globalização econômica, que ganhou força nos anos 90.
De lá para cá, os empregos industriais mais simples migraram dos países ricos para a Ásia, deixando trabalhadores com baixa qualificação sem emprego nos Estados Unidos e na Europa e fazendo a festa de operários humildes do outro lado do mundo.
A China se tornou a fábrica do mundo — e a fome de sua economia por matérias-primas espalhou as benesses do crescimento para a América Latina e partes da África. A pobreza, assim, caiu acentuadamente em dezenas de países. No polo oposto, a globalização e as novas tecnologias acabaram beneficiando também os trabalhadores mais qualificados.
A distância entre a elite da força de trabalho e a massa começou a crescer ano a ano. Hoje, o 1% mais rico dos Estados Unidos, para ficar no exemplo da maior economia do mundo, absorve quase metade do crescimento total da renda. É isso o que despertou a ira de movimentos como o Ocupe Wall Street, que diz representar os 99% restantes.
Vale lembrar o que começou a se passar dentro das grandes empresas, motores das principais economias. Há, também aí, um aumento brutal das distâncias. Na década de 50, os presidentes das maiores empresas americanas embolsavam 20 vezes mais do que a média do mercado.
Hoje, ganham 200 vezes mais. Mas há casos extremos. Mark Parker, presidente da fabricante de material esportivo Nike, leva para casa um salário mais de 1 000 vezes maior do que a média da companhia. De certa forma, esses executivos passaram a ser tratados como celebridades do mundo do showbiz.
“Mudanças na política de remuneração para os altos executivos são, sem dúvida, um dos fatores do aumento da desigualdade”, diz Michael Förster, chefe da divisão social da OCDE.
Achar que o fato de as pessoas estarem melhorando de vida numa escala global encerra toda a questão é um equívoco. A partir de certo ponto, a desigualdade se transforma num problema econômico grave. Ela pode ser comparada ao colesterol: existe a boa e a ruim. A desigualdade positiva é aquela que incentiva as pessoas a estudar com dedicação, trabalhar e empreender.
Histórias inspiradoras de empreendedores podem ter um efeito multiplicador sobre milhões de pessoas. A desigualdade negativa é a que impede a mobilidade social. Em situações assim, o status social dos pais é determinante sobre o futuro dos filhos.
Por ter uma educação melhor, os filhos dos mais ricos ficam com os melhores empregos — como se fossem lugares cativos. Os filhos dos pobres acabam, na melhor das hipóteses, brigando pelos empregos que sobram.
Colocado de outra forma, países com mais disparidade de renda costumam ser os mais desiguais em termos de oportunidades. E isso é moralmente indefensável. Toda a engenhosidade do sistema capitalista assenta-se na noção do mérito. Se isso dá lugar a um jogo de cartas marcadas, a base moral se esvai.
Por isso mesmo, um número crescente de pessoas parece querer resgatar ideais dos homens das Luzes. Pensadores como o francês Denis Diderot, ao longo do século 18, engajaram-se na defesa que todos tinham de ter as mesmas chances de participar da vida econômica e política — um objetivo incrivelmente atual.
“Se uma criança passar a infância morando numa casa enorme e andando num carro de luxo porque seu pai e sua mãe são bem-sucedidos, não há o que dizer. Do ponto de vista da sociedade como um todo, o problema é se o dinheiro da família conseguir dar uma grande vantagem educacional a essa criança”, diz Michael J. Sandel, professor de filosofia da Universidade Harvard e autor do influente O Que o Dinheiro Não Compra — Os Limites Morais do Mercado. E é exatamente essa a discussão de hoje.
Nos Estados Unidos, quem nasce na base da pirâmide social tem cerca de 40% de chance de permanecer por lá, um número alto comparado aos 25% da Dinamarca. É daí que alguns economistas dizem, em tom de brincadeira, que se alguém quiser viver o sonho americano é melhor mudar para Copenhague.
Numa palestra sobre capitalismo inclusivo em Londres na última semana de maio, o economista Larry Summers, ex-assessor do presidente americano, Barack Obama, e crítico de Piketty, enfatizou a necessidade de os governos darem atenção redobrada à qualidade de serviços públicos, como saúde e educação.
No último discurso sobre o Estado da União, no começo do ano, Obama citou a palavra “oportunidade” dez vezes. Falou sobre programas para melhorar a qualidade das escolas públicas e aumentar o acesso às universidades.
Mas há mais. A desigualdade de oportunidades é não apenas injusta — ela gera ineficiências do ponto de vista econômico. Em economias nessa condição, há um desperdício enorme do talento de parte da população, gente que poderia estar produzindo muito mais.
Uma hipótese cada vez mais aceita entre os economistas é que países mais desiguais tendem, no longo prazo, a ter taxas de crescimento menores. O balanço dos estudos feitos até agora aponta nessa direção. Redistribuição, Desigualdade e Crescimento, publicado em fevereiro por três economistas do FMI, é o último deles.
O trabalho faz uma análise de 153 países por várias décadas e conclui que os menos desiguais registram uma elevação maior do PIB.
Como o estudo usa pesquisas domiciliares feitas de forma diferente em vários países, o FMI toma o cuidado de não recomendar suas conclusões como base para a adoção de políticas públicas. “Apesar dos problemas, acreditamos que os dados estejam no caminho certo”, diz Jonathan Ostry, um dos autores.
Os desafios brasileiros
No Brasil, as limitações que a desigualdade de renda impõe ao crescimento econômico estão evidentes na casa de toda família que pode pagar por uma empregada doméstica.
Mesmo com todo o avanço social registrado desde 1995, e de forma mais dramática a partir de 2003, os filhos de médicos, advogados, engenheiros e administradores têm 12 vezes mais chances de ser médico, advogado, engenheiro e administrador do que o filho da empregada doméstica.
Já na largada, Pietro, de 1 ano, filho de Dora Santos, arrumadeira numa casa de São Paulo, sai em desvantagem em relação a Nina, com exatamente a mesma idade, filha da advogada Sabrina Beltrame, também da capital paulista.
Num ranking organizado pelo Banco Mundial com 35 países de Europa, África e América Latina para avaliar a igualdade de oportunidades entre seus cidadãos, o Brasil aparece em penúltimo lugar.
“Fomos um dos poucos países que melhoraram a distribuição de renda nos últimos anos, mas se quisermos continuar avançando teremos de equalizar as oportunidades”, diz Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central que tem aconselhado o senador Aécio Neves, pré-candidato doPSDB à Presidência da República.
Uma das raras unanimidades entre os economistas mais iluminados da oposição e do PT é a conclusão de que será necessário mudar o foco da política social. Nos últimos anos, o Brasil conseguiu progredir por uma feliz conjunção de fatores. Milhões de jovens chegaram ao mercado de trabalho com o diploma do ensino médio.
Seguindo a lei de oferta e demanda, eles acabaram baixando a diferença salarial em relação aos que só terminaram o fundamental. Ao mesmo tempo, o crescimento do setor de serviços elevou a procura por trabalhadores menos qualificados, o que aumentou os salários. Bem na base da pirâmide social, o Bolsa Família foi importante para combater a pobreza extrema.
Com crescimento econômico, as empresas conseguiram absorver o aumento do salário mínimo sem provocar demissão em massa. De 1995 a 2012, o valor, descontada a inflação, dobrou.
Agora, com a economia rodando numa velocidade menor, a situação do mercado de trabalho deverá mudar. O país continua com uma taxa de desocupação próxima do pleno emprego (4,9% em abril), mas ninguém arrisca dizer quanto tempo isso vai durar.
“O salário mínimo não pode seguir subindo de forma indefinida sem que se tenha sustentação em ganhos de produtividade”, diz o economista Ricardo Paes de Barros, o maior especialista brasileiro em questões sociais e subsecretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.
Produtividade é um daqueles conceitos com várias facetas. Quando refere-se à economia como um todo, inclui temas como melhoria da infraestrutura e do ambiente de negócios, duas áreas em que é possível avançar em pouco tempo (mas nas quais o país tem andado a passos de tartaruga).
Voltada ao trabalhador, o aumento da produtividade envolve qualificação, o que costuma demorar mais a maturar. “Se não melhorarmos a qualidade da educação pública de uma vez por todas, daqui a duas décadas estaremos discutindo os mesmos temas de hoje”, diz Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas da escola de negócios Insper, de São Paulo.
Foco na primeira infância
O conceito do que se entende por educação tem, felizmente, se ampliado no Brasil. As ideias do americano James Heckman, Prêmio Nobel de Economia, estão ganhando cada vez mais seguidores.
Heckman mostra que a melhor arma contra a desigualdade social e a baixa produtividade é investir maciçamente em crianças já nos três primeiros anos de vida, período crucial para melhorar as habilidades cognitivas e socioemocionais. Educação infantil não se resume à construção de creches.
Inclui o trabalho de agentes que visitam as famílias e dão orientação aos pais, como já acontece em 260 cidades do Rio Grande do Sul. “É preciso reduzir a defasagem que crianças mais pobres apresentam quando chegam ao ensino fundamental”, diz Marcos Lisboa, vice-presidente do Insper.
De certa forma, o Brasil está longe da polêmica criada por Piketty. O francês defende o combate da desigualdade pelo lado dos impostos. A visão que parece predominar no Brasil é a necessidade de melhorar a distribuição da renda focando gastos públicos.
As chances de sucesso de Pietro, filho de Dora, não mudariam com o aumento do imposto sobre heranças, uma medida de apelo populista de difícil aplicação. Seu futuro depende da capacidade do Estado brasileiro de garantir uma educação pública de altíssima qualidade. Uma última observação a pedido de Dora: ela quer colocar Pietro numa creche. Mas não encontra vaga.