Diante do “quadro grotesco de violações” a direitos e da falta de condições adequadas para cuidar de detentos doentes, é obrigatório permitir que um preso com tuberculose saia da unidade prisional para tratamento. Assim entendeu o ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, ao determinar que o catador de materiais recicláveis Rafael Braga vá para prisão domiciliar.
O homem ficou conhecido por ter sido o único condenado (4 anos e 8 meses de prisão) por atos praticados durante as manifestações de junho de 2013. Na época, ele foi detido no Rio de Janeiro com uma garrafa do produto de limpeza Pinho Sol e outra de água sanitária — que, segundo a acusação, poderiam ser utilizados para agredir policiais em coquetéis molotov.
Solto em 2015, voltou a ir para trás das grades em janeiro de 2016, acusado de portar 0,6 g de maconha e 9,3 g de cocaína. A denúncia por tráfico de drogas acabou rendendo pena de 11 anos e 3 meses de prisão. Enquanto o julgamento aguarda recurso, a defesa alega que ele contraiu tuberculose depois de passar um ano reclamando de tosse, sem atendimento médico.
O ministro disse que a doença foi comprovada e que o réu vive situação “extremamente precária” na Penitenciária Alfredo Tranjan, dentro do Complexo Penitenciário de Bangu. Ele afirma que, segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o local registrou 350% de sua capacidade em fevereiro deste ano, tem sujeira “expressiva” (com ratos, baratas, lacraias e mosquitos) e não conta com simples medicamentos.
A superlotação, as péssimas condições de higiene e a falta de profissionais especializados podem propagar a tuberculose, afirmou Cruz, já que é geralmente transmitida por via aérea. Embora a jurisprudência do STJ seja contra a concessão de liminar em HC quando o pedido ainda não foi julgado por tribunal inferior, em órgão colegiado, o relator viu “coação ilegal” suficiente para afastar a regra.
“O quadro grotesco de violações aos direitos e às garantias fundamentais alcança distinto patamar em hipóteses que, como a de Rafael Braga Vieira, tratam de indivíduos que satisfazem o perfil corriqueiro dos encarcerados no país: negros, jovens, de baixa renda e escolaridade”, escreveu o ministro.
“Indivíduos que, além do encarceramento em massa que cotidianamente desafia a batalha histórica contra o preconceito no País, enfrentam insalubres condições de sobrevivência.” Ele também citou acórdão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro. A decisão vale durante o tratamento.
Sistema patológico
Em agosto, durante o 23º Seminário Internacional de Ciências Criminais, Schietti declarou preocupação com um regime que “contradiz sua função”, descumpre a “duração razoável da prisão preventiva” e tornou o garantismo pleno uma “utopia”. “Eu me sinto envergonhado de votar, muitas vezes, contra a concessão de Habeas Corpus”, afirmou no evento.
Flagrante forjado
Segundo o advogado de Braga, Lucas Sada, integrante do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), o catador foi vítima de flagrante forjado, e a sentença que o condenou por tráfico se baseou unicamente na palavra dos policiais — o que não é novidade em processos por tráfico de drogas.
Clique aqui para ler a decisão.
HC 415.508
Repressão do Estado não diminuiu uso nem comércio de drogas mundo afora
Há mais de um século o mundo vem tentando erradicar os entorpecentes — com resultados pífios. A chamada guerra às drogas aumentou os lucros de traficantes, a violência e o número de presos, sem, contudo, reduzir o consumo dessas substâncias.
O conceito de “droga” é amplo: engloba qualquer produto ou substância que provoque alterações no normal funcionamento da mente e corpo humanos. Dessa forma, também são drogas tabaco, álcool, açúcar, café, chás e remédios. Na história da humanidade, os entorpecentes representaram diversos papéis, de acordo com Henrique Soares Carneiro, professor de História Moderna da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos desta instituição. Entre eles, os de aliviar dores físicas e espirituais, de ajudar no sono, de promover experiências religiosas, e de fornecer energia para caçadas e combates.
“A questão do uso de drogas não se constitui, assim, apenas como um ‘problema’, mas faz parte da cultura humana há milhares de anos como um instrumento de estímulo, consolo, diversão, devoção e intensificação do convívio social”, afirma o historiador em artigo publicado na revista Diálogos, da Universidade Estadual de Maringá (PR).
Salvo uma ou outra experiência isolada, o uso de drogas era legalizado em todo o mundo até o início do século XX. As Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860), por exemplo, foram iniciadas pela Inglaterra após a China proibir a importação de ópio — produto monopolizado pela Companhia Britânica das Índias Orientais.
Na virada dos anos 1800 para os 1900, o panorama começou a mudar, impulsionado pelos EUA, e teve início a onda de proibição das drogas. Diferentemente do que se poderia imaginar, as bases da vedação não foram científicas ou médicas, mas sim sociais, econômicas, morais e religiosas, como aponta a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux em sua tese de doutorado na USP.
Os dois primeiros motivos estão no preconceito contra imigrantes e seus descendentes, que começavam a competir pelos empregos norte-americanos. Assim, entorpecentes como ópio (associado aos chineses), maconha (mexicanos), cocaína (negros) e mesmo álcool (irlandeses) foram considerados produtos consumidos por “vagabundos” e “criminosos”. Além disso, havia a pressão da crescente indústria farmacêutica, que defendia a proibição das drogas que não produzia.
Havia ainda a força da ética protestante, que pregava uma vida livre de vícios e práticas hedonistas, focada no trabalho duro, que levaria à salvação por Deus. O criminalista Rogério Taffarello, em sua dissertação de mestrado na USP, destaca a importância da Anti-Saloon League nesse contexto. Criada em 1895, a associação lutava contra os saloons, bares típicos da região centro-oeste dos EUA. Segundo a entidade, o uso de álcool (e outras drogas) atentava contra o moralismo puritano da classe média norte-americana. O grupo atingiu milhares de associados. Por isso, políticos passarem a ter medo de desafiar a exigência deles por uma “América limpa”.
E um religioso foi o grande incentivador do início da proibição às drogas: o bispo missionário anglicano Charles Brent, como conta o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em seu livro O direito penal da guerra às drogas (D’Plácido). O norte-americano Brent viajou por diversos países asiáticos pregando contra o uso de ópio — algo que ele considerava “imoral”.
Após conseguir a vedação a essa droga nas Filipinas, ele representou os EUA na Conferência de Xangai, em 1909, onde advogou pelo combate à substância extraída de sementes de papoula. Devido à ascensão dos EUA, outros países concordaram com a tese do missionário. A reunião definiu as bases para a Convenção Internacional do Ópio, tratado celebrado por 12 nações três anos depois, e que foi a primeira norma internacional sobre controle de entorpecentes.
Em 1914, foi promulgada nos EUA o Harrison Act, primeira lei federal a controlar o uso de drogas — no caso, ópio e cocaína. Conforme essa norma, tais substâncias só poderiam ser compradas mediante receita médica. Contudo, logo os médicos passaram a ser perseguidos pelos fiscais, que os acusavam de estarem autorizando indevidamente a aquisição de entorpecentes. Até que a Suprema Corte, em 1919, decidiu que prescrever essas drogas não era atividade própria de médicos.
Foi o passo inicial para se instituir um paradigma punitivista. No ano seguinte, o álcool seria proibido nos EUA, e assim ficou por 13 anos. Com o passar do tempo, novas convenções e tratados internacionais foram aumentando o rol de drogas proibidas e intensificando o combate a elas. E a guinada repressiva ganhou ainda mais impulso quando Richard Nixon assumiu a presidência dos EUA em 1969. O republicano logo declarou “guerra às drogas”, que seria travada pela erradicação do uso e do tráfico por meio de prisões em massa. Para isso, ele criou a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão do governo federal que passou combater os entorpecentes dentro e fora do país.
Nessa luta, valia até ligar o consumo de drogas aos comunistas — os EUA então travavam a Guerra Fria contra a União Soviética. Nesse cenário moralizador, exportado pelos norte-americanos a outras nações, aqueles que questionavam o combate aos narcóticos eram logo tachados de drogados, destaca Valois em sua obra. Dessa maneira, o debate público sobre essa questão ficou interditado.
Brasil surfa a onda
O Brasil, é claro, não escapou da política proibicionista. Seguindo a tendência mundial, Getúlio Vargas editou no começo de seu primeiro governo o Decreto 20.930/1932, que criminalizou a venda e a posse de maconha, cocaína e ópio. Já no Estado Novo, Vargas endureceu a repressão com o Decreto-lei 891/1938, que estabeleceu pena de 5 anos para o uso de entorpecentes e proibiu a sursis e o livramento condicional para delitos relacionados a drogas.
A matéria foi incluída no Código Penal de 1940. Sem estabelecer quais eram as substâncias proibidas e usando “fórmulas genéricas e termos imprecisos”, a norma ampliou seu significado, sustenta Luciana Boiteux em sua tese.
Em 1964, o Brasil ratificou a Convenção Única de Entorpecentes de 1961. O fato de esta norma, que intensifica a repressão a traficantes, ter sido validada no ano do golpe militar não é coincidência, diz a professora da UFRJ. “Não por acaso o momento coincide com o golpe de Estado que criou condições propícias ao aumento da repressão, ao reduzir as liberdades democráticas.”
Treze dias após a edição do Ato Institucional 5, que fechou o Congresso, instituiu a censura e restringiu o uso de Habeas Corpus, entrou em vigor a nova legislação de drogas. O Decreto-lei 385/1968equiparou o usuário ao traficante e passou a punir o incentivo à difusão de entorpecentes.
A relativa abertura política promovida pelo presidente Ernesto Geisel fez com que a Lei de Tóxicos (Lei 6.368/1976), em tese, priorizasse a prevenção sobre a repressão. “Contudo, a maioria dos seus artigos possui caráter normativo/repressivo e não preventivo. As propostas preventivas e o modelo seguido pela referida lei mostravam-se inadequados desde o início”, avalia Luciana.
Só 30 anos depois é que foi promulgada a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), com o objetivo de atenuar a punição a usuários. Dessa forma, a pena de detenção de seis meses a dois anos para usuários, prevista na Lei 6.368/1976, foi substituída por advertência sobre os efeitos dos entorpecentes, prestação de serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa ou curso educativo (artigo 28). Além disso, a norma, de 2006, ampliou o uso de medidas cautelares.
Por outro lado, a Lei de Drogas endureceu a punição para o crime de tráfico (artigo 33). A pena mínima passou de três para cinco anos de prisão, e as reparações subiram de 50 a 360 dias-multa para 500 a 1.500 dias-multa. E desde 1990, com a Lei 8.072/1990, tráfico de drogas é considerado crime hediondo (embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido em 2016 que o tráfico privilegiado, estabelecido no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, não tem essa natureza).
Efeitos da proibição
Só que a proibição e a guerra às drogas não reduziram o uso e o tráfico de entorpecentes. A Organização das Nações Unidas estima que 247 milhões de pessoas, ou uma a cada 20 pessoas do mundo, tenham usado pelo menos uma droga ilegal em 2014.
Como há demanda, estimulada pela aceleração do ritmo de vida das pessoas, a proibição apenas assegura que o dinheiro das drogas vá para organizações criminosas, afirma o jornalista italiano Roberto Saviano no livro ZeroZeroZero (Companhia das Letras). Nesta obra, ele diz que “não existe investimento financeiro no mundo mais rentável que o da cocaína”.
Para provar seu argumento, ele compara os rendimentos do pó com os das ações da Apple. Quem tivesse investido mil euros em papéis da companhia em 2012 teria 1,670 mil euros um ano depois. Agora, quem tivesse aplicado a mesma quantia em cocaína 182 mil euros ao fim desse mesmo período. Ou seja: 100 vezes mais do que o rendimento das ações da Apple, o título que mais gerou dinheiro naquele ano.
O pior é que a repressão às drogas, na realidade, ajuda a aumentar a lucratividade do tráfico, sem diminuir a oferta. Rogério Taffarello relata em sua dissertação que isso é explicado por dois fenômenos: o paradoxo dos lucros e o efeito hidra.
Segundo o primeiro, cada vez que as políticas de combate à produção e circulação de entorpecentes tornam-nos mais escassos, seus preços aumentam. Com essa alta, mais pessoas são atraídas para atuar nesse mercado, o que acaba por fazer o mercado retornar aos níveis de antes. Já o segundo postulado fixa que cada grande operação de desmantelamento de uma boca de fumo ou apreensão de drogas apenas tem o condão de abrir um novo nicho para atores que estavam fora dele, pois a procura por maconha, cocaína ou heroína nunca vai embora.
Mesmo sem atingir seus objetivos, a guerra às drogas é responsável por parte considerável do número de presos. De acordo com a edição de 2016 do World Drug Report, relatório sobre entorpecentes produzido anualmente pelo Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (Unodc), cerca de 18% da população prisional do mundo foi condenada por algum delito relacionado a drogas.
Nos EUA, 49,5% dos presos federais, em setembro de 2015, e 15,7% dos estaduais, em dezembro de 2014, estavam cumprindo pena por crimes desse tipo, informa o relatório de 2016 do Bureau of Justice Statistics, órgão do Departamento de Justiça. No total, havia quase 300 mil detidos por esse crime no país.
Já no Brasil, o tráfico de drogas é o crime que mais leva gente para as penitenciárias: 174.216 dos 622.202 detentos que o país tinha no fim de 2014, o equivalente a 28% dos encarcerados, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça. Desde a edição da nova Lei de Drogas, esse número explodiu: em 2005, eram 31.520 detidos por esse crime, 9% da população carcerária do país, que então contava com 361.402 pessoas. Isso ocorreu tanto pelo aumento das penas para tráfico quanto pelo exagerado número de usuários enquadrados como produtores ou vendedores.
“O excessivo encarceramento por crimes de menor potencial ofensivo relacionados a drogas é ineficaz em diminuir a reincidência e sobrecarrega os sistemas de justiça criminal, impedindo-nos de lidar melhor com crimes mais graves”, ressalta o Unodc no World Drug Report de 2016.
Além disso, o órgão da ONU avalia que estratégias de rapidamente desmantelar organizações de tráfico de entorpecentes pode gerar mais violência. Nesse cenário, toda a sociedade acaba pagando pelo que, no fundo, é uma disputa de mercado entre as facções criminosas. Vide o México, com seus 47.515 mortos por violência ligada aos cartéis de drogas entre 2007 e 2011, tal qual cita aviano em ZeroZeroZero.
Ou o Brasil. Conforme destacou o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP Bruno Paes Manso na revista piauí de fevereiro deste ano, o Primeiro Comando da Capital (PCC) foi o principal responsável pela queda de 80% na taxa de homicídios de São Paulo desde 1999, ao contrário do que alega o governo Geraldo Alckmin (PSDB). Isso porque a facção eliminou toda a concorrência e passou a ocupar o lugar do Estado na periferia.
Mas o PCC expandiu suas atividades para outros estados. E a disputa pelos fabulosos lucros das drogas elevou o número de assassinatos no país para quase 60 mil por ano. Não há outro lugar onde tantas pessoas tenham suas vidas ceifadas. Para efeito de comparação, o Brasil registrou 22.715 mais mortes violentas entre 2011 e 2015 do que a Síria, que está em guerra civil desde aquele ano, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016.
A publicação contabiliza 278.839 ocorrências de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil, de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, frente a 256.124 assassinatos no país do Oriente Médio, entre março de 2011 a dezembro de 2015, de acordo com o Observatório de Direitos Humanos da Síria.
E foi a briga entre o PCC e a Família do Norte, duas facções empoderadas pelo tráfico de drogas, que gerou os massacres ocorridos em prisões de Manaus, Boa Vista e Natal. Com cabeças de vítimas decepadas, membros despedaçados em poças de sangue e até churrasco de carne humana, as cenas dessas barbáries não podem ser esquecidas por qualquer um que tenha assistido aos vídeos, feitos pelos próprios presidiários, que tentavam mostrar a vitória de suas facções criminosas sobre os concorrentes nos negócios.
74% das prisões por tráfico têm apenas policiais como testemunhas do caso
Mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas têm apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. O problema, para quem estuda a área, é que prender e condenar com base, principalmente, em depoimentos de agentes viola o contraditório e a ampla defesa, tornando quase impossível a absolvição de um acusado.
Tanto o Núcleo de Estudos de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) quanto o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em sua tese de doutorado na mesma instituição, verificaram o percentual de 74% de autos de prisão em flagrante sem a palavra de testemunhas que não os policiais envolvidos.
No estudo intitulado Prisão provisória e Lei de Drogas – um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, o NEV-USP analisou 667 autos de detenção por porte de entorpecentes na capital paulista referentes aos meses de novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011. Eles representaram 70% do total desse tipo de detenções no período.
Já Valois examinou 250 documentos como esses em 2015, sendo 50 de cada uma das seguintes cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília. O juiz usou os 50 primeiros autos de flagrante relacionados a tráfico de drogas que encontrou nos cartórios das varas criminais de tais capitais. A sua tese de doutorado virou o livro O direito penal da guerra às drogas (D’Plácido).
Ambas as pesquisas chegaram ao mesmo número: 74% dos autos contaram apenas com o depoimento dos policiais que fizeram a prisão. Sem outros relatos, o delegado dificilmente relaxa o flagrante. Tanto que em 86,64% dos casos acompanhados pelo NEV-USP, o acusado respondeu ao processo preso.
O artigo 304, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal, autoriza a lavratura do auto de prisão em flagrante sem testemunhas civis apenas em casos excepcionais. Só que isso virou regra. Uma vez que raramente as detenções possuem outras provas do crime — o NEV-USP aponta que 85% dos autos não têm fotos — e que eventuais apreensões de drogas não comprovam o dolo da conduta, os acusados acabam ficando presos quase que exclusivamente pela palavra dos policiais.
E mais: eles terminam por ser condenados na grande maioria dos casos, embora o artigo 155 do CPP estabeleça que o juiz não pode “fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Nos 604 processos criminais decorrentes dos autos de prisão em flagrante sem testemunhas civis que o NEV-USP acompanhou, os réus foram condenados em 91% dos casos. Em 6% deles houve desclassificação, e, em 3%, absolvição. Os EUA têm percentual similar: acusados por tráfico são condenados em 93% das ações, conforme o Bureau of Justice Statistics, órgão do Departamento de Justiça.
A jurisprudência brasileira tem respaldado as prisões e condenações só fundadas em relatos de policiais. No julgamento do Habeas Corpus 76.557, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu não haver irregularidade no fato de o policial que participou da operação ser testemunha. De acordo com os ministros, isso não caracteriza suspeição ou impedimento do agente. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por sua vez, consolidou a interpretação na Súmula 70: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
O NEV-USP também indica que em 94,76% das condenações os juízes impõem pena de prisão, mesmo com 58,73% das punições sendo abaixo de quatro anos — o que autorizaria o cumprimento da pena em regime aberto ou a imposição de punições restritivas de direitos se o sentenciado não for reincidente nem integrar organização criminosa.
Dessa maneira, não surpreende que 28% dos detentos brasileiros estejam detrás das grades por tráfico de drogas, segundo o Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça. O artigo 33 da Lei 11.343/2006 é o crime que mais contribui para superlotação (taxa de ocupação de 167%) e para o déficit de 250.318 vagas de sistema carcerário.
Defesa fragilizada
No entanto, basear prisões e condenações quase exclusivamente em depoimentos de policiais viola as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Afinal, se foram os agentes que fizeram a detenção, como eles iriam testemunhar objetivamente sobre seus próprios atos?
Para o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, o criminalista Técio Lins e Silva, a prova policial é insuficiente para gerar prisões e condenações. E esse era o entendimento que prevalecia antigamente na doutrina e jurisprudência, relata o criminalista.
“Uma consulta na jurisprudência antiga do Supremo Tribunal Federal permite encontrar [o então ministro] Aliomar Baleeiro dando Habeas Corpus para trancar processos e anular condenações fundadas exclusivamente na prova policial. Só que o preconceito na Justiça Criminal ficou tão gigantesco que a possibilidade de ser absolvido no crime de drogas é quase impossível. O acusado de tráfico já começa o processo condenado, independentemente de haver prova ou não”, acusa.
Treinado sob a ideologia da guerra às drogas, que usa os entorpecentes como bode expiatório para outros problemas sociais, e agindo sob constante tensão, é raro que um policial possa ser considerado uma testemunha imparcial, afirma Valois em seu livro.
Por ter participado da abordagem, da prisão, o policial não deveria ser ouvido como testemunha, e sim como informante, opina o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Salo de Carvalho. O status é semelhante ao da vítima na ação, e se baseia no pressuposto de que a testemunha deve ter um distanciamento mínimo do fato, de forma a formar uma visão razoavelmente crítica sobre ele. Assim, diminuiria o peso do relato do agente no processo.
O argumento é semelhante àquele que defende que juiz que conduz investigação não pode julgar o caso. Isso porque o magistrado perderia a imparcialidade, e ficaria incompatível para avaliar adequadamente os pontos levantados pelas partes. Inclusive, essa é uma crítica comum ao juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro. Há quem sustente que, ao presidir as apurações da operação “lava jato”, autorizando prisões preventivas e interceptações telefônicas, Moro tenderia a direcionar as sentenças para validar suas medidas anteriores.
Já nas autuações por tráfico de drogas é difícil reverter o depoimento dos policiais, afinal, eles têm fé pública. Mas a situação fica ainda mais complicada se o acusado for negro e pobre, ressalta a ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro Maíra Fernandes.
“Essas prisões têm tudo a ver em relação ao lugar onde houve a apreensão da droga. Como a lei não distingue precisamente uso de tráfico, uma mesma quantidade de droga apreendida no Complexo do Alemão [na Zona Norte do Rio] e na Rua Farme de Amoedo [em Ipanema, na Zona Sul do Rio] pode gerar um registro de tráfico no primeiro caso e um de uso no segundo. Então, tem muito a ver com o CEP, a cor, com o nível social do abordado”, diz a advogada.
Outro lado
Nem todos veem problemas em prisões e condenações por tráfico de drogas apenas com testemunhas policiais. Na visão do advogado criminalista Bruno Rodrigues, os juízes não se baseiam só na narrativa dos agentes, mas também na quantidade de droga apreendida e na forma como ela estava empacotada. De qualquer forma, ele acredita que a palavra dos policiais deve ter o mesmo peso do que a dos depoentes civis.
O procurador de Justiça de São Paulo Márcio Sérgio Christino, que já conduziu diversas investigações e processos sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), sustenta que a maioria dos casos só tem testemunhas policiais devido à dificuldade de convencer alguém a depor contra um traficante. “Por acaso alguém acha que é viável procurar uma testemunha que deponha contra o traficante, sem que o Estado lhes nenhum tipo especial de defesa? Os dados dela ficam no processo. Mesmo que sejam riscados, eles vão ser visíveis para o advogado de defesa”. Ele garante não haver violação do direito de defesa, pois os procuradores do acusado poderão expor sua versão na ação.
Ao não exigir prova de dolo, Lei de Drogas facilita prisão de usuário como traficante
No sistema penal brasileiro, uma pessoa só pode ser responsabilizada por um crime se tiver agido com dolo ou culpa. Porém, não é isso o que ocorre com tráfico de entorpecentes. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso dá margem a arbitrariedades e dificulta ainda mais o trabalho da defesa.
Crime é um fato típico (previsto em lei), antijurídico (pois viola um direito) e culpável (passível de ser atribuído a alguém). Além disso, o delito se desdobra em elementos objetivos e subjetivos, ou seja, os atos e a conduta de quem os praticou.
Segundo o artigo 18 do Código Penal, “ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente” ou quando há modalidade culposa. Dessa forma, só ocorre delito “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (dolo, artigo 18, I, Código Penal) ou “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” (culpa, artigo 18, II, Código Penal).
Contudo, os policiais não costumam levar em conta se houve dolo ou não quando alguém é pego com drogas (os delitos desse tipo não têm previsão de culpa). Embora o artigo 28, parágrafo 2º, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) estabeleça que o juiz deverá pesar as circunstâncias geográficas, sociais e pessoais da abordagem policial para decidir se o caso é de uso ou tráfico, o que acaba por determinar essa classificação é a quantidade de droga apreendida. De acordo com este dispositivo, a quantia deveria ser apenas mais um elemento para se fazer tal definição. Mas, na prática, o enquadramento é feito principalmente com base na substância, e já pelos agentes que fizeram a autuação.
O modelo brasileiro seguiu o dos EUA, que estabelece responsabilidade penal objetiva em caso de tráfico de drogas, como aponta a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo.
A guinada ocorreu na Convenção para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas, que aconteceu em Genebra, em 1936. Na ocasião, os EUA queriam tornar o tipo penal do tráfico de drogas o mais abstrato possível, de forma a evitar que fosse necessário comprovar o dolo do agente, conforme relata o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em seu livro O Direito Penal da guerra às drogas (D’Plácido). Com isso, buscaram criar um delito de fácil apuração e condenação. Outra consequência dessa mudança de paradigma foi a ampliação das condutas que são consideradas tráfico de drogas. No Brasil, o artigo 33 da Lei de Drogas possui 18 verbos.
Amparada por esse amplo rol de condutas e sem ter que provar a intenção da pessoa, a acusação (policiais e integrantes do Ministério Público) ficou superfortalecida. Prova disso é que 74% das prisões em flagrante por entorpecentes têm apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação.
Em contrapartida, a defesa se enfraqueceu, e passou a ter que provar a inocência do acusado, numa inversão do princípio constitucional de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII, da Constituição). O resultado de tudo isso está claro no raio-x do sistema carcerário brasileiro feito pelo Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça. Conforme o último levantamento, de dezembro de 2014, há 174.216 presos por tráfico no país, e esse delito é o que mais leva gente para as penitenciárias: 28% dos 622.202 detentos do Brasil. Esse percentual é ainda maior quando a conta inclui apenas mulheres: 64% das presidiárias estão encarceradas pelo artigo 33 da Lei de Drogas.
Anomalia penal
Condenar alguém por um crime sem demonstrar que ele agiu com dolo ou culpa contraria um dos pilares do Direito Penal brasileiro, que exige a prova de que a conduta da pessoa contribuiu para a ocorrência do delito. Isso porque não existe responsabilidade penal objetiva com relação a pessoas físicas no país.
Na visão da ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro Maíra Fernandes, a punição por tráfico sem prova da conduta é uma “anomalia” responsável pelo sistema prisional estar “completamente superlotado”.
“Se não houvesse essa anomalia, se os juízes realmente considerassem a necessidade de comprovação da conduta, de provas concretas e tudo o mais, provavelmente não prenderiam como prendem, ou não manteriam preso como mantêm”, avalia a advogada.
A situação piora porque as cinco condutas que configuram o uso de entorpecentes (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo) no artigo 28 da Lei de Drogas são repetidas no artigo 33, de tráfico, aponta o professor da UFRJ Salo de Carvalho. A diferença entre os dois crimes deveria ser feita pela verificação do dolo. No entanto, o artigo 33 não tem nenhuma indicação de que o delito só ocorre se houver fins comerciais. E essa ausência dá margem a arbitrariedades, diz o professor.
“Já tem na estrutura normativa essa tipicidade extremamente volátil, porosa. Ao levar essas ambiguidades, essas lacunas normativas para dentro da realidade cotidiana, transformam isso numa carta em branco para a autoridade policial, que tem a arbitrariedade de definir se a pessoa vai ser enquadrada como usuária ou traficante”, opina.
Por sua vez, o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, o criminalista Técio Lins e Silva, entende que prisões e condenações arbitrárias continuarão ocorrendo se não houver uma mudança cultural sobre a forma como as drogas são encaradas pela sociedade.
Norma compatível
A necessidade de qualificar a conduta seria desnecessária para alguns atos do artigo 33 da Lei de Drogas, como produzir, fabricar e exportar entorpecentes, diz o advogado criminalista Bruno Rodrigues. Esses atos, explica, são impossíveis de serem praticados sem dolo. Rodrigues ressalta que se o acusado for usuário, ele pode apresentar um incidente de dependência química para provar que não é traficante.
O procurador de Justiça de São Paulo Márcio Sérgio Christino, por sua vez, afirma que o dolo é provado pelas circunstâncias, não só pela quantidade de droga que o acusado portava. E o réu só é considerado culpado após passar por avaliações dos policiais, do delegado, do Ministério Público e do juiz, o que garante a regularidade da ação criminal, destaca.
Tabela polêmica
Certos países, como Espanha e Portugal, estabelecem quantidades de drogas que são consideradas como para uso próprio. Acima disso, a acusação será por tráfico. Mas especialistas ouvidos pela ConJur discordam se essa medida ajudaria a evitar arbitrariedades.
De um lado, Márcio Sérgio Christino e Bruno Rodrigues entendem que a fixação de critérios objetivos não seria benéfica. Para o procurador de Justiça, essa regra facilitaria a vida de traficantes, que passariam a ser enquadrados como usuários se carregassem pequenas quantidades de droga — tática que, segundo ele, os comerciantes já empregam para fugir de penas altas.
Aos olhos de Rodrigues, a alteração fragilizaria a defesa dos usuários. A razão disso está no fato de que cada organismo reage de forma diferente aos entorpecentes. Logo, quem usa grandes quantidades de droga poderia ser injustamente enquadrado como traficante.
Por outro lado, Salo de Carvalho acredita que a delimitação das quantidades de uso aumentaria a segurança jurídica do sistema. Assim, abaixo de um determinado patamar, a pessoa seria presumida usuária. Se tal teto fosse ultrapassado, polícia e MP poderiam acusar de tráfico desde que provassem que o sujeito agiu com dolo — como idealmente já deveria ocorrer em todos os casos.
“Melhor forma de combater facções é cumprir as leis no sistema penitenciário”
As olheiras, barba por fazer e resfriado não disfarçam: o deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (Psol) está cansado. Cansado pela corrida à Prefeitura da capital, a qual perdeu no segundo turno para Marcello Crivella (PRB). Cansado por ter ignorado o recesso de fim de ano da Assembleia Legislativa do Rio e continuado com a agenda cheia em dezembro e janeiro, quando recebeu a ConJur. Porém, principalmente, segundo ele próprio, cansado de assistir à sociedade, governantes, parlamentares e magistrados proporem as mesmas medidas ineficazes de sempre para combater as facções criminosas e a crise carcerária.
“O sentimento da sociedade hoje, que, de alguma maneira, influencia o Judiciário, é que precisamos de penas mais duras, mais gente presa. Se prisão resolvesse, já estávamos como a Suécia. Mas, na verdade, as pessoas conhecem muito pouco do sistema penitenciário, que só é notícia quando tem rebelião ou fuga. A prisão não vai ser compreendida no grito das rebeliões, a prisão tem que ser compreendida no silêncio do dia a dia. Isso o Poder Público não entendeu ainda”.
Segundo Freixo, os únicos objetivos das penitenciárias hoje em dia são evitar fugas e rebeliões. Mas ele cobra espaço na agenda do Estado para a instrução daqueles que cometeram um crime e a garantia de que eles não percam seus vínculos familiares. A partir daí critica as medidas anunciadas pelo presidente Michel Temer (PDMB) para debelar a crise do sistema prisional, como usar militares para fazer revistas nesses estabelecimentos.
Para melhorar as cadeias, bastaria cumprir a legislação penal, ressalta o deputado. Ou seja: aplicar penas alternativas, respeitar as progressões de regime e evitar o prolongamento das detenções temporárias. Dessa forma, prisão seria reservada apenas para os casos mais graves. Também não há, de acordo com Freixo, como resolver a crise carcerária sem discutir a regulamentação das drogas. Afinal, a proibição não acaba com a demanda por entorpecentes, mas lota as penitenciárias — 28% da população prisional foi condenada por tráfico.
“O consumo só aumenta, os problemas sociais só aumentam. Não há políticas de saúde para as drogas, porque é preciso ter políticas de segurança pública. É muito simples: o debate não é se as pessoas vão ou não usar drogas, pois elas vão usar. O debate é quem vai controlar esse uso. Vai ser o Estado, por meio de políticas públicas? Ou vai ser a lógica do mercado, essa que conhecemos, que gera morte, guerra, prisão?”, questiona.
A ironia ácida e as perguntas retóricas são algumas das armas de Marcelo Freixo em sua batalha para tentar convencer políticos e o povo da importância do debate sem preconceito sobre as drogas, do direito de defesa e dos direitos humanos. Ele também ataca a ideia de que facções criminosas são as grandes responsáveis pelo tráfico de drogas no Brasil e pelos problemas que dele advêm.
“Certamente o que fica na mão do Primeiro Comando da Capital é uma parte menor do que a que fica na mão de quem controla internacionalmente esse tráfico. Por que não se investiga o dinheiro [do tráfico]? Talvez porque você chegue a lugares onde não se pode chegar, né?”, provoca — segundo a Polícia Civil e Ministério Público de São Paulo, 80% do faturamento anual (estimado em R$ 240 milhões) da facção paulista vem do tráfico de drogas.
Ironias à parte, Freixo alerta que a eleição de Donald Trump nos EUA mostrou que “a barbárie não pode ser considerada uma piada”. A seu ver, é preciso proteger a democracia dos discursos de ódio sobre segurança pública e prisões, que se alimenta do medo das pessoas. Até porque, diz Freixo, há clãs políticos no Brasil que surfam nessa onda — referência ao deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e seus filhos.
Assim como as propostas que defende, suas respostas também não são fáceis nem têm atalhos — próprias de quem diagnostica a realidade a partir de uma perspectiva histórica. Freixo é professor de História e deu aulas em presídio. “Sei o quanto a educação pode transformar aquela realidade para o bem da sociedade”.
Seu gabinete na Alerj (onde preside a Comissão de Direitos Humanos), no Centro do Rio, é decorado por quadros de revolucionários como Che Guevara, Rosa Luxemburgo e Carlos Marighella. Além disso, possui enfeites africanos e do Flamengo, seu time do coração. No dia da entrevista, o deputado estadual recebeu uma moldura contendo uma camiseta do time com seu nome e o número 50, o mesmo de seu partido.
À ConJur, Freixo contou como é negociar uma rebelião, defendeu investigações sobre o tráfico de armas e criticou a postura messiânica do Judiciário. Ele ainda afirmou que irá se candidatar a deputado federal ou senador em 2018.
Leia a entrevista:
ConJur — O Brasil vem assistindo a diversas rebeliões em presídios no começo de 2017. Na mais violenta delas, em Manaus, vimos o juiz Luís Carlos Valois entrar na penitenciária para negociar com os presos. O senhor tem experiência em negociar com detentos. Como se comportar num momento desses?
Marcelo Freixo — Eu acho que o juiz Valois estava correto de tentar conversar, de tentar negociar, porque a custódia do Estado envolve o Judiciário, o Executivo e o Legislativo, não só a secretaria responsável pela detenção. Eu não o conheço pessoalmente, mas sei que ele recebeu críticas, que claramente foram feitas por quem não conhece o sistema. Talvez seja um dos poucos juízes que conhecem o cheiro da cadeia. Eu já participei de muitas negociações de rebelião no Rio de Janeiro. A última que tivemos aqui foi em 2004. O mais importante não é nem o que se faz na hora, mas o que é feito antes, para evitar. Nossa sociedade não conseguiu se libertar da lógica escravocrata, em que Justiça se confunde com vingança — e o Judiciário não está imune a isso. O sentimento da sociedade hoje, que, de alguma maneira, influencia o Judiciário, é que precisamos de penas mais duras, mais gente presa. Mas, na verdade, as pessoas conhecem muito pouco do sistema penitenciário, que só é notícia quando tem rebelião ou fuga. A prisão não vai ser compreendida no grito das rebeliões, a prisão tem que ser compreendida no silêncio do dia a dia. Isso o Poder Público não entendeu ainda. Num momento de rebelião não tem mais jeito: o que tem que fazer é evitar mortes. O que se negocia numa hora dessas? Você tenta liberar reféns e evitar mortes. Todas as rebeliões que eu negociei foram bem- sucedidas. Todas. Resgatamos todos os reféns, e nunca teve um massacre.
ConJur — Qual dessas rebeliões foi a mais tensa?
Marcelo Freixo — Eu passei por algumas. Teve uma em Bangu 3, em 2003, na qual um agente penitenciário tinha morrido na tentativa de fuga dos detentos. Essa foi difícil, porque os agentes estavam muito tensos. Então, havia a possibilidade de um enorme conflito. Os presos estavam muito armados do lado de dentro, tinham mais de 50 reféns. Foram dois dias e meio de negociação na rebelião. Mas nós conseguimos com que os presos entregassem as armas e todos os reféns. A de Bangu, 1 que ficou famosa, originalmente foi um conflito entre presos que gerou a morte de um preso conhecido no Rio de Janeiro, o Uê. Porém, também teve tentativa de fuga. O Brasil inteiro estava olhando para aquela rebelião, a qual mexeu com toda a cidade. Mesmo assim, conseguimos fazer com que todos os reféns saíssem e não tivesse mais nenhuma morte depois que a negociação começou. A rebelião de Benfica em 2004 teve muitas mortes, foi muito violenta, semelhante às que estamos assistindo agora em Manaus e outras cidades. Isso porque tinha mais de uma facção na unidade, que era muito frágil, um prédio adaptado para ser presídio. Quando nós chegamos para negociar, a violência já tinha acontecido. Depois conseguimos controlar a situação, mas foi uma das mais difíceis pelo grau de violência. Cada rebelião tem uma circunstância distinta, porque os presídios têm realidades diferentes.
ConJur — Na hora de negociar uma rebelião, que estratégias o senhor usa? Como manter a calma nesse momento tenso?
Marcelo Freixo — Primeiro queria falar por que eu sou chamado para negociar rebeliões. Eu não tenho essa função — aliás, eu não era deputado quando negociei essas rebeliões. Depois que fui eleito, não teve mais rebelião, graças a Deus. Eu sempre fui professor, comecei a trabalhar nas prisões com 21 anos, hoje eu tenho 50. Eu comecei alfabetizando preso, dando aula de história. Sempre entendi que educação é um processo muito importante dentro das prisões, que nunca foi levado a sério. Eu era chamado porque os presos me conheciam, e sabiam que comigo não tinha nenhum acordo. Eu nunca fiz parte de nada, sempre entrei e fiz meu trabalho ali dentro. Depois trabalhei no conselho da comunidade, fiscalizava as prisões, elaborava relatório, fazia uma série de propostas. E eu conhecia os presos. Eu sempre negociei as rebeliões do lado dos negociadores do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), que são muito bem treinados. Eu sempre atendi a esses pedidos, embora não tivesse nenhuma obrigação de fazer isso – afinal, não era funcionário público nem recebia por essas negociações. Mas o Bope me levava para eu dizer aos presos que era para eles confiarem nos policiais, que não haveria massacre como ocorreu no Carandiru, e que seria preciso que eles entregassem os reféns e as armas para. Eu criava uma relação de confiança na hora tensa dessa negociação. Claro, tem todo um procedimento combinado com os negociadores do Bope, que eram tecnicamente muito corretos. Mas nós estudávamos antes a situação do presídio para sabermos o que poderíamos propor. É preciso ter credibilidade, diálogo. E é preciso ter palavra, isso era uma coisa que nós combinávamos com o Bope.
ConJur – Qual é peso das facções nas rebeliões?
Marcelo Freixo — Cada estado tem uma realidade muito diferente da dos outros, mas uma prisão que tem duas facções já está completamente errada. Tem um problema anterior, que é como surgem as facções. Elas não se organizam nas ruas e dominam as prisões, é o contrário. É o universo prisional nas suas contradições. Não ter política pública é a política pública do sistema prisional. Além disso, o Estado não cumpre a legislação de execução penal. A melhor maneira de combater as facções é cumprir as leis dentro do sistema penitenciário. Qual é o grande objetivo da cadeia hoje? Não ter rebelião e não ter fuga — e não que maioria dos presos passe a trabalhar, tenha um curso profissionalizante ou conclua seus estudos. Se o objetivo é não ter fuga e rebelião, é preciso organizar o caos, o que fazem dividindo as facções, que são tão poderosas que o próprio sistema se baseia na lógica delas. Isso acaba fortalecendo-as, o que vai gerar grandes rebeliões e grandes fugas. Quanto mais o sistema penitenciário entrega essa lógica, mais violento fica o país. Quando se classifica o preso por sua facção, fica a mensagem de que ele tem que ter uma facção para sobreviver no sistema penitenciário. E eu te garanto que a maioria esmagadora desses presos não tem vínculo organizado com o crime do lado de fora. Passa a ter lá dentro.
ConJur — E daí eles saem da prisão vinculados com as facções.
Marcelo Freixo — Não tenha dúvida disso. E a prisão fica mais violenta porque ela fica subordinada a uma lógica de um grupo criminoso, e não à lógica da lei, a uma perspectiva do Estado de ter alguma outra coisa diferente da violência. A violência dita a norma penitenciária a partir do próprio Estado. O Poder Judiciário não tem nenhuma responsabilidade sobre isso? Claro que tem. Ele fiscaliza as prisões? Cobra políticas públicas? Há reuniões sistemáticas de planejamento do que se pretende do sistema judiciário? Há superlotação, há uma quantidade gigantesca de presos provisórios que, depois de julgados, não pegam pena de prisão. Por que ficaram presos então? As audiências de custódia não são encaradas como políticas prioritárias. Portanto, tem o que fazer. Agora, o que fazer nas rebeliões depende de cada uma. Eu não posso falar de rebeliões de outros estados, mas, no Rio de Janeiro, todas as rebeliões que eu negociei foram tentativas de fuga frustradas que geraram revolta. O Rio não teve nenhuma rebelião de protesto por condições carcerárias, embora depois elas acabem por também reivindicar isso. Aliás, boa parte das reinvindicações são pertinentes, mas elas não nascem por isso.
ConJur — Em resposta às rebeliões do início do ano, o governo federal anunciou algumas medidas para combater a crise carcerária, como a construção de cinco novos presídios federais, repasses para a construção de uma penitenciária em cada estado, instalação de aparelhos que bloqueiam o sinal de celulares e uso de militares para fazer vistoria nos presídios. O que o senhor pensa dessas medidas?
Marcelo Freixo — Bom, primeiro que colocar militar para fazer vistoria em presídio é a coisa mais estapafúrdia que eu já ouvi na minha vida. Era mais fácil investir nos agentes penitenciários, que precisam de mais treinamento, de mais investimento. Invista nessa categoria, que hoje está massacrada. Invista na área de saúde — não há política de saúde no sistema penitenciário. Os presídios do Rio de Janeiro, por exemplo, são foco de tuberculose — um retrocesso de alguns séculos. E pensar que é o Exército que precisamos dentro da cadeia? Não é. Vai construir mais presídios? Eu não tenho dúvidas que tem que construir mais presídios, só que junto com isso, poderiam estar investindo nas cadeias de custódia. Com isso, talvez seria possível diminuir uma população carcerária que não tem necessidade de estar presa, afinal, 40% dos presos são provisórios. Além disso, poderia perfeitamente ter mais audiências de custódia, ter os chamados mutirões junto da Defensoria Pública e do Tribunal de Justiça, aumentar o número de defensores públicos para o atendimento jurídico ser mais ágil. Outro problema: a administração prisional é estadual, e a legislação é federal, a verba é federal. A verba do fundo penitenciário tem sido usada para outras coisas que não o sistema prisional. O Psol entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal questionando isso. Fora que o governo federal não tem os dados atualizados dos presos dos estados. Precisa de um censo para gerar políticas públicas eficazes. Se não há diagnóstico, você não sabe o que fazer, e sai propondo um monte de medidas de eficácia muito pequena.
ConJur — Como incentivar o trabalho nos presídios? Por meio da celebração de mais convênios com empresas? Seria uma boa ideia dar isenções fiscais para as companhias que empregassem detentos?
Marcelo Freixo — Sim, ao contrário das isenções fiscais que geralmente são concedidas. Isso é outra coisa importante — as prisões brasileiras são prisões de ociosidade máxima, não de segurança máxima. Quando uma pessoa é condenada a 10 anos, é preciso pensar em como esse tempo será gasto. Será um tempo ocioso ou um tempo gasto cumprindo a lei? O Judiciário deve ter responsabilidade por isso também. Senão, estará produzindo monstros. Há um processo de coisificação, de “monstrificação” nas prisões. Aí é muito importante um debate mais filosófico. Por que os direitos humanos são associados a bandidos? Porque o bandido é a forma, a expressão que se achou para chamar alguém que não é pessoa. O sistema sócio-educativo transforma o moleque em um número, e despersonifica-o. Esse processo de despersonificação também ocorre por meio de gírias, termos como “vagabundo”, “elemento”. Aí vão criando os “matáveis” na sociedade. Prisão é para os “matáveis”. É isso que pretendemos para a sociedade? É isso que a filosofia de Vitor Hugo já dizia: se quiser conhecer uma sociedade, conheça as suas prisões. Não é proteção de bandido, é proteção de um marco civilizatório mínimo para a sociedade.
ConJur — O que o senhor pensa de presídios administrados por entidades privadas?
Marcelo Freixo — Temos a experiência concreta dos EUA. Os EUA estão revendo seu modelo de privatização porque ele gerou uma indústria do encarceramento — há mais de 2,2 milhões de presos hoje no país. Eles entenderam que esse modelo não funcionou. Preso não é mercadoria. Há um equívoco de princípio no debate da privatização de penitenciárias — na verdade, isso encarece o custo do sistema, porque é caro manter pessoas encarceradas. Não venha me dizer que o Estado economiza com a privatização de presídios, porque isso não é real. O Estado paga muito mais por um preso numa unidade privada do que ele paga numa unidade pública, e isso não resolveu nada. Fora que essa ideia parte de um outro princípio, que é o de que o que público é ruim, algo que eu não aceito. O que é público pode ser bom. Depende do grau de transparência, das pessoas que são colocadas para administrar os serviços públicos.
ConJur — O senhor pensa que o sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crime punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?
Marcelo Freixo — As penas alternativas já estão previstas nas leis, o problema é que o Judiciário não acredita nelas. Se um garoto aqui na rua São José [no Centro do Rio] roubar um celular e sair correndo, a chance de ele ser pego, espancado e amarrado num poste lembrando um pelourinho é muito grande aqui. O Judiciário não está muito diferente dessa lógica do feitor. As penas alternativas são muito mais eficazes em diversos casos, porque a pena de prisão é cara e ineficaz. As penas alternativas não são um avanço para os presos, são um avanço para a sociedade.
ConJur — 28% dos presos cometeram tráfico de drogas. A regulamentação das drogas ajudaria a aliviar o sistema carcerário?
Marcelo Freixo — Esse é outro debate essencial. No Rio de Janeiro, o perfil dos presos por tráfico de drogas é muito semelhante ao perfil dos presos por furto, por roubo: jovem, pobre, com baixíssima escolaridade, de sandália e com poucos dentes. Esse é o perfil do traficante — morador de favela, negro. Daí vem a pergunta: qual é o perfil do preso por furto? É o mesmo. Do roubo? É o mesmo. Tem alguma coisa errada nisso. Quais são as grandes investigações que levam a essas prisões? Só se prende por flagrante. Esse é outro ponto curioso. Entre em uma unidade prisional e pergunte quem foi preso em flagrante. Você prende quem você vigia. Você prende quem você controla. Você não combate o crime, você combate os territórios que você quer combater, e os crimes desses territórios. Isso nós temos que olhar. O sistema penitenciário não é um instrumento de enfrentamento ao crime, ele é um instrumento de domínio de relações de poder na sociedade. Então, o sistema prisional tem muito mais vínculos com o domínio de territórios e de determinados setores sociais do que com crime. Qual foi o último grande traficante de armas que foi preso no Brasil? Como essas armas chegam às favelas? E as munições, que são quase todas elas produzidas no Brasil? Eu gostaria que os Tribunais de Justiça me respondessem. É eficaz isso que estamos fazendo?
ConJur — E isso se relaciona com as leis antidrogas?
Marcelo Freixo –— Muitos países, como EUA e Uruguai, estão avançando nessa área. Não podemos continuar prendendo quem quisermos fiscalizar, quem quisermos controlar, dos territórios que quisermos controlar. E isso usando uma legislação para drogas que nada tem a ver com o combate ao tráfico, com a redução do consumo. O consumo só aumenta, os problemas sociais só aumentam. Não há políticas de saúde para as drogas, porque é preciso ter políticas de segurança pública, então não é possível desenvolver aquelas medidas. Prende-se cada vez mais jovens pobres, com o mesmo perfil e do mesmo eixo social. Não se resolve o problema da segurança pública, não se resolve o problema da saúde pública, e tem-se um sistema penitenciário que explode. A guerra às drogas não é inteligente.
ConJur — Que modelo o senhor defende em relação às drogas? A descriminalização do uso, a legalização só da maconha ou outro formato?
Marcelo Freixo — Tem que legalizar. A nossa legislação não diferencia o usuário do traficante só pela quantidade, mas também pelo perfil da pessoa. Então, se a minha filha for pega com droga, a Justiça vai olhar de uma maneira. Se um jovem da mesma idade que ela, mas de uma cor diferente, for pego com a mesma quantidade de, a Justiça vai olhar de outra maneira. Isso não pode continuar assim. O debate de legalização é fundamental para que você desenvolva políticas de saúde pública sobre drogas. Isso não vai aumentar o consumo — qualquer pessoa que queira consumir drogas hoje consome, onde quer que seja. Há, por certo, demanda e mercado. As drogas já estão aí. Álcool é uma droga extremamente danosa em termos de saúde pública. Nós vimos o que aconteceu em Chicago nas décadas de 1920 e 1930 [quando o álcool foi proibido nos EUA]. Alguém em sã consciência sugere hoje a proibição do álcool para reduzir os danos das bebidas? Isso está em pauta? Por que não? Porque não tem o menor sentido. Tem havido redução do uso do cigarro. Por quê? Porque há políticas públicas para isso — há propaganda, há tratamentos da rede de saúde pública. Por que isso não pode acontecer com outras drogas, para que se tenha o controle sobre elas? É muito simples: o debate não é se as pessoas vão ou não usar drogas, pois elas vão usar. O debate é quem vai controlar esse uso. Vai ser o Estado, por meio de políticas públicas? Ou vai ser a lógica do mercado, essa que conhecemos, que gera morte, guerra, prisão? O debate não é se vai ter ou não vai ter droga. Para com isso, é claro que vai ter.
ConJur — Então o senhor defende a regulamentação de todas as drogas?
Marcelo Freixo — De todas as drogas.
ConJur —A proibição das drogas fortalece as facções criminosas?
Marcelo Freixo — Sim, além de outros grupos que não conhecemos porque não são presos e identificados. O que fica na mão do PCC, por exemplo, é uma parte menor do que a que fica na mão de quem controla internacionalmente esse tráfico. As drogas vêm de fora, as armas vêm de fora. Se eu te levar a um presídio e te apresentar os traficantes que estão presos no Rio de Janeiro, os caras não sabem para que lado fica a Bolívia. Eles nunca saíram do Rio de Janeiro, alguns nunca saíram de sua favela. E imaginar que aquele cara é responsável pelo tráfico internacional de armas e de drogas? Tem alguma coisa errada nisso. Se fica um bom dinheiro ali, muito mais fica em algum outro lugar, e eu não sei onde. Talvez no mercado financeiro. Ou será que existe um mercado paralelo de dinheiro? Mercado paralelo de droga tem. De dinheiro tem? Lógico que não. Por onde circula o dinheiro do tráfico de drogas e do tráfico de armas? No mesmo circuito de onde circulam as grandes fortunas — no sistema bancário, no sistema financeiro, no sistema imobiliário. Ou o dinheiro do tráfico de drogas está no colchão? Estamos dispostos a mexer nisso? Deveríamos. Se quisermos falar de tráfico e de grandes riquezas, por que não vamos atrás do percurso do dinheiro? Por que só vamos atrás do percurso do crime? Por que não vamos atrás do lucro, só da pessoa? Por que não muda nada? Por que não se investiga o dinheiro? Talvez porque você chegue a lugares onde não se pode chegar, né?
ConJur — Então o senhor pensa que essas facções têm algum tipo de acordo com os reais traficantes?
Marcelo Freixo — Essas facções são violentas. Não dá para ter nenhum romantismo: elas precisam ser enfrentadas. Afinal, são perversas, pensam no dinheiro e não tem nenhum pudor em matar. Não tem Robin Hood nessa história. Agora, elas não representam o grande crime organizado, porque elas não representam um grande projeto de poder econômico e controle financeiro de tudo. As facções são muito mais resultado do caos público. Eu costumo dizer o seguinte: mais do que crime organizado, nós temos um Estado desorganizado em relação às prisões. O crime é organizado nas prisões. Só existe porque existe um Estado desorganizado das prisões.
ConJur — Aqueles contrários à regulamentação das drogas afirmam que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que o senhor pensa desse argumento?
Marcelo Freixo — É baseado em quê? As manchas criminais se deslocam? Sim, se deslocam. Vimos isso aqui no Rio de Janeiro na experiência das UPPs. Com a falta completa de planejamento, houve deslocamento das manchas criminais, região metropolitana do Rio de Janeiro ficou muito mais violenta. Era previsível. É preciso planejar, mas parte-se de um princípio de que a massa que está no tráfico não vai para lugar nenhum, vai para outro crime. Talvez seja hora de olhar que massa é essa.
ConJur — Por outro lado, a regulamentação das drogas não poderia abrir oportunidades de trabalho no mercado legal delas?
Marcelo Freixo — Claro que sim. O tabaco e o álcool não empregam ninguém? Isso não é estímulo ao consumo de drogas, o senso comum precisa ser quebrado. A droga precisa ser pensada enquanto saúde pública, enquanto problema social. É preciso acabar com a hipocrisia de que a droga ilegal não é consumida. Isso não é verdade.
ConJur — Um levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. Como diminuir essa taxa de reincidência?
Marcelo Freixo — Em alguns lugares esse percentual é muito maior. Este número está sendo otimista. No Rio de Janeiro, o último percentual que eu tive era de 75%. Um cara é preso por 10 anos. Esse cara perde a família, porque as mulheres não aceitam passar por revista vexatória. Esse cara não estudou, não trabalhou. Ele sai da prisão sem receber documento. Vai para a rua depois de cumprir pena de 10 anos e, teoricamente, ele tem que arrumar um emprego para seguir a vida. O que você acha que vai acontecer? A taxa de reincidência reflete o que se faz no tempo da prisão. Tem uma questão central nisso que é o mito da ressocialização. Isso vem da sociologia norte-americana, que parte do princípio que a sociedade é ótima, equilibrada. Quando o sujeito erra, ele é encarcerado, a prisão o conserta e depois ele é devolvido para a sociedade. Não é assim. Se você tranca uma pessoa e a isola da sociedade, ela vai voltar pior. Ela voltar melhor é um milagre. Precisamos mudar as regras das prisões, mudar o cotidiano delas, construir políticas públicas eficazes para que esse resultado seja diferente. Eu tenho essa experiência de perto, afinal, trabalhei com educação na prisão durante muitos anos na minha vida. O grau de reincidência entre os presos que trabalhavam na escola conosco era mínimo. O grau de reincidência nas penas alternativas é muito menor, todas as pesquisas mostram isso.
ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Afinal, aumentar penas reduz a criminalidade?
Marcelo Freixo — Se fosse assim, se prisão resolvesse, já estávamos como a Suécia. E não estamos. Temos a polícia que mais mata e mais morre, temos a maior taxa de crescimento carcerário. E isso resolveu a criminalidade? Pronto. Os números mostram isso. Tem que haver prisão? Tem. Mas tem que haver prisão para casos muito específicos. A prisão não pode ser um espaço de detenção de quem sobrou numa sociedade de mercado. E não estou dizendo com isso que possa existir uma sociedade que não tenha mercado, antes que me acusem de esquerdopata.
ConJur — O Brasil tem quase 60 mil homicídios por ano. Como diminuir esse número?
Marcelo Freixo — Quem são esses mortos? Jovens e negros são a maioria esmagadora deles. E muitos homicídios também são cometidos por jovens e negros. É uma tragédia social. É pobre matando pobre.
ConJur — O que poderia ser feito?
Marcelo Freixo — Aí tem diversas questões, mas é preciso, mais uma vez, falar sobre o tráfico de drogas. A guerra às drogas é em territórios pobres. Se você está em guerra, seu objetivo é matar o inimigo. Não estamos precisando de guerra, né? Além disso, boa parte dos homicídios no Brasil é causado por armas de fogo. Tem um estudo interessante que aponta que mais de 80% desses homicídios acontecem por armas de pequeno porte produzidas no Brasil. Então existe esse problema das fronteiras que tanto falam? Existe, mas os homicídios ocorrem, em sua grande maioria, por armas produzidas aqui, por munição produzida aqui, sobre as quais não temos nenhum controle. Assim, ter uma política de controle das armas que circulam na sociedade é fundamental para a redução de homicídios.
ConJur — E diminuir o número de mortes de policiais, que também é o maior do mundo?
Marcelo Freixo — Temos a polícia que mais mata e a que mais morre. Por quê? Porque há uma lógica de guerra. Uma lógica dos “matáveis”. Você pode atirar à vontade. Acabou de acontecer uma tragédia no Rio de Janeiro: um menino de dois anos tomou um tiro em um parquinho porque estava tendo uma perseguição com tiro. Isso ocorre porque aquele perseguido é um “matável”, daí pode atirar nele, em qualquer lugar. Essa lógica não traz nenhum benefício para a sociedade. Nós temos vários casos como esse. E não é o aumento da circulação de armas que vai resolver esse problema. A polícia precisa ser mais bem treinada, mais preparada. A polícia tem que sair da lógica da guerra. A desmilitarização da polícia segue o modelo do mundo inteiro. O atual formato da Polícia Militar é oriundo da ditadura. E desmilitarizar a polícia não é desarmá-la, como algumas pessoas entendem. É mudar a lógica de funcionamento da polícia. É um modelo mais eficaz, mais próximo de uma democracia.
ConJur — Esse cenário de aumento constante da criminalidade, cumulado com a espetacularização da operação “lava jato”, faz com que os brasileiros passem a desprezar ainda mais o direito de defesa e os direitos humanos?
Marcelo Freixo — Se quisermos ter uma democracia, é fundamental que repensemos os direitos humanos. Tem uma camada da sociedade que é “sobrante”. O [sociólogo polonês] Zygmunt Bauman, que acabamos de perder, falava que eles são os “supérfluos”, os “sobrantes” dessa sociedade líquida. Na Europa, essa despersonificação ocorre com os imigrantes. Aqui, com os imigrantes das cidades, aqueles que estão fora dos centros. Se não conseguirmos mudar o paradigma de defesa dos direitos humanos, se não superarmos essa lógica de que “direitos humanos é proteção de bandido”, não avançaremos na democracia. E qual é o papel do Judiciário nisso? Como disse [o poeta alemão] Bertolt Brecht, “infeliz é o povo que precisa de heróis”. Tem juízes que precisam se lembrar disso. A salvação da democracia não está no Judiciário, assim como não está no Legislativo ou no Executivo. Eu não acho que o Judiciário seja um Poder menos corrupto ou mais corrupto, mas é um Poder que também tem suas contradições, como o Legislativo e o Executivo. O fato é que o Judiciário tem muito pouco controle, e sobre ele temos muito pouco conhecimento. A sociedade sabe quem são os deputados, sabe quem são os governadores, mas não sabe quem são os desembargadores, não sabe quem são os juízes. O Judiciário não é transparente. E o Judiciário é o único Poder cujos integrantes não são eleitos por voto. É muito perigosa uma sociedade que coloca quem não tem voto acima de todos. Nós superamos a Constituição de 1824, não existe mais Poder Moderador. Mas há juízes que acham que estão no Poder Moderador do Império. O Judiciário é muito importante para a democracia brasileira. Tenho profunda admiração pelo trabalho de alguns juízes. Mas os magistrados precisam entender que fazem parte de um sistema que não se limita às suas canetas.
“É absolutamente ilegítimo que o Estado limite o uso de qualquer droga”
A proibição das drogas, que vem sendo imposta há mais de um século, é “absolutamente ilegítima”, afirma o professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Salo de Carvalho. A seu ver, o Estado não pode limitar o uso de qualquer substância por qualquer pessoa. E o fato de tal vedação ocorrer por norma penal, e não administrativa, é “um abuso ainda mais evidente”, aponta.
Salo de Carvalho inspira-se em uma frase de um autor desconhecido usada na epígrafe do livro História Geral das Drogas, do pensador espanhol Antonio Escohotado: “Da pele para dentro eu constituo um Estado soberano”. “Eu assino embaixo dessa tese. Da pele para dentro eu detenho a minha exclusiva soberania, constituo um Estado soberano, e ninguém pode interferir naquilo que eu consumo. Ou nas minhas ideias”, opina o professor.
Autor do livro A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático (Saraiva), o especialista em Direito Penal defende a regulamentação de todos os entorpecentes, e não apenas da maconha, como vem ocorrendo em países como Uruguai e EUA. E, para ele, toda a cadeia deve ser legalizada — produção, distribuição e comércio.
Somente assim seria possível acabar com a falácia de que a proibição das drogas protege a saúde pública, e efetivamente abrir os hospitais e clínicas para viciados, que fogem deles por medo de serem denunciados. Ao contrário do que o senso comum prega, a regulamentação reduz o número de consumidores, destaca Carvalho, citando o fenômeno que ocorreu em Portugal. Isso porque o acesso a tratamentos permite que os usuários deixem de depender da droga.
Além disso, o professor da UFRJ ressalta que a regulamentação dos entorpecentes ajudaria a desafogar o sistema carcerário, uma vez que 28% dos presos foram condenados por tráfico. Porém, a legalização das drogas não seria suficiente para acabar com a superlotação das penitenciárias, diz. Para ele, isso só ocorrerá quando o Judiciário mudar sua cultura punitivista, e passar a acreditar em penas alternativas à prisão.
Em entrevista à ConJur concedida em um café no Centro do Rio de Janeiro, Salo de Carvalho também avaliou ser frágil o direito de defesa dos acusados de tráfico de drogas, criticou propostas de aumento de penas e se declarou contrário a penitenciárias administradas por entidades privadas.
Leia a entrevista:
ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Salo de Carvalho — A primeira pergunta que poderíamos fazer é se esse policial que fez a abordagem poderia atuar na condição de testemunha, e não como mero informante, exatamente pela sua vinculação com o fato. Isso porque se pressupõe que a testemunha tenha um certo distanciamento do fato que lhe permita ter uma visão minimamente crítica sobre aquela situação. Exatamente por isso que a vítima não presta depoimento como testemunha, e, sim, como informante. Só esse fato diminuiria o peso da informação que o policial presta em juízo, tornaria seus relatos bastante frágeis em termos processuais probatórios. O problema é que, na nossa estrutura judicial, acabamos hipervalorizando esses testemunhos de policiais. Vide a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual afirma que o depoimento do policial, por si só, é suficiente para a condenação. Ou seja, há uma presunção de regularidade absoluta desse sujeito que representa o Estado. Se nós estivéssemos em um Estado Democrático de Direito no qual se soubesse, pela experiência empírica, que a atividade policial é regular, é controlada, e que os desvios são episódicos, e não regulares, talvez, com todas as aspas possíveis, tivesse algum sentido ou se pudesse justificar um entendimento como esse.
Uma realidade como a nossa, marcada pela violência policial, onde os dados são absolutamente assustadores em termos de letalidade da ação policial e da irregularidade dos serviços policiais prestados, entendimentos como esses acabam gerando arbitrariedades extremas. Então, sim, essas pesquisas refletem bastante a realidade, os depoimentos servem para condenar e, na maior parte dos processos, são os únicos testemunhos, o que acaba gerando uma espécie de neutralização de toda essa violência cotidiana que exercita. Assim, o Judiciário acaba fechando os olhos para a realidade da própria estrutura policial, o que compromete muito não só a democracia processual, que é o que se busca num regular processo, mas a própria democracia constitucional.
ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Salo de Carvalho — Vou um pouco além dessa questão. A estrutura da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) acaba gerando vácuos de legalidade, porque todas as cinco condutas do artigo 28, vulgarmente conhecido como artigo que incrimina o porte para consumo pessoal, também estão entre os 18 atos do artigo 33, que trata do tráfico. Então, a conduta objetiva de trazer consigo, por exemplo, não diz nada. Ela pode tanto ser enquadrada como artigo 28 ou como artigo 33. O que é que vai fazer essa diferenciação? É o elemento subjetivo do tipo — dolo. A questão é a seguinte: o artigo 28 diz que guardar, trazer consigo droga para uso pessoal, tem o elemento subjetivo especial do tipo, aqui, para uso especial, que antigamente se chamava de dolo específico. E isso determina uma imputação do artigo 28. Qual é o primeiro problema? É que o artigo 33 não tem nenhuma indicação de elemento subjetivo para fins de comércio. Então, o problema começa normativamente, antes de entrarmos na realidade dura em que vivemos. Isso significa que qualquer finalidade que não seja para consumo pessoal cairá na imputação do artigo 33.
Vamos imaginar a seguinte situação: eu sou consumidor de droga, e peço, por qualquer motivo, que tu guardes uma quantia para mim, e tu, que não consome droga, a armazenas. Esse guardar ou esse levar consigo, que não é para uso pessoal, vai definir uma imputação do artigo 33. Mesmo que tu não tenhas intenção de consumir e que não tenhas intenção de vender. A intenção é de guardar, armazenar para outrem. Começa aí na estrutura normativa o problema da imputação. Tradicionalmente, se perguntássemos aqui no restaurante “você sabe o que é tráfico de drogas?”, 90% das pessoas que estão aqui diriam “sim, é uma conduta com finalidade comercial”. Só que não é isso que a lei diz. É qualquer outra conduta relacionada à droga que não seja para fim de consumo pessoal. Então já tem na estrutura normativa essa tipicidade extremamente volátil, porosa. Levadas para a realidade cotidiana, todas essas lacunas normativas são transformadas em uma carta em branco para a autoridade policial, que tem a arbitrariedade de definir se é caso de uso ou tráfico. E não estou nem falando da questão da má-fé. Temos um problema normativo que se transforma em um problema fático, que é possibilitar que o policial de boa-fé, a partir de uma serie de meta-regras,acabe atribuindo uma conduta do artigo 33 em vez do 28. No limite, essa abertura gera condutas de má-fé,como o policial negociar a imputação com a pessoa presa.
Respondendo à pergunta acerca do dolo, há um problema normativo, relativo aos elementos subjetivos do tipo, e que se desdobra em problemas empíricos ao longo do processo de criminalização. Claro que, na minha posição pessoal, a saída seria a descriminalização das drogas, mas uma das correções normativas que poderiam ser feitas no sistema proibicionista é de efetivamente delimitar as condutas do artigo 33 àquelas que tenham uma finalidade mercantil, que é o que as pessoas chamam de tráfico. Isso poderia ser corrigido pela jurisprudência, sem necessidade de alteração legislativa.
ConJur — Deixar que o policial decida se a quantidade de droga apreendida configura tráfico ou uso, sem que haja uma tabela fixando as quantias para cada um desses crimes, viola o direito de defesa?
Salo de Carvalho — Na questão anterior, tratamos do elemento subjetivo da estrutura normativa, que é um corretivo que deveria ser feito se o sistema for mantido como está, para que tenhamos respostas jurídicas mais adequadas à realidade da gravidade da conduta. O segundo corretivo que me parece necessário é exatamente uma delimitação de quantidades. Na realidade, a Lei de Drogas, no parágrafo 4º do artigo 28, fala que a definição se aquela conduta se enquadra no 28 ou no 33 será feita por uma valoração judicial. O juiz é que definirá isso, levando em consideração a quantidade de droga, as condições pessoais, os antecedentes do acusado, o local do fato. Mas, na realidade, quem faz a abordagem é o policial, e quase sempre a imputação realizada por ele se mantém inalterada até o final do processo. É difícil que uma imputação de tráfico feita pelo policial na abordagem seja modificada pelo delegado, ou pelo promotor na denúncia,ou na sentença. Então, a definição de quantidades mínimas para se configurar tráfico permitiria estabelecer um teto para o uso. A partir daí, se discutiria o elemento subjetivo.
Na legislação espanhola, são fixadas várias gravidades de tráfico, desde tráfico leve até um tráfico grave— o porte para consumo pessoal não é crime na Espanha, é uma infração administrativa. Por exemplo, consumir droga em ambientes públicos é como se fosse uma infração de trânsito, não uma infração penal. O que é crime é o comércio, e esse comércio é definido a partir de certas quantidades de droga. Assim, há uma quantidade limite até a qual se presume que a pessoa seja uma consumidora, sem mais discussão. Depois daquele limite, se discute a intenção ou não, e é feita a graduação — até x gramas é tráfico leve; até y gramas; tráfico grave, qualificado. Essas fórmulas legislativas possibilitam uma maior precisão na aplicação do Direito. E isso gera um grau de segurança maior— não só para o usuário, não só para o comerciante, mas para o promotor imputar a conduta, para o juiz defini-la. E, querendo ou não, gera um grau de responsabilidade criminal mais adequado à gravidade, em tese, da conduta. No Brasil não temos isso.
Tivemos uma proposta legislativa bastante tímida, eu diria, do Marcos Rolim [ex-PT], que foi deputado federal pelo Rio Grande do Sul, e com quem eu tive oportunidade de trabalhar.Tal projeto definia uma quantidade de maconha que seria considerada como para uso pessoal. E comparada com as quantidades estabelecidas nos países europeus, era uma quantia bastante tímida mesmo. Mas a proposta foi arquivada, e nós não temos nenhuma diretriz nesse sentido — algo que seria benéfico dentro da realidade que vivemos hoje.
ConJur — Quem estabeleceria essas quantidades? A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é quem hoje que estabelece que drogas são proibidas? Ou o Congresso?
Salo de Carvalho — Pode ser qualquer órgão, inclusive o Judiciário. No debate da ação que discute no Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, o ministro Luís Roberto Barroso propôs o teto para uso de 25 gramas de maconha.O mais comum, analisando o Direito Penal Comparado, seria uma agência reguladora fazer isso — no nosso caso, a Anvisa.
ConJur — A Lei de Drogas é uma norma penal em branco, porque ela proíbe genericamente as drogas, sem especificar quais. Há um déficit democrático no fato de uma agência reguladora efetivamente definir quais drogas são proibidas, ou as quantidades que diferenciam uso de tráfico?
Salo de Carvalho — Dogmaticamente falando, há um questionamento se as leis penais em branco ferem ou não o princípio da legalidade. O professor Nilo Batista, por exemplo, já trabalha com essa questão há muito tempo. No campo das drogas, quem critica muito isso é o professor Paulo Queiroz, de Brasília. Na minha dissertação de mestrado, sobre drogas, também bati bastante nessa questão. Se considerarmos o princípio da legalidade em sua pureza, efetivamente há um déficit de representatividade no fato de uma agência reguladora definir qual tipo de conduta é vedado. Mas em um sistema jurídico complexo como o nosso, eu prefiro uma delimitação das drogas e de suas quantidades feita por um órgão administrativo do que deixar isso aberto para o Judiciário. Ter essa definição gera um grau de certeza, de segurança, muito maior do que deixá-la a critério do juiz em um caso concreto. Embora ambas as técnicas causem problemas em relação ao princípio da legalidade, norma penal em branco e tipo penal aberto, um complementado pelo Legislativo e pelo Executivo, e o outro pelo Judiciário, no atual nível de punitivismo que nós vivemos, e de adesão do Judiciário a esse punitivismo, é muito mais garantista ter uma normal penal em branco que um tipo penal aberto. Embora, para deixar bem claro, eu entenda que ambos os dispositivos careçam de constitucionalidade.
ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Salo de Carvalho — Essa é a questão central da crítica à criminalização do porte para consumo pessoal. Nesse aspecto é minha posição é, desde sempre, utilizando uma frase de um autor desconhecido que o Antonio Escohotado Espinosa, um pensador espanhol que eu admiro muito, cita na epígrafe do livro dele História geral das drogas: “Da pele para dentro eu constituo um Estado soberano”. É bonito isso, não? E eu assino embaixo dessa tese. Da pele para dentro eu detenho a minha exclusiva soberania, constituo um Estado soberano, e ninguém pode interferir naquilo que eu consumo. Ou nas minhas ideias. É absolutamente ilegítima qualquer intervenção que limite o consumo de qualquer tipo de substância por qualquer pessoa. O Escohotado, inclusive, vai mais além na discussão das drogas que tradicionalmente conhecemos. Por exemplo, ele diz que não deve haver sequer regulamentação de venda de remédios com poder danoso maior, como morfina. Segundo ele, é ilegítimo o Estado exigir que eu tenha uma autorização para comprar aquilo que eu vou consumir. Claro, como todo acadêmico, ele agudiza o debate para chamar atenção para uma questão, digamos, menos problemática. Mas concordo com ele, e dentro do meu ponto de vista, qualquer intervenção nessa esfera é ilegítima—ainda mais por lei penal. Já acho ilegítima limitação por norma administrativa, e, por norma penal, é um abuso ainda mais evidente.
ConJur — Que modelo o senhor defende em relação às drogas? A descriminalização do uso, a legalização só da maconha ou a legalização de todas as drogas?
Salo de Carvalho — No meu ponto de vista, temos que nos aproximar do modelo que está sendo testado no Uruguai, e eu não vejo sentido de limitar só para maconha. Imagino nossos netos rindo da gente, dizendo: “Vocês eram proibidos de consumir aquilo que vocês desejavam, logo vocês, adultos responsáveis”. Não tem muito sentido essa limitação de liberar maconha e proibir cocaína. E do ponto de vista da produção, no primeiro momento é necessário ter um controle estatal.
Mas a descriminalização tem que ser em toda cadeia produtiva — produção, distribuição e comércio. Nesse aspecto, creio que o Uruguai vai nos dar algumas lições. Já temos experiências bem interessantes, e, em certo sentido, bem consolidadas, em alguns estados norte-americanos. O Colorado, nos EUA, por exemplo, é um paradigma hoje. A experiência portuguesa é extremamente fértil. E são experiências que contradizem o próprio discurso proibicionista,porque elas demonstram que o acesso à droga permite que o sujeito saia da rede de ilegalidade, por motivos óbvios, o que não gera aumento do consumo, como prega o discurso de pânico moral. Pelo contrário. O grande problema dos países europeus é a heroína. Com legalização em Portugal, os estudos empíricos do Observatório Europeu de Drogas mostram que não só não houve aumento, como em cinco, 10 anos, houve uma redução dos níveis de consumo, exatamente porque aquele sujeito que fazia um uso problemático da heroína passou a ter um acesso mais direto à rede de saúde. Assim, a descriminalização possibilita o acesso a rede de saúde, e aquele sujeito acaba deixando de consumir a droga.
ConJur — Então é uma hipocrisia afirmar que a saúde pública é o bem jurídico protegido pelos crimes relacionados a drogas?
Salo de Carvalho — É um discurso de legitimação. Penso que sequer os atores do sistema punitivo acreditam nessa falácia. É uma falácia justificacionista, que comunica muito bem, tem um apelo moralista muito forte. E esses apelos morais acabam nos meios de comunicação. Mas quem pensa seriamente no problema sabe que a intervenção política, no mínimo, é problemática — quando não desastrosa, quando não gera mais problemas do que soluções. Se eu sou consumidor, faço uso problemático de determinada droga, eu simplesmente deixo de acessar o sistema se saúde, porque sei que aquele meu consumo é criminalizado. A mesma coisa acontece com o aborto. Quando o sistema punitivo intervém em questões de saúde, acaba gerando mais problemas do que soluções. O Uruguai, por exemplo, descriminalizou o aborto. Com isso, nenhuma mulher morreu no primeiro ano de descriminalização.
ConJur — Há justificativa para que o tráfico de drogas seja considerado crime hediondo?
Salo de Carvalho —Não justifica nem ser crime. O [filósofo alemão] Friedrich Nietzsche, no livro Genealogia da moral, diz que um dos problemas da civilização ocidental é o excesso de moralina, essa substância tóxica que contamina a racionalidade. A seu ver, isso se deve à tradição judaico-cristã. Porque se analisarmos a conduta do tráfico, ela é uma conduta de comércio como qualquer outra. Se abstrair a substância, é uma conduta de comércio normal, e colocando a ilegalidade, é como a conduta de contrabando, de descaminho. A demonização dessas substâncias acaba justificando esse excesso, esse abuso que é a criminalização, e a hediondez é a criminalização mais grave que nós temos. Se pensarmos numa escala de gravidade das condutas, olharmos para as penas aplicadas e pelo tratamento legal, o comércio de drogas é um dos crimes mais graves que temos no nosso ordenamento jurídico. Para homicídio culposo, a pena é de 1 a 3 anos. Para fornecer, ainda que gratuitamente, droga para consumo, é de 5 a 15 anos. Isso fala por si só.
ConJur — Outro argumento usado pelos opositores da legalização é o de que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que o senhor pensa desse argumento?
Salo de Carvalho — É um argumento que deve ser levado em consideração. Inclusive, já vi esse ponto ser problematizado até por quem critica o sistema proibicionista. Há o risco de a atividade criminal migrar para delitos mais violentos, porque perderia sua fonte de subsistência. Daí ultrapassamos a mera discussão das políticas legislativas e passamos a enfrentar questões que são inerentes ao problema social que é a criminalização do tráfico, que têm a ver com exclusão social, que tem a ver com marginalização. O [antropólogo] Luiz Eduardo Soares, por exemplo, bate muito nisso. Qual é o grande problema das UPPs? É que se coloca um posto policial na comunidade, e só. Não há uma rede de serviços que possibilite que aquela comunidade ganhe qualidade de vida, que aquele menino que vai para o tráfico possa ser disputado pelo serviço social, pelo sistema educacional. Sem essa rede virtuosa, a presença policial vai gerar mais violência ainda. Então, mudar o sistema normativo sem pensar estratégias para essas comunidades pode ser problemático.
Agora, esse discurso não pode servir como um argumento ad terroremcontra a descriminalização. Temos aplicado a mesma fórmula desde a década de 1970, e ela não tem tido eficácia nenhuma. Não está diminuindo o consumo, não está diminuindo o comércio, não está diminuindo a produção. As primeiras convenções da década de 1990 da ONU sobre entorpecentes colocavam em pauta a possibilidade de erradicação da maconha do continente americano em 10 anos. No início dos anos 2000, a ONU simplesmente que isso era um “sonho messiânico”, que vemos sendo repetido pelo ministro da Justiça [Alexandre de Moraes]. Ou seja, o proibicionismo não consegue erradicar as drogas, o proibicionismo não diminui o consumo e comércio de drogas. O proibicionismo é um problema em si mesmo. E é para isso que temos que olhar. A descriminalização é o caminho alternativo a isso. Mas não vejo como isso possa ser feito sem que repensemos o nosso sistema repressivo como um todo. E isso implica, necessariamente, pensar quais seriam as estratégias não punitivas para a inclusão social dessas populações carentes.
ConJur — Quase 30% dos presos cometeram tráfico de drogas. É possível combater essa crise carcerária pela qual o país passa sem regulamentar as drogas?
Salo de Carvalho — Sem ter estratégias racionais mínimas de política de drogas — não digo nem legalizar —, não tem como resolver. Que estratégias são essas? Primeiro: deixar mais precisa a questão dos elementos subjetivos, e, sobretudo, ter diretrizes claras para o Judiciário, para o Ministério Público e para a polícia em relação aos níveis de criminalização. Sem isso, não tem como enfrentar o problema. E isso é o mínimo, é para começar a conversa. O nível de punitivismo que nós atingimos é radical. É interessante vermos como nós estamos nos aproximando do modelo punitivista dos EUA — mas com um grau de violência muito mais radical, um grau de violência policial muito mais radical. E sem pensar o papel do Judiciário nisso não conseguiremos ter uma mudança. Mesmo com alterações legislativas, não conseguiremos enfrentar esse problema se não tiver uma mudança na cultura judicial.
O Judiciário nacional aderiu explicitamente ao punitivismo. E mesmo reformas desencarceradoras acabam não provocando efeito. A Lei das Cautelares Alternativas (Lei 12.403/2011) e a Lei das Penas Alternativas (Lei 9.714/1998) são um exemplo disso. As alternativas à prisão, seja prisão-pena seja prisão provisória, viraram alternativas à liberdade. Isso demonstra claramente a cultura punitiva do nosso Judiciário.
ConJur — O sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crimes punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?
Salo de Carvalho — Sim! Sim! Sim! Acho que o exemplo mais evidente é o furto. Nós temos cerca de 80 mil pessoas presas no Brasil por furto, segundo o último censo penitenciário. E não é só furto — é apropriação indébita, receptação. É injustificável termos mais de 100 mil pessoas presas por crimes patrimoniais sem violência. Isso sem falar na qualidade da imputação do roubo — este delito e o tráfico são os dois grandes encarceradores no Brasil. Se passar alguém na rua e empregar o mínimo de constrangimento para tirar a minha bolsa, isso vai ser imputado como roubo. Se efetivamente filtrarmos a violência ou grave ameaça como elemento real para imputar o roubo, teríamos uma diminuição muito grande da prisionalização sobre o roubo. Mesmo pegando só aquilo que é enquadrado como furto, por exemplo, temos um número absurdo de prisões no Brasil. Por que essas pessoas estão presas? Pela interpretação do instituto da reincidência, fundamentalmente. Afinal, o Código Penal autoriza a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos mesmo em caso de reincidência.
Há pesquisas, feitas em diversos países, que apontam que quando perguntam sobre penas genericamente para as pessoas, a resposta, normalmente, é punitivista. Mas quando dão casos concretos, a tendência é que o público seja menos punitivista que os juízes. Então, se perguntarmos se as penas são baixas no Brasil, as pessoas tenderão a responder que sim. Agora, se perguntarmos se, por exemplo, uma pessoa que é presa pela segunda vez por ter arrancado a bolsa de alguém na rua merece cadeia, talvez as pessoas respondam que não, que essa pessoa merece uma pena alternativa. Mas a resposta do Judiciário vai ser a pena de prisão. As respostas dessas pesquisas indicam que aquele não viciado pelo sistema acaba sendo um olhar mais libertário do que punitivista. Isso é de se pensar. Não estou nem falando da questão se o reincidente tem que ter uma pena maior ou não, porque não é só da pena maior — é pena maior, regime mais grave, não substituição da prisão.
ConJur — Um levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. A pena de prisão funciona?
Salo de Carvalho — Os percentuais universais giram em torno de 50%, 60% da reincidência entre aqueles que foram presos. Agora, se a pena de prisão funciona? Depende para quê, né? A criminologia crítica mostra que ela não funciona para aqueles objetivos declarados, mas tem funções reais que ela produz, como segregar pessoas e grupos, isolar determinados indivíduos, aumentar os níveis de reincidência, aumentar os níveis de corrupção estatal. Para isso ela funciona bem. A prisão funciona como um ótimo captador de mão de obra para o crime organizado. Para isso ela é um sucesso. Agora, para as funções declaradas de ressocialização, de diminuir os índices de violência, já está demonstrado desde a década de 1960, com [o filósofo francês Michel] Foucault, com [o sociólogo canadense Erving] Goffman, que a prisão não funciona. Agora, se pensarmos em neutralização de pessoas, em regulação do mercado de trabalho em algumas hipóteses, em controle de população excedente, daí temos instrumento bastante funcional,por mais trágico que isso possa ser.
ConJur — Que medidas poderiam ser tomadas para melhorar a ressocialização dos presos?
Salo de Carvalho — O nosso modelo é fundado numa resposta retributiva. Todas as experiências que mudam essa resposta retributiva para uma resposta reparatória ou restaurativa, como agora está ganhando espaço a questão da restaurativa, conseguem resultados melhores. Então, é preciso quebrar esse círculo vicioso do retributivismo e do punitivismo, e pensar em respostas mais efetivas. Sobretudo naqueles crimes com vítima, os melhores resultados que temos vêm da interação entre autor do delito e vítima. E daí me parece que os modelos de justiça restaurativa são respostas interessantes, já temos algumas experiências muito virtuosas nesse sentido.
Outra saída é tentar fazer com que as penas alternativas sejam efetivamente alternativas, e não aditivas. Mas com um Judiciário extremamente punitivista, é preciso que a regra seja clara. Não devemos ter dispositivos como os atuais, com redações como “o juiz, nesse caso, poderá substituir a pena de prisão por medidas alternativas”. É preciso que a redação seja fechada, algo do tipo: “nesses casos, a pena é pena alternativa”; “nesses casos, não cabe prisão preventiva, mas fiança”. Em termos normativos, precisamos ganhar nessa capacidade reguladora do Direito, que se perdeu. Isso ocorreu por uma série de motivos, como a queda na formação cultural dos juristas. Mas isso é assunto para outra entrevista.
ConJur — E o que é possível fazer para melhorar o sistema prisional brasileiro a curto prazo?
Salo de Carvalho — Eu não vejo resposta a curto prazo que não passe por isso que a gente conversou — mudança na política de drogas, uma reforma brutal das polícias. A nossa polícia é um problema, a militarização ela é um problema. O grau de corrupção é muito grande. Mas uma resposta é certa: não é construindo mais vagas na prisão. Mesmo para aqueles que estão efetivamente cumprindo pena, é preciso assegurar-lhes um mínimo de dignidade.
ConJur — Como o senhor avalia as medidas anunciadas pelo governo Michel Temer para combater a crise nos presídios, como a construção de cinco novos presídios federais, repasses para a construção de uma penitenciária em cada estado, instalação de aparelhos que bloqueiam o sinal de celulares e uso de militares para fazer vistoria nos presídios?
Salo de Carvalho — Isso é mais do mesmo. É repetir uma fórmula que já se demonstrou ineficaz. Isso é um pouco aquela lógica do [escritor italiano Tomasi di] Lampedusa: mudar para que tudo fique como está. Mas é importante registrar que isso não é nenhum problema exclusivo do atual governo, que explicitamente demonstra uma posição mais punitivista que o anterior. Mesmo os governos Dilma e Lula, que tinham, em tese, posições mais humanistas em relação à repressão penal, pecaram muito. Muito por omissão, mas em alguns casos por ação, produzindo mais punitividade. Essa é uma questão que transcende a polarização contemporânea direita x esquerda.
ConJur — O que o senhor pensa de presídios administrados por entidades privadas? São uma saída para diluir a superlotação das prisões ou podem aumentá-la, devido à lógica de que “quanto mais presos, maior o lucro”?
Salo de Carvalho — O [sociólogo alemão Max] Weber classifica o Estado moderno como a regulação do monopólio legítimo da violência. Talvez essa seja uma das características principais do Estado moderno. Quando o Estado abre mão de sua intervenção nessa área, ele descaracteriza a sua própria essência como Estado. Passada essa introdução, é algo totalmente fora de um modelo minimamente racional pensar em privatização de presídios. Por uma série de questões, que envolvem não apenas a jurisdição da execução penal, mas os próprios serviços da administração penitenciária. Isso para trabalhar a questão em um plano mais teórico. Em termos práticos, os estudos que existem, sobretudo nos EUA, que capitaneou essa mudança, apontam problemas graves de aumento de encarceramento para a produção do lucro.
No ano passado, saíram várias reportagens nos jornais norte-americanos que denunciavam esse tipo de corrupção, inclusive em instituições juvenis. O livro Indústria do Controle do Crime, do [criminologista norueguês] Nils Christie, já demonstrava no final da década de 1980 o problema que ocorre quando se transforma pessoas condenadas em mercadoria. Essa não é uma experiência a ser seguida, mesmo que, em um primeiro momento, isso gere uma melhora das condições de vida dos presos. É um modelo contrário a essa posição de Direito Penal mínimo, garantista, que caminha para o abolicionismo, que é o modelo que eu sigo. O [jurista italiano Luigi] Ferrajoli contrapõe o modelo de Direito Penal mínimo e Estado social máximo ao modelo de Direito Penal máximo e Estado social mínimo. Tirar a capacidade estatal de fornecer serviços públicos nesse nível se aproxima demais do Estado autoritário. É antidemocrático.
ConJur — Um eventual crescimento no número de prisões administradas por entidades privadas pode aumentar o lobby pelo aumento de penas, como ocorreu nos EUA?
Salo de Carvalho — Sim, é inevitável. O preso vira um produto para esses empresários. Ele querem lucro, como em toda atividade empresarial — e isso é próprio da atividade, não estou demonizando. Então a tendência é que esses lobbies se organizem, legitimamente, inclusive, e isso acabe gerando aumento no nível de punitividade. E, como eu disse antes, isso na boa-fé, sem falar da má-fé. Me lembra uma reportagem do jornal The New York Times do ano passado dizendo que interceptaram gravações entre um diretor de uma instituição juvenil privatizada e um juiz. O executivo reclamando que o juiz estava não só condenando menos, mas condenando com penas mais curtas do que aquelas que eram a expectativa das metas da instituição. Fora toda a questão dos serviços prestados. Para aumentar o lucro, a empresa diminui a qualidade da alimentação, dos cuidados gerais.
ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Afinal, aumentar penas reduz a criminalidade?
Salo de Carvalho — Não reduz. Talvez esse seja um dos poucos consensos entre criminólogos críticos e criminólogos positivistas, ortodoxos. Não há nenhuma relação causal entre aumento de penas e diminuição de delito. Há casos em que aumento de pena diminui o delito, mas há casos que aumento de penas mantém as mesmas taxas de criminalidade, há casos que aumento de penas gera aumento de delito, porque elas são curvas independentes. São fenômenos distintos, com curvas autônomas. Isso também ocorre pela universalização do tratamento aos crimes.
Quando se fala do problema do tráfico de drogas, de qual tipo de droga está se falando? Em que local? O certo seria ter uma estratégia específica para enfrentar aquele problema naquele local específico. Isso reduz eventos problemáticos. O problema é furto e roubo de veículos. Então vamos pensar: qual é o ambiente que esse problema está ocorrendo e por quê? E daí enfrentar os seus fatores. Por isso que as promessas universalizantes nunca dão conta. E o aumento de pena é uma promessa universalizante, é uma fórmula geral, e isso efetivamente não funciona. Se o problema é furto no centro do Rio de Janeiro, então vamos mapear quem são os atores estão envolvidos nesse cenário, e como se faz para diminuir a vulnerabilidade desses sujeitos, que acabam praticando essa conduta por alguma razão. Isso produz resultados positivos. Não vai extinguir, pode ser razoavelmente controlado. Mas isso demanda investimento. E nisso estamos falando de Estado social, não só Estado punitivo. Não é só policial na rua. Policial ajuda? Ajuda. Mas o que ajuda ainda mais? Um serviço de assistência social que possa chegar nessas pessoas falando e entender por que elas estão praticando esses atos. Afinal, são pessoas que estão em situação de vulnerabilidade. Por que aqueles meninos estão morando na rua, não estão em casa, não estão na escola? Isso é trabalho do Estado social. Se diminui o Estado social e aumenta o Estado penal, tem repressão pela repressão.
“Mesmo sem provas, acusado de tráfico e furto já começa o processo condenado”
A Justiça Criminal é preconceituosa contra pobres e negros. Assim, quem é réu de tráfico de drogas praticamente já começa o processo condenado, mesmo que não haja provas e a acusação seja baseada apenas na palavra dos policiais. Com isso, o Judiciário é um dos principais responsáveis pela crise do sistema carcerário. Quem traça o diagnóstico é o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Técio Lins e Silva, sócio do Técio Lins e Silva, Ilídio Moura & Advogados Associados.
“A Justiça Criminal é responsável pelo caos do sistema penitenciário, porque quase todos os juízes criminais, infelizmente, engrossam o coro. A maior parte deles não perde o sono com as condenações que dão, condenam mais do que absolvem. Esses aos quais me refiro não têm sentimento de culpa — são bem resolvidos, não têm superego em matéria penal, não sentem culpa pelo fato de condenarem inocentes. Esses magistrados não se importam se as provas são falsas, porque, na cabeça deles, esses réus são criminosos, são pobres”, critica.
O Ministério Público também tem grande parcela de culpa pelo caos prisional, aponta o advogado. Isso porque “maior parte de seus membros é conivente, coautor, cúmplice” da linha de produção de condenações. Em vez de exercer o papel de fiscal da lei, como deveria, segundo o criminalista Lins e Silva, o órgão age como “arauto da necessidade de se encarcerar”.
Uma forma de mudar essa mentalidade dos magistrados e integrantes do MP seria extinguir as varas de execução penal, avalia o presidente do IAB. Dessa maneira, os juízes criminais que proferissem a sentença também cuidariam do cumprimento das penas. E os mesmo ocorreria com os membros do MP que atuassem nos casos. Ao acompanhar o dia a dia dos presos, ressalta Técio Lins e Silva, tais profissionais entenderiam como funciona o sistema penitenciário, e poderiam passar a dar mais valor às progressões de regime, benefícios penais e punições alternativas à prisão.
O advogado bem que tentou fazer essa alteração no Rio. Quando foi secretário de Justiça do estado, no fim dos anos 1980, ele propôs a extinção das varas de execução penal e a transferência dessa competência para os juízes criminais. A medida foi aprovada, mas encontrou resistência dos magistrados. Entre a sessão final da Assembleia Constituinte da Carta Estadual de 1989 e a impressão do documento, foi inserido um dispositivo no documento recriando as varas de execução penal. Mais tarde, o advogado descobriu que os deputados estaduais não resistiram ao forte lobby do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Porém, a Justiça e a sociedade brasileiras não têm preconceito apenas com pobres e negros. Há uma carga cultural muito negativa com relação às drogas, destaca Lins e Silva. Ele sabe do que está falando: desde 1985, quando assumiu a presidência do Conselho Federal de Entorpecentes, órgão do Ministério da Justiça, ele convida a sociedade a refletir sobre os malefícios da guerra contra as drogas. Em artigo publicado em dezembro de 1985 na Revista de Domingo, do Jornal do Brasil, o criminalista já alertava para a “reação histérica, quase apoplética, que temos visto ultimamente, quando se trata de falar de drogas”. O caminho que ele propunha era outro: ampliar a discussão, desmistificar o assunto, e aprender a conviver com as diferenças.
Seu entendimento sobre esse tema não mudou: Técio Lins e Silva é favorável à regulamentação de todas as drogas. “O futuro é da compreensão, do livre arbítrio. (…) O uso delas é uma autolesão, é um problema de cada um, não é uma questão penal.” A seu ver, somente por essa via será possível acabar com o tráfico e os crimes relacionados a esse comércio de entorpecentes.
Lins e Silva recebeu a ConJur em seu escritório, localizado no Centro do Rio, onde estava acompanhado da advogada da banca Maíra Fernandes. O ambiente transborda história: é recheado de objetos do passado, como canetas-tinteiro e mata-borrões, e de fotos em preto e branco de seu pai, o advogado Raul Lins e Silva, e de seu tio, Evandro Lins e Silva. Este foi ministro do Supremo Tribunal Federal, mas sua carreira foi abruptamente interrompida quando foi aposentado à força pela ditadura militar em decorrência do Ato Institucional 5.
Carismático, Técio Lins e Silva é um bom contador de histórias. Volta e meia ele se empolga ao narrar um fato, arregala os olhos por detrás dos óculos de grau redondos e gesticula incessantemente. Orgulhoso de seu cargo, sempre traz espetado em seu paletó um broche vermelho do IAB.
Em entrevista à ConJur, o criminalista descreveu sua experiência política, explicou a “terapia de choque” que aplicava em seus alunos e atacou a decisão do STF que autorizou a execução da pena após condenação em segunda instância.
Leia a entrevista:
ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Técio Lins e Silva — Evidentemente viola. Toda doutrina, todos os especialistas, todos os professores dirão que viola, que a prova policial é insuficiente para a condenação. Quem consultar a jurisprudência antiga do Supremo Tribunal Federal encontrará o ministro Aliomar Baleeiro, há 50 anos, dando Habeas Corpus para trancar processos, para anular condenações fundadas exclusivamente na prova policial. Só que o preconceito na Justiça Criminal é tão gigantesco que a possibilidade de um réu ser absolvido em crime contra o patrimônio ou crime de drogas é minúscula, é quase impossível.
O acusado de furto, de roubo, de tráfico de drogas já começa o processo condenado. O juiz já começa condenando, pouco importa se a prova é policial, se tem prova, se não tem prova, se tem laudo, se não tem laudo — ele já entra disposto a condenar. A Justiça Criminal é responsável pelo caos do sistema penitenciário, porque quase todos os juízes criminais, infelizmente, engrossam o coro. A maior parte deles não perde o sono com as condenações que dão. Condenam mais do que absolvem. Esses aos quais me refiro não têm sentimento de culpa — eles são bem resolvidos, não têm superego em matéria penal, não sentem culpa pelo fato de condenarem inocentes. Esses magistrados não se importam se as provas são falsas, porque, na cabeça deles, esses réus são criminosos, são pobres. Estamos falando em um estrato social — os negros, os pobres — que é a clientela do sistema penal. Muitos dos acusados de tráfico são meninos, são atravessadores, não são traficantes na expressão legítima do valor da palavra. As palavras têm um conteúdo, um valor, um peso.
Aqui no Brasil, traficante é qualquer moleque que é preso com três baseados, porque um é para uso, mas dois, três, são para vender, então é traficante. A covardia que se pratica contra essa população é gigantesca, é responsável por essa crise do sistema penitenciário. O sistema penitenciário é abastecido de injustiçados, de criminosos sem nenhuma potencialidade. Claro que entrando no terror em que se transformou o sistema penitenciário já há muitos anos, fica difícil não se juntar a criminosos de verdade. O sistema penitenciário sempre foi o patinho feio das administrações — sempre foi muito difícil conseguir sensibilizar os governadores ou presidentes a investir nas prisões. Digo isso com autoridade, porque fui secretário de Justiça e administrador das cadeias do Rio de Janeiro de 1987 a 1990. Eu conheço a dificuldade de fazer qualquer projeto decente nas cadeias, como colocar escolas, implementar oficinas para presos, e a dificuldade de se firmar parcerias com empresários.
Havia um juiz de execução criminal, o mais genial que o Brasil conheceu, mas que está esquecido, chamado Francisco Horta. Ele era juiz de execução penal, maldito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e que acabou se aposentando para não ser punido. Ele era um homem extremamente generoso, mobilizava a comunidade, fazia os chamados “mutirões do amor” para atender presos desvalidos. Ele tinha uma capacidade única de compreender o sistema penitenciário. No primeiro governo de Antônio de Pádua Chagas Freitas (PMDB) no antigo Estado da Guanabara (1971-1975), Horta negociou com as autoridades estaduais a aprovação de uma lei que possibilitava antecipar a liberdade antes do cumprimento total da pena. Uma lei generosíssima, que soltou muita gente, sem tornar a sociedade mais violenta do que antes. Pelo contrário: essa lei dava esperança ao preso, que sabia que se tivesse um bom comportamento, poderia ser liberado antes. Isso está completamente interligado com o mundo das drogas, que enche as prisões, e tem progressão de regime mais demorada, pelo fato de o crime ser considerado hediondo. Com a convivência nos presídios, as pessoas acabam realmente se integrando ao mundo do crime organizado.
ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Técio Lins e Silva — Não. A questão da droga está embutida em uma gigantesca questão cultural. Não é uma questão penal, é uma questão de cultura. Na Califórnia (EUA), há muitos e muitos anos o porte para uso próprio está descriminalizado. Eles autorizam o porte de cerca de 50 gramas. E recentemente legalizaram também o comércio de maconha no estado. Mas aquela já era uma quantidade bastante razoável considerando o uso, e isso não aumentou a violência. Vários outros estados americanos já não enfrentam a questão da droga como questão penal. E isso também ocorre em outros países, como Portugal, Holanda, Uruguai. Essa é a tendência. O filósofo alemão Rudolf von Ihering dizia que a história da pena é a história de sua constante abolição. Essa é a história do futuro da humanidade, na contramão da cultura universal de encarceramento. Isso começou na Idade Média.
Antes da Idade Média, o sujeito era punido corporalmente: recebia castigos ou era exibido e executado. A penitenciária surgiu como uma solução humanitária. Os iluministas diziam que era preciso parar de matar. [Pensaram]: “Agora vamos tirar a liberdade da pessoa, vamos prendê-la, vamos esconder o corpo do criminoso, e não mais exibi-lo, como era feito nas praças públicas”. Timidamente, nós chegamos às medidas substitutivas da pena privativa de liberdade. Mas os juízes são tímidos, não as aplicam. Hoje é muito mais fácil mandar para a cadeia do que depois ter que ficar tomando conta dos condenados, cuidando das execuções. Essa evolução do sursis processual, de evitar o processo, de o sujeito fazer acordo, pagar uma cesta básica, anda em uma lentidão extraordinária, mas é o caminho da humanidade. Não tem conversa, Ihering estava certo. Então, esse raciocínio encarcerador é um raciocínio de retrocesso. É a contramão da história, é a volta para a Idade Média.
O futuro é da compreensão, do livre arbítrio. Poucos anos atrás, era impossível discutir a questão das drogas sob o ponto de vista da cultura, sob o ponto de vista do livre arbítrio, sob o ponto de vista de que o uso delas é uma autolesão, é um problema de cada um, não é uma questão penal. A própria legislação brasileira evoluiu nesse sentido. O usuário não vai para a cadeia, o que é uma evolução extraordinária — embora os policiais muitas vezes enquadrem usuários como traficantes. Mas se hoje se puser uma votação dessas no Congresso, os parlamentares vão voltar a botar o usuário na cadeia. Hoje o pensamento predominante é do encarceramento, é do retrocesso da legislação atual. Basta lembrar as condenações dos dias de hoje em matéria de crimes econômicos. São penas inimagináveis de 30, 40, 50, 70 anos!
ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Técio Lins e Silva — Claro que não. É como o álcool, o tabaco, os remédios… A água pode ser feita de droga: se você beber água demais, pode morrer afogado. A mesma coisa com a alimentação. As pessoas se drogam com comida, bebida, com seus maus hábitos. Vários países já compreenderam que isso é autolesão, que isso é um problema de cada um. Aqui no Brasil pode beber, tomar um porre de cachaça, pode cair na sarjeta que tudo bem, não vai para a cadeia, vai para o hospital. Agora, se queimar um baseado, vai para a polícia e para o juiz, vai ter que se explicar, e se tiver dois baseados, corre o risco de ser considerado traficante. Já vi casos de jovens enquadrados como traficantes por compartilharem um cigarro de maconha com os amigos, com a namorada. E isso está na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006): oferecer, entregar a consumo. Não tenho dúvida de que, no futuro, as drogas vão deixar de ser reguladas pelo Direito Penal. O Direito Penal não resolve essa questão. Sem o Direito Penal, resolveria inclusive o problema do tráfico de drogas. Vide o que aconteceu quando proibiram o álcool nos EUA, nas décadas de 1920 e 1930. Surgiram grandes criminosos, como Al Capone, havia um grande tráfico de bebida, aumentou a criminalidade, as mortes cresceram. Aconteceram muitas desgraças porque o álcool era proibido.
ConJur — Que modelo o senhor defende em relação às drogas? A descriminalização do uso, a legalização só da maconha ou a legalização de todas as drogas?
Técio Lins e Silva — Tem que regulamentar todas as drogas. O Estado não tem nada com isso. Não se pode tratar essa questão penalmente. É preciso regulamentá-la como se regulamenta o álcool, o tabaco, os medicamentos. Quantos anos levaram para permitir uma droga para salvar a vida das pessoas que contem tetraidrocanabinol, porque é derivada da maconha? Quantos anos tivemos que lutar por isso? A Holanda já lida com essa delicada questão do uso de drogas há décadas. Infelizmente não vou viver esse tempo, mas eu não tenho a menor dúvida que o caminho da humanidade é esse de compreender as opções feitas pelas pessoas. Nada me convence de que botar na prisão a pessoa que fez a opção de usar uma droga seja o caminho. E qual é o subproduto disso? É o traficante. Se você proibir água, você vai ter tráfico de água, vai ter guerra de quadrilha, vai ter crimes. Cigarro é liberado. Pode comprar à vontade, pode fumar 10 maços de cigarro por dia. Mas não pode fumar o cigarro que tem a substância tetraidrocanabinol. Por que não pode?
ConJur — Como foi a sua experiência como presidente do Conselho Federal de Entorpecentes do Ministério da Justiça?
Técio Lins e Silva — Eu presidi o Conselho Federal de Entorpecentes de 1985 a 1987 [no governo de José Sarney], no início da Nova República, quando falar em droga gerava um preconceito gigantesco. A Lei de Tóxicos (Lei 6.368/1976) tinha uma regra inacreditável: exigia uma autorização do Conselho Federal de Entorpecentes do Ministério da Justiça para falar de drogas. Tinha que mandar o texto da sua fala ao órgão, e ele era submetido ao plenário do Conselho Federal de Entorpecentes para ser aprovado. Ou seja, um padre que fosse fazer um sermão, uma homilia sobre drogas tinha que mandar o discurso para avaliação. Um professor que fosse dar uma aula sobre drogas tinha que submeter o texto da sua aula ao Conselho Federal de Entorpecentes. Isso não foi no século XIX, foi há 30 anos. Assim, a primeira medida que eu tomei no órgão foi propor uma resolução revogando a lei nessa parte. A Nova República restabeleceu a liberdade de pensamento — passou a ser possível falar sobre qualquer assunto; se houver excesso, vai responder nos termos da lei. Mas a lei exigia essa autorização, embora eu possa dizer que descumpria a lei. Praticava desobediência civil.
ConJur — Aumentar os investimentos em varas de execução penal ajudaria a resolver a crise do sistema prisional?
Técio Lins e Silva — A execução penal padece também desse preconceito que explode os presídios, responsável pelas explosões dos presídios. No Rio de Janeiro, por exemplo, só há uma vara de execução penal. Na época em que fui secretário de Justiça do estado [de 1987 a 1990, no governo Moreira Franco (PMDB)], tinha um juiz para 500 mil processos — hoje devem ser milhões. Nesses três anos eu conheci muito as dificuldades da vara de execução penal. Mas a situação poderia ser melhor. No fim dos anos 1980, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou para a Assembleia Legislativa uma mensagem de lei para alterar o código de organização do Judiciário estadual. Como secretário de Justiça, eu administrei o oferecimento de uma emenda a esta lei para extinguir as varas de execução. A lei foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Assim, tais varas foram extintas, e a execução penal passou a ser feita pelo juiz da condenação. Como existiam 100 varas criminais na época, nós multiplicaríamos por 100 o número de juízes, integrantes do Ministério Público e defensores públicos que iriam controlar a execução penal e cuidar dos condenados. O sistema iria funcionar com base no Evangelho: “Quem pariu Mateus que o embale…”. Condenou, vai passar o resto da vida atendendo a mulher do preso que vai pedir para ele visitar a família no Natal, a mãe do preso que vai pedir a liberação dele para ir ao enterro do pai…
Então, os juízes teriam que lidar com as mazelas do sistema e do cumprimento da pena enquanto a pessoa estivesse presa. Essa lei entrou em vigor. Mas o presidente do TJ-RJ encomendou a um juiz auxiliar da presidência um parecer normativo sobre a lei, e este afirmou que ela era inconstitucional por vício de iniciativa. Segundo o TJ-RJ, só o Poder Judiciário poderia propor alterações em sua estrutura, embora tal emenda tenha sido apresentada por um deputado estadual. Mas quem propôs a lei não foi o governador, não foi um deputado, foi o Judiciário. Assim, o presidente do TJ-RJ determinou que os juízes não cumprissem a lei. Como eu era também chefe da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, reuni os defensores e estabelecemos que o órgão tinha que exigir o cumprimento dessa lei. E eles passaram a exigir que a execução fosse do juiz da condenação, e não da extinta vara de execução penal, e começaram a confrontar a ordem do presidente do TJ-RJ impetrando Habeas Corpus. Uma juíza que na época atuava no tribunal do júri, por exemplo, resolveu aplicar essa lei. Logo em seguida foi chamada para conversar, e avisaram que se ela continuasse aplicando esta lei, sairia da área criminal e seria transferida para a Vara de Família, da qual ela tinha horror. Mesmo assim, a juíza disse: “Minha consciência diz que eu tenho que aplicar essa lei”. Não demorou para ela ser transferida para a Vara de Família, o que a forçou a antecipar sua aposentadoria.
Em seguida veio a Assembleia Constituinte estadual. Como secretário de Justiça, eu acompanhava os trabalhos, e discutia as questões com o deputado Elmiro Coutinho (PMDB), que era o relator da constituinte. Pois bem, aí a Constituição estadual foi promulgada em 1989, e imprimiram aquelas duas edições originais que são assinadas por todo mundo. Aí eu, como Secretário de Estado de Justiça, recebi o texto original, em uma edição encadernada, deslumbrante. Quando fui lê-la, me deparei com uma pérola no artigo 169: “Fica criado o Juizado das Execuções Penais provido por juízes togados, nas comarcas do estado do Rio de Janeiro, com o concurso da Curadoria e Defensoria Pública nos seus feitos, regulamentado por lei ordinária, proposta por mensagem do Poder Judiciário”. Ou seja, as varas de execução penal foram extintas por uma lei estadual sancionada, mas retornaram pela Constituição estadual, algo inacreditável. Um órgão jurisdicional de um único estado brasileiro criado pela Constituição. E isso ocorreu por meio de um penduricalho que foi introduzido entre a redação final da Constituição e a impressão na Imprensa Oficial.
Anos depois, o próprio deputado Elmiro Coutinho revelou que tal dispositivo foi inserido no texto constitucional por pressão dos juízes, que era para acabar com as discussões com relação ao fim das varas de execução penal. O Poder Judiciário então conseguiu restabelecer o seu poder, o seu preconceito em relação à execução penal. A vara de execução penal sempre foi o patinho feio da Justiça. Quando começaram a informatizar a Justiça do Rio, o sistema operacional das varas de execução penal era diferente dos sistemas do tribunais, e eles não se comunicavam. Revelo uma curiosidade do meu estado do Rio de Janeiro, único estado da federação que não possui Secretaria de Justiça, extinta por decreto governamental no primeiro dia do primeiro governo do ex-governador Sergio Cabral [PMDB]. Foi extinta, inexplicavelmente, a secretaria da cidadania, a mais antiga pasta do Poder Executivo no país, desde a República.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a execução da pena tem que se dar imediatamente apos a condenação em segunda instância, independentemente de ainda haver possibilidade de se recorrer. Ou seja, antes do trânsito em julgado. Logo, o STF não considerou estar em vigor o artigo 283 do Código de Processo Penal, que determina que o sujeito só pode ser recolhido para cumprir pena após o trânsito em julgado da condenação, o que é uma cláusula pétrea da Constituição. Por seis votos a cinco, o Supremo negou a liminar concedida pelo relator dessas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, o ministro Marco Aurélio, e por um voto, dado pela presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, entendeu que o sujeito condenado em segunda instância tem que ir para a cadeia. A mesma presidente, minha querida e estimada amiga, que agora quer esvaziar as cadeias, quer que os juízes das varas de execução penal encontrem medidas para diminuir o fluxo carcerário e quer fazer mutirões carcerários. Mas o votinho dela aumentou a possibilidade de se engordar o sistema penitenciário com presos ainda não condenados definitivamente. Essas coisas são eternas na vida da Justiça Criminal.
Como eu disse, o sistema penitenciário sempre foi o patinho feio dos governos. Nenhum governo se preocupou seriamente em reformar as penitenciárias, melhorá-las, estabelecer condições carcerárias decentes.
Eu dei aula de Direito Penal durante muitos anos. Eu via que os alunos sempre tinham essa ideia de “ah, precisa prender, arrebentar, aplicar pena de morte”. Então passei a fazer um tratamento de choque com eles. Todos os anos levava a turma para ir passar um dia em uma penitenciária, a Esmeraldino Bandeira, que tinha dois mil presos na época. Eu combinava com o diretor do sistema penitenciário, com o diretor da cadeia e levava os alunos lá, onde eles passavam o dia para ver como era a vida de um preso. Anos depois, encontrei uma senhora que me deu um abraço e disse “eu sou desembargadora aposentada em Brasília, e o senhor mudou a minha cabeça. Eu fui juíza criminal, e quando ia condenar, eu me lembrava quando o senhor nos levou à cadeia. Aí pensava duas vezes no tamanho da pena, porque aprendi o que ela significava”. O juiz não sabe o que significa o tamanho da pena que dá — para ele, tanto faz se são cinco, 10 anos, 15 anos. Essa é a dura, triste, insolúvel realidade. Basta ler os jornais!
Eu ouço falar em medidas para resolver a crise do sistema carcerário desde criança, pois sou filho de um advogado criminal. Há 53 anos [tempo de carreira] eu ouço essa mesma conversa fiada. Já participei de várias CPIs, fui chamado para depor em várias CPI do sistema penitenciário. Não acontece nada, elas não tiveram nenhum resultado. Participei de dezenas de simpósios, seminários. Advoguei para presos políticos na ditadura militar, passei a vida inteira nas auditorias militares visitando presos, lutando pela liberdade dos presos políticos, dos inimigos do governo. Na minha ficha no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), tinha um documento considerado subversivo: um roteiro de aula sobre a pena privativa de liberdade. Veja o preconceito de falar em pena privativa de liberdade. Então quando você me diz que quer conversar sobre a crise penitenciária, me dá uma gastura, porque eu ouço essa conversa há 53 anos — sem nenhum resultado. Não muda absolutamente nada. Pelo contrário: o que nós vemos hoje é o endurecimento penal, é a criminalização de novas condutas, é o aumento de penas, ainda sob a panaceia da pena como grande solução do sistema penal brasileiro. Infelizmente, esse é o discurso que predomina, estimulado pela imprensa — pela televisão, pelo rádio, pelos jornais, pelos blog, pelas redes sociais.
ConJur — Que medidas podem ser aplicadas diminuir as rebeliões em presídios e para desarticular as facções criminosas?
Técio Lins e Silva — A extinção das varas de execução penal do Rio era uma tentativa nesse sentido. Era uma ousadia, para mudar a regra do jogo. Mas essa ousadia foi vencida pela pelo Poder Judiciário, que é avesso a qualquer mudança que mexa com as suas estruturas. Aí vai continuar tendo motim em presídio. Eu fui administrador penitenciário do Rio por três anos, e posso dizer que não vi nenhum motim nesse período. Houve apenas uma tentativa de fuga de um preso famoso, na antiga Penitenciária Milton Dias Moreira, no Centro do Rio. Mas soubemos disso com antecedência. Então conseguimos abater o helicóptero, e o preso não logrou a fuga.
Eu não vivi motim porque trabalhamos muito contra essa separação de presos por facções, que virou a regra do sistema. Quem entra na cadeia tem que dizer qual é o seu grupo, se é PCC, se é Terceiro Comando, se é Comando Vermelho. Aí ele é encaminhado para a galeria daquela agremiação. Quem diz que “não é nada” vai para a parte dos neutros. É muito difícil, mas nós trabalhamos pela neutralização dessa situação, visando acabar com esse negócio de presídio da facção tal, presídio da facção tal, galeria da facção tal. Aos poucos fomos sendo bem-sucedidos. Separamos jovens, aqueles condenados pela primeira vez, colocamos velhos e doentes próximos à saída das prisões. Com muita dificuldade, conseguimos, não digo melhorar, mas pelo menos contornar a tragédia que é o sistema penitenciário. Então a saída é por aí. Mas com a extinção da Secretaria de Justiça do Rio pelo então governador do Estado, isso ficou mais difícil.
ConJur — Como o senhor avalia as medidas anunciadas pelo governo Michel Temer para combater a crise nos presídios, como a construção de cinco novos presídios federais, repasses para a construção de uma penitenciária em cada estado, instalação de aparelhos que bloqueiam o sinal de celulares e uso de militares para fazer vistoria nos presídios?
Técio Lins e Silva — Incompetência, ignorância sobre o assunto, preconceito e mentiras para enganar a opinião pública. Militar não pode ser usado para isso, é contra a Constituição convocar as Forças Armadas para tratar da questão carcerária. Isso poderia dar impeachment. Não é com a mentalidade de construir cadeias que o sistema será transformado. Se fosse assim, seria melhor construir um muro em torno das nossas fronteiras, botar uma placa “presídio brasileiro”, e pronto. Seria mais fácil. Não é por aí. É preciso despenalizar, descriminalizar, trabalhar com alternativas à pena privativa de liberdade. E é preciso mudar a cultura do Judiciário, que tem grande responsabilidade nessa crise carcerária.
O Supremo Tribunal Federal contribuirá muito para essa crise por estabelecer uma regra mudando a lei penal brasileira, mudando a Constituição, que encarcera o inocente, ou aquele cuja condenação ainda não transitou em julgado. Ele pode ser absolvido mais adiante, ele é presumido inocente até o fim do processo. É um absurdo prender antes da decisão condenatória transitada em julgado. O Judiciário também é responsável pelo exército de presos provisórios, que são 40% da população carcerária. Quem botou esses presos lá? Quem mantém esses homens lá? São os juízes. Eu te digo, com toda a minha experiência de vida, que se abrirem as portas das cadeias e liberarem 60% dos presos, só irá aumentar o número de desempregados, não irá aumentar a violência. Agora, o juiz não solta, o tribunal não solta. Porque vai ter editorial criticando. A Justiça fica com medo…
ConJur — Qual é o papel do Ministério Público na crise carcerária?
Técio Lins e Silva — O Ministério Público tem culpa? Claro, a maior parte de seus membros é conivente, coautor, cúmplice. Porque o MP tem sido o arauto, ele que anuncia a necessidade de prender, de encarcerar. O MP é responsável por esse discurso medieval, antiquado, indigno e contra o Brasil, contra os brasileiros. Olha essa notícia que acabou de sair: “Janot pede que deem agilidade à homologação das delações da Odebrecht”. Como? O Judiciário estava em recesso, a operação “lava jato” não tinha relator no Supremo, mas não interessa. Ele está exalando ódio, quer aumentar as prisões a qualquer custo.
O papel do Ministério Público é defender a pacificação nacional, defender a lei, é o fiscal de lei, fiscal da fiel execução da lei. Mas aqui não. O Ministério Público, infelizmente, tem se colocado como parte comprometida com o resultado acusatório. E acha que não tem nenhuma responsabilidade pela crise carcerária. Eu não vi o Ministério Público fazer mea-culpa dessa crise, porque é ele que estimula, é ele que pede ao juiz para endurecer, para não soltar. Claro que não são todos os seus membros que agem dessa forma, mas, como instituição, o Ministério Público tem uma maneira equivocada de enxergar essa questão. O Ministério Público deveria estar pedindo o cumprimento legal da pena, defendendo aqueles que não tiveram presunção de inocência. Mas o Ministério Público é contra a presunção da inocência, ele quer mandar pra cadeia mesmo o presumido inocente. Para ele, o réu é presumido culpado. É uma coisa horrorosa.
“Penas por tráfico de drogas atingem as famílias das mulheres condenadas”
O tráfico de drogas é o crime que mais encarcera no Brasil: 28% dos detentos foram condenados por tal delito. E o impacto dele é ainda maior sobre as mulheres: dois terços das presas foram enquadradas no artigo 33 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Ao contrário do que determina a Constituição, as penas extrapolam essas mulheres e punem suas famílias. O efeito disso é nefasto: sem a figura materna, os filhos ficam desamparados, e, muitas vezes, acabam caindo no mundo do crime. Isso é o que afirma a criminalista Maíra Fernandes, ex-presidente do Conselho Penitenciário do estado do Rio de Janeiro.
Fora que, na maioria dos casos, as mulheres servem de bucha de canhão para maridos, pais, filhos e chefes do tráfico, avalia a advogada. “Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas. São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição mais vulnerável e suscetível ao encarceramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos.”
Diferentemente do que ocorre com os homens, as mulheres não recebem suporte da família quando vão para a cadeia, ressalta Maíra, que é sócia do escritório Técio Lins e Silva, Ilídio Moura e Advogados Associados. Os namorados e maridos não as visitam, seja porque têm medo de ser presos, seja porque as abandonam. Como as mães, irmãs e tias delas acabam tendo que assumir os filhos das detentas e conciliar a criação deles com trabalho, ficam sem tempo para visitá-las. Resultado: além do isolamento afetivo, as presas ficam sem ninguém para levar-lhes itens em falta nas penitenciárias, como alimentos, roupas, itens de higiene básica, conta a advogada. Nesse cenário de escassez, ficam até sem absorventes.
Os acusados de tráfico de drogas são presos e condenados, na maioria das vezes, apenas com base em depoimentos de policiais, sem que seja provado seu dolo, lembra Maíra. Segundo ela, essas violações do direito de defesa, combinadas com a “absurda” classificação do tráfico como crime hediondo, fazem com que a venda de entorpecentes seja o delito que tem mais culpa pela superlotação do sistema prisional.
“É um absurdo [que o tráfico de drogas seja considerado crime hediondo]. É um nonsense. Na verdade, é outro fator de aumento do encarceramento nos casos de tráfico, seja por conta da manutenção do condenado na prisão, seja pelas dificuldades de concessão de benefícios, porque a natureza hedionda aumenta a fração de pena necessária para se conseguir os benefícios. Então, isso dificulta consideravelmente a progressão de regime, o livramento condicional. Além disso, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) veda graça, indulto e anistia ao tráfico de entorpecentes, previsão que não tem respaldo na Constituição Federal.”
E quando os condenados deixam a cadeia, aponta a criminalista, enfrentam toda sorte de dificuldades para conseguir recomeçar sua vida. A razão disso é que só é possível tirar título de eleitor após o cumprimento integral da pena, e extremamente complicado emitir CPF antes disso. Dessa maneira, aqueles que vão para os regimes semiaberto e aberto ou estão em livramento condicional não conseguem trabalho, tanto por recusa dos empregadores quanto por não conseguirem abrir conta bancária ou empresa. “A sociedade exige que esse sujeito saia da prisão e não cometa mais crime, mas não dá nenhum suporte para que ele não o faça”, critica Maíra Fernandes.
Conhecedora da realidade das penitenciárias, a advogada acredita que unidades administradas por entidades privadas não são a solução para a crise do sistema. Isso porque a lógica do lucro faz com que as empresas economizem nos serviços prestados aos detentos e façam lobby para aumentar a população carcerária.
Umas das medidas indicadas por Maíra para melhorar as cadeias é a regulamentação das drogas. Outra é investir em modelos alternativos, como as Associações de Proteção e Assistência a Condenados (Apacs) e colônias agrícolas.
A advogada recebeu a ConJur em seu escritório, no Centro do Rio de Janeiro, onde estava acompanhada na primeira parte da conversa pelo sócio-fundador da banca Técio Lins e Silva (também entrevistado). Expressiva, Maíra deixa claro que está indignada com a guerra às drogas, a cultura punitivista e as medidas demagógicas anunciadas pelo governo federal para combater a crise carcerária.
Leia a entrevista:
ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Maíra Fernandes — Tenho esperança de que as audiências de custódia ajudem a evitar a manutenção das prisões, embora isso não vá resolver o problema do processo como um todo. É no momento da prisão e na delegacia que uso vira tráfico, que furto vira roubo, que as histórias se fazem, se constroem, e que vão para o papel. Essas prisões têm tudo a ver com o lugar onde houve a apreensão da droga. Como a lei não distingue precisamente uso de tráfico, uma mesma quantidade de droga apreendida no Complexo do Alemão [na Zona Norte do Rio] e na Rua Farme de Amoedo [em Ipanema, na Zona Sul do Rio] pode gerar um registro de tráfico no primeiro caso e um de uso no segundo. Então, tem muito a ver com o CEP, a cor, com o nível social do abordado. No caso das mulheres, além das usuárias presas como traficantes, há aquelas que são presas por tráfico de drogas porque houve uma apreensão de drogas em sua casa, só que quem comercializa aquela droga é o marido, o pai, o filho. Mas como é a mulher que está em casa no momento, ela acaba sendo presa em flagrante. A palavra do policial acaba tendo um efeito gigantesco no processo, é muito difícil revertê-la, porque considera-se que o policial tem fé pública. Sem outras testemunhas, fica a versão do policial contra a versão do réu ou da ré. Daí é quase impossível conseguir uma absolvição.
Uma vez eu peguei um processo no conselho penitenciário de um menino que tinha sido preso por associação ao tráfico de drogas. O rapaz dizia que tinha chegado em casa ao fim do dia — ele trabalhava e estudava —, e na hora em que a polícia estava subindo o morro, ele deixou cair uma panela no chão enquanto estava fazendo o jantar. A polícia achou que ele tinha feito esse barulho de propósito, para alertar os traficantes da ação policial e prendeu o rapaz. Seu depoimento não valeu nada no processo — ele foi condenado. Não havia mais nenhuma outra prova contra ele. Isso mostra a força da palavra dos policiais. Quando há apenas a palavra do policial contra a palavra do réu, sem outras provas, deveria haver absolvição. Mas não é isso que acontece.
ConJur — Qual é o impacto da Lei de Drogas no encarceramento feminino?
Maíra Fernandes — É gigantesco. O fato de que 64% das presas estão lá por tráfico de drogas nos leva a repensar a necessidade desse encarceramento. A Lei de Drogas aumentou o encarceramento de uma forma enorme, e mais ainda o feminino, que cresceu 567% de 2000 a 2014. Esse número é monstruoso, é assustador. E o mais comum é o encarceramento feminino por tráfico privilegiado. Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas. São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição mais vulnerável e suscetível ao encarceramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos.
O princípio de que nenhuma pena ultrapassará a pessoa do condenado não se aplica nesses casos, pois as penas das mulheres passam para toda a família. Muitas vezes, a mulher é presa e ninguém de sua família é avisado por vários dias. Quando você conversa com detentas, a primeira coisa que elas perguntam é “como está o meu filho?”. É de cortar o coração. Fora a falta de suporte material. Com o sistema penitenciário falido, falta tudo na prisão — pasta de dente, xampu, sabonete, roupa, comida, dinheiro para a cantina. E olha que a cantina da prisão é cara: uma Coca-Cola custa R$ 10. Quando um homem é preso, a família leva esses materiais ou dinheiro para ele. Mas isso não acontece quando uma mulher é presa. Aí falta tudo para elas, até produtos básicos, como absorventes. Quando eu assumi o Conselho Penitenciário e passei a inspecionar prisões, vi que as unidades ficavam cheias em dia de visita. As mulheres começavam a fazer fila de madrugada. E todas as mulheres da vida do preso – mulher, mãe, avó, filha, até amante. Mas quando a mulher é presa, a família se desfaz. É um abandono enorme.
Os presídios femininos são cemitérios de mulheres vivas. As visitas às mulheres presas são raríssimas. Visitas íntimas, então, quase não existem para mulheres. A maioria das cadeias femininas nem tem espaço para isso. Na maior parte das vezes, o namorado ou marido abandona a mulher quando ela é presa. Às vezes isso ocorre porque ele tem medo de também ser encarcerado. Outras vezes, o companheiro também está preso, outras é abandono mesmo e ponto. Por conta de todas essas circunstâncias, as visitas às mulheres presas acabam sendo muito raras, até porque as outras mulheres da família passam cuidar dos filhos da detenta.
ConJur — Manter mães presas ajuda a jogar seus filhos para a criminalidade?
Maíra Fernandes — Pode acontecer sim, pois os filhos ficam desassistidos. É um círculo vicioso do qual a gente não consegue sair. É muito triste.
ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Maíra Fernandes — Sem dúvida que é uma anomalia, mas é graças a essa anomalia que nós estamos com o sistema completamente superlotado. Se não houvesse essa anomalia, se todos os juízes realmente considerassem a necessidade de comprovação da conduta, de provas concretas e tudo o mais, provavelmente não prenderiam como prendem, ou não manteriam presos como mantêm. A enorme maioria dos casos de tráfico acaba com condenação, mas em alguns deles pode ter absolvição, só que aí o réu já ficou um ano, dois anos preso, ou mais. Volto a dizer que espero que as audiências de custódia ajudem a reverter esse cenário das prisões provisórias, mas é preciso mudar a forma com a qual os juízes julgam processos sobre drogas. Se isso não for feito, de nada adiantará ter audiência de custódia.
ConJur — Há justificativa para que o tráfico de drogas seja considerado crime hediondo?
Maíra Fernandes — É um absurdo. É um nonsense. Na verdade, é outro fator de aumento do encarceramento nos casos de tráfico, seja por conta da manutenção do condenado na prisão, seja pelas dificuldades de concessão de benefícios, porque a natureza hedionda aumenta a fração de pena necessária para se conseguir os benefícios. Então, isso dificulta consideravelmente a progressão de regime, o livramento condicional. Além disso, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) veda graça, indulto e anistia ao tráfico de entorpecentes, previsão que não tem respaldo na Constituição Federal, pois esta só fala em graça e anistia, não veda o indulto ao tráfico. Os decretos presidenciais também reforçam, todos os anos, essa interpretação de que não cabe indulto em caso de tráfico. O decreto presidencial de 2016 foi pior ainda, recrudesceu consideravelmente os benefícios. Um atraso gigantesco. Ele acabou com a comutação da pena, que existe há mais de 17 anos, que dá um sopro de esperança para os presos. A norma também restringiu diversas hipóteses de indulto. Tudo o que havíamos avançado em relação aos indultos para mulheres retrocedeu. Esse decreto presidencial mostra bem a política do governo de recrudescimento da legislação penal. E eles vão piorar ainda mais o sistema prisional. O resultado disso são essas rebeliões. É muito claro que o governo só tem propostas de recrudescimento, de endurecimento da guerra às drogas. Basta ver a foto do agora ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, cortando pés de maconha. Outro exemplo é a medida demagógica de usar as Forças Armadas para fazer revistas em presídios. Isso é ideia de quem realmente não conhece o sistema penitenciário.
ConJur — Qual é o papel do Judiciário na crise do sistema carcerário?
Maíra Fernandes — Quando o Executivo vem com a desculpa de que “quem prende é o Judiciário”, está coberto de razão, embora ele também tenha responsabilidade nisso – vide os decretos presidenciais. Existe uma parcela enorme de responsabilidade do Poder Judiciário nesse superencarceramento, que deve ser dividida em todas as instâncias.
A culpa é da primeira instância, do juiz que prende provisoriamente quando não deveria, do juiz que deixa de aplicar uma pena alternativa e condena à prisão. É da vara de execuções penais, do juiz que, que diante dessa sentença de pena privativa de liberdade, deixa de aplicar os benefícios no tempo previsto da lei, mantendo as pessoas presas por mais tempo do que deveriam ficar. É também da segunda instância, que mantém indevidamente a sentença da primeira. E é dos tribunais superiores, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal — a decisão que permitiu a execução da pena após condenação em segunda instância é um contrassenso para um Supremo que já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário. Então o Judiciário tem que ser chamado para reavaliar sua responsabilidade por essas prisões. Da mesma forma, o Legislativo tem que ser chamado à responsabilidade quando faz propostas como a de reforma do Código Penal, que são só propostas também encarceradoras. Mas também o Executivo, em suas instâncias, tem responsabilidade sobre o caos e a má gestão do sistema penitenciário.
ConJur — Deixar que o policial decida se a quantidade de droga apreendida configura tráfico ou uso, sem tabela de quantidades, viola o direito de defesa e dá margem a arbitrariedades?
Maíra Fernandes — Isso dá margem a arbitrariedades, sem dúvida alguma, porque quem diz o que é uso e o que é tráfico é o policial no momento da prisão. Se ele considera que a quantidade que a pessoa portava não é compatível com o uso, ele vai prender por tráfico. Por exemplo, digamos que um rapaz vá pegar uma quantidade de maconha porque vai dar uma festinha na sua casa. Daí ele pega um pouquinho a mais do que ele costuma pegar, porque ele quer distribuir para os amigos. Se fala isso para o policial, invariavelmente vai cair no tráfico, porque nos termos vagos da lei, e na interpretação restritiva dela, “distribuir” é tráfico. Além da falta de precisão da quantidade, ainda tem a vagueza do tipo penal do tráfico, que tem 18 condutas — uma elasticidade gigantesca. Mas eu não tenho certeza se a especificação das quantidades iria resolver o problema. Que quantidades vão ser essas? Quem irá especificá-las? Naquele caso que eu usei de exemplo, o rapaz continuaria sendo enquadrado como traficante, mesmo sem sê-lo. A certeza que eu tenho é que a ausência de uma especificação da quantidade, a vagueza, e a amplitude do tipo penal de tráfico fazem com que muitos usuários sejam presos como se traficantes fossem.
ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Maíra Fernandes — Não é legítimo. Essa é a discussão que está em pauta no Supremo, no julgamento que está suspenso desde setembro de 2015 após o ministro Teori Zavascki pedir vista. O porte de drogas é uma questão absolutamente pessoal. E mais: quando se descriminaliza o uso, passa a ser possível tratar os casos de uso patológico da droga como questão de saúde pública. As pessoas, normalmente, usam casos bem graves como exemplo contrário à autorização para o uso de drogas: “Fulano acabou com a vida, está em condições péssimas por causa de uso de crack”. Só que, na verdade, essa pessoa não está sendo ajudada pela criminalização do uso de jeito nenhum, porque o caso dela não está sendo tratado como uma questão de saúde, e sim como questão criminal. A criminalização do uso de drogas não ajuda essas pessoas que fazem uso não recreativo, mas patológico, um uso que afeta realmente a saúde delas. Mas elas não podem bater em um posto de saúde e pedir ajuda livremente porque o problema delas é tratado como caso de polícia.
ConJur — Então é uma hipocrisia afirmar que a saúde pública é o bem jurídico protegido pelos crimes relacionados a drogas?
Maíra Fernandes — É um falso pretexto, porque a criminalização impede que esse tema seja tratado como tema de saúde pública. Um exemplo muito claro de como essa questão é tratada como um caso de polícia, e não de saúde, está nos choques de ordem que as guardas municipais promoveram nos últimos tempos. No Rio, passaram a prender viciados em crack que estavam no auge do consumo da droga. Essas pessoas eram presas nesse auge e tinham a síndrome de abstinência no presídio. Vários agentes penitenciários e o próprio subsecretário da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária me diziam que não tinham estrutura para receber aquelas pessoas, pois elas ficavam gritando, tendo alucinações típicas da síndrome. Isso ocorre porque essa pessoa não tinha que estar na prisão em nenhuma hipótese, ela tinha que ser levada para um atendimento social, uma política de redução de danos, algo que lhe desse perspectivas de emprego, recuperação da autoestima, ou mesmo, em alguns casos, para o hospital. Jamais para a prisão.
ConJur — Aqueles contrários à legalização das drogas afirmam que isso explodiria o número de usuários, causando uma espécie de epidemia social. O que pensa desse argumento?
Maíra Fernandes — A melhor frase sobre isso foi dita pelo juiz Luís Carlos Valois em entrevista à ConJur: “Eu não sei quem são essas pessoas que estão doidas para fumar maconha, mas estão esperando ela ser legalizada para fazer isso. Eu não conheço ninguém assim. Não sei quem são os ingênuos”. Eu adorei essa frase, é a absoluta verdade. Quem quer usar, usa, sendo crime ou não. A regulamentação não vai aumentar exponencialmente o uso de drogas. Na verdade, talvez possa até diminuir, porque a criminalização gera uma curiosidade maior pelo proibido e porque os realmente viciados vão poder receber tratamento na rede de saúde pública, como ocorre em diversos países onde o uso das drogas é legalizado.
ConJur — Outro argumento usado pelos opositores da legalização é o de que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que a senhora pensa desse argumento?
Maíra Fernandes — Não consigo imaginar como a regulamentação das drogas possa gerar um cenário pior do que o atual. Na verdade, o tráfico de drogas gera crimes muito violentos. Esses crimes não vão aparecer com o fim do tráfico, porque eles já fazem parte do mundo do tráfico de drogas, que, por ser atividade ilegal, exige o uso de armas e violência. Os traficantes se armam e praticam diversos crimes para manter esse sistema, que é totalmente criminoso. Isso é característico de qualquer máfia, de qualquer facção criminosa. Eles precisam proteger o negócio deles, que é criminoso, e por isso acabam recorrendo a essas atividades ilícitas. O tráfico de drogas é extremamente danoso à sociedade, é extremamente violento. E toda essa guerra às drogas só gerou mortes e violência ao longo dos anos. Inclusive de policiais e crianças, como lemos todos os dias nos jornais.
ConJur — Estima-se que o PCC fature R$ 240 milhões por ano. Desse total, avalia-se que 80% venha da venda de drogas. A guerra às drogas é responsável pelo crescimento de facções criminosas como o PCC?
Maíra Fernandes — Sem dúvida alguma. E parte desse rendimento deles também deve ser utilizado em armamentos e corrupção, que só aumentam a violência. O tráfico gera todo um ciclo de violência. A guerra às drogas fez surgir essas facções. E o Estado fica em uma situação muito difícil sobre como lidar com essas facções. Primeiro que ele não conhece quase nada sobre elas, não tem quase nenhum dado sobre as facções. É absoluto o desconhecimento. Em relação ao sistema prisional, ou bem o Estado reconhece as facções e acaba dando muito poder a elas, ou ele ignora a existência delas. Mas se ele ignorar, “lavar as mãos”, acaba misturando os presos e permitindo que eles se matem — algo que o Estado não pode admitir, pois a vida e a integridade física dos detentos são de sua responsabilidade. É muito difícil lidar com as facções criminosas no sistema penitenciário. O mais prudente é separá-las e manter presídios neutros, nos quais ficam presos os que não são vinculados a nenhuma facção criminosa.
Quando eu assumi o Conselho Penitenciário, vi que quem era preso tinha que preencher uma ficha dizendo a que facção era vinculado. Juro que peguei esse papel em mãos. Aí um preso me disse “ô, doutora, eu fui preso por roubo, eu não faço parte de facção nenhuma, não. Eu roubei porque estava precisando de dinheiro. Mas daí o agente perguntou onde eu morava, e como eu disse que morava na favela tal, me jogou na ala do Comando Vermelho, que dominava essa área”. Pronto: ele acaba tendo que se vincular à facção para sobreviver. Agora, não precisa fazer nenhuma alteração legal ou adotar uma interpretação muito garantista para evitar o crescimento das facções no sistema penitenciário, basta cumprir a lei e deixar de encarcerar gente que não precisa ir para a cadeia, como réus primários. Afinal, quando eles entram no sistema, acabam sendo obrigados a entrar em uma facção. Daí eles contraem dívidas, que terão que pagar do lado de fora, e têm que começar a viver conforme as regras daquela facção. A prisão realmente é uma universidade do crime e uma forma de aumentar o poder dessas facções.
ConJur — Que outras medidas podem ser tomadas para melhorar o sistema carcerário, a curto e a longo prazo?
Maíra Fernandes — Primeiro tem que diminuir essa superlotação carcerária. Isso é para ontem. É preciso reduzir as prisões temporárias e preventivas — é injustificável que 40% da população carcerária seja formada de presos provisórios. Também é preciso discutir a Lei de Drogas. Diminuindo a superlotação carcerária, diminui-se uma série de outros problemas, porque muitos deles decorrem da superlotação, como os problemas de segurança nas unidades prisionais. Além disso, é necessário fortalecer as defensorias públicas e as varas de execuções penais. Eu fiz um levantamento no Conselho Penitenciário do Estado, em 2014, que apontou que os únicos estados que só tinham uma vara de execução penal eram Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e Roraima. Só que esses outros estados têm muito menos presos do que o Rio, que tem 50,5 mil detentos. É injustificável ter apenas uma vara de execuções penais. É óbvio que tem gente que fica presa por mais tempo do que deveria, que tem gente que já poderia ter obtido livramento condicional, progressão de regime. São Paulo, por exemplo, tem 16 varas, e o Rio de Janeiro, uma. Outra necessidade é aplicar mais penas alternativas, porque elas são muito pouco usadas. Entendo o argumento de que é preciso que os tribunais tenham um mínimo de estrutura para aplicar essas penas alternativas. Tanto que defendo a criação de uma vara específica para a execução de penas alternativas no Rio. Mas elas já poderiam estar sendo aplicadas há muito tempo. E mais: é preciso incentivar e aumentar as audiências de custódia, com juízes vocacionados para isso.
ConJur — O que a senhora pensa de presídios administrados por entidades privadas? São uma saída para diluir a superlotação das prisões ou podem aumentá-la, devido à lógica de que “quanto mais presos, maior o lucro”?
Maíra Fernandes — Quando integrei a Coordenação Nacional de Acompanhamento do Sistema Carcerário do Conselho Federal da OAB, fiz inspeções em várias unidades Brasil afora. Quando fui inspecionar a prisão de Ribeirão das Neves (MG), fui com uma pontinha de medo, pensando: “Bom, ideologicamente eu sou contra as PPPs, mas será que eu vou chegar lá e vou ver que tudo funciona 100%? E aí eu vou mudar de ideia?”. Uma vez lá, eu vi pontos positivos como limpeza e higiene, mas também vi uma unidade muito semelhante a uma pública, com outros problemas que esta não tem. Por exemplo, os presos reclamavam da ausência de assistência da Defensoria Pública e de outras assistências dentro do presídio, como a médica e a dentária. Mas a ideia da parceria público-privada era para ter esse problema. Percebi que isso se deve à lógica do lucro. No contrato firmado com o Poder Público, está escrito que a prisão tem que ter médico, mas não fica especificado quantos profissionais ou quantas vezes por semana deve ocorrer esse atendimento. Então, economiza-se colocando médico uma vez por semana ou colocando menos médicos do que precisaria ter. E os problemas permanecem.
Um segundo grande problema era que quase todos os presos trabalhavam, só que muitos deles falavam que estavam há seis meses ou mais sem receber. Tinha virado uma exploração de mão de obra, trabalho escravo, o que ensejou ação do próprio Ministério Público. Mas o cerne desse debate das prisões privadas é que elas têm a mesma lógica de um hotel: cela vazia, prejuízo irrecuperável. Se um hotel não tiver hóspedes, não terá lucro. Se a prisão se não tiver presos, igualmente não terá lucro, segundo a lógica da maior parte desses contratos. Isso vai necessariamente aumentar o encarceramento em larga escala, como vimos nos EUA. Aí aumentam os lobbies com o Legislativo, porque ele tem que fazer leis para endurecer penas, pois estarão em jogo as grandes empresas, o grande capital. Também vai ter lobby no Executivo, nas delegacias de polícia, para conferir as metas de prisões. É claro que isso vai aumentar o encarceramento da população de sempre, não é? Pobres, negros… Eu tenho muito medo dessas propostas, que não deram certo nos Estados Unidos e não darão aqui. Li outro dia no jornal O Globo uma matéria que falava sobre a prisão de Ribeirão das Neves, dizendo que em um certo número de anos de parceria público-privada, não houve uma única rebelião. Só que o jornal esqueceu de dizer que aquela unidade não aceita nenhum preso além da capacidade, e que ela só aceita um determinado perfil de condenados, não aceita facções criminosas, não aceita crimes que não sejam os mais leves, com certo percentual de pena já cumprido. É claro que é isso que faz com que não tenha rebelião.
ConJur — Um levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. A pena de prisão funciona?
Maíra Fernandes — Não funciona. E com esse formato que nós temos de prisões, sempre vai aumentar a reincidência. Essas prisões são universidades do crime, como eu já disse. Não acredito que a prisão seja para ressocializar, até porque esse termo é muito infeliz, pois a maior parte dos presos entra na prisão sem nunca ter sido socializado antes. A maioria dos que são presos não tem sequer identidade, não sabe nem assinar seu nome, têm escolaridade baixíssima, não têm os mínimos documentos, nunca exerceu a sua cidadania. Não vai ser entrando na prisão que eles vão ser ressocializados. Prisão, de modo geral, é pena, punição. O que não significa que não se possa ter iniciativas bacanas de trabalho e estudo para ajudar as pessoas a saírem dali, virarem essa página de suas vidas e recomeçarem. E os dados de reincidência são muito difíceis de serem diagnosticados — fala-se em índice de 25%, depois fala-se em 70%. Ninguém sabe direito quais são os dados de reincidência.
Na verdade, faltam dados sobre o sistema penitenciário como um todo. Hoje nós trabalhamos com dados oficiais que não são 100% confiáveis sobre número de presos, tipos penais. Outro fator que gera reincidência é o fato de não termos políticas para os egressos do sistema prisional. Pelo contrário: a pena deles continua do lado de fora, e continua de uma forma muito cruel, porque eles não conseguem empregos. Há uma série de burocracias que dificultam o acesso deles a empregos. Por exemplo, quem progredir para o regime semiaberto ou aberto, ou obtiver livramento condicional, não consegue tirar título de eleitor, porque a nossa lei atual diz que só pode se inscrever na Justiça Eleitoral quem tiver terminado de cumprir sua pena. E a maioria dos presos sai da cadeia dessa forma, ninguém sai com a pena totalmente cumprida, até porque consegue benefícios que a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) prevê. E olha que a maior parte das decisões que concedem livramento condicional exige que o preso tenha um emprego. Mas sem título de eleitor ninguém consegue emprego. Também é difícil emitir CPF. Sem isso, eles não conseguem abrir conta em banco, requisito exigido por muitos empregadores. Tem um sujeito que está em livramento condicional e estava trabalhando direitinho como porteiro em um edifício no Centro do Rio. Outro dia ele me ligou e falou: “Doutora, eu fui mandado embora, porque o meu edifício exigiu que todos os funcionários fossem transformados em pessoas jurídicas, para não pagar verbas trabalhistas. Mas eu não tenho título de eleitor, então não consigo abrir um registro de microempresário individual”. Ou seja, nem quando o sujeito arranja um emprego ele consegue mantê-lo, porque os entraves são muito grandes. A sociedade exige que esse sujeito saia da prisão e não cometa mais crime, mas não dá nenhum suporte para que ele não o faça.
ConJur — Há modelos de prisão que funcionam no Brasil?
Maíra Fernandes — Eu não acredito em prisão, mas não posso deixar de destacar o que conheci de positivo. Há ideias diferentes de prisão que merecem uma atenção um pouco maior do Poder Público. Por exemplo, as Associações de Proteção e Assistência a Condenados (Apacs). Eu conheci uma Apac em Minas Gerais e fiquei muito impressionada. Primeiro porque foi a primeira vez que um preso olhou nos meus olhos. Isso nunca tinha acontecido — e eu já inspecionava presídios há anos quando fui a essa Apac. Ele apertou a minha mão, olhou nos meus olhos e falou: “Boa tarde, doutora”. Eu chorei. Eu nunca tinha sentido uma emoção tão grande, porque ali eu realmente vi a possibilidade de fazer algo diferente para aquelas pessoas. Todos os presos trabalhavam e estudavam. Eles tinham uma auto-organização de disciplina, de responsabilidade. Faziam trabalhos como consertar as mesas e carteiras das escolas locais, remiam pena e eram remunerados por isso. Outra parte dos presos trabalhava em uma padaria, e os pães feitos lá abasteciam as escolas, e também eram vendidos para os restaurantes locais, o que gerava alguma renda para pequenas despesas na unidade. Tinha horário para tudo: se alguém não comparecia no horário certo, ou se não arrumava a cela como deveria, recebia pequenas sanções internas, convencionadas e aplicadas entre eles. E a chave da unidade ficava nas mãos de um preso. Os muros eram baixos, até eu conseguiria pulá-los, mas não tinha nenhum relato de fuga. É outro modelo, um modelo baseado no amor próprio, no respeito próprio, coisas que se perdem no sistema. Em todas as outras unidades que eu inspecionei, quando eu entrava no local, era mão para trás, cabeça para baixo, sabe? Uma absoluta submissão, o sujeito vira meio bicho. Mas também, ele é tratado pelo número, vira apenas mais um, perde a sua história, perde quem ele é. Na Apac, não. As pessoas são quem elas são, conscientes dos erros que cometeram, dos crimes que cometeram, e do quanto precisam trabalhar isso. Precisamos incentivar o uso das Apacs. Minha única ressalva é a de que a unidade que conheci tinha um forte apelo religioso. Mas é possível haver Apacs com as mesmas ideias, sem se valer unicamente da religião.
Também precisamos estimular o uso de colônias agrícolas e industriais. O regime semiaberto, tal qual previsto na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), é um regime de colônia agrícola, mas quase não há colônia agrícola no país. No Rio de Janeiro há a colônia agrícola de Magé, que foi a única estrutura realmente positiva que eu conheci no Rio de Janeiro. É um espaço enorme, lindo. E tem um projeto em que o sujeito planta a semente e cuida de todos os processos do plantio. Essas plantas — há mudas de pau-brasil, de ipê — depois são usadas em projetos de reflorestamento. Então o preso está trabalhando, está remindo pena, está ganhando salário, está fazendo um projeto de reflorestamento, que depois vai ter uma consequência ambiental maravilhosa. Tem também a horta em que eles plantam o que consomem: alface, rúcula, maracujá, um monte de frutas. Os que não trabalham nessa áreas, porque o número de vagas é limitado, recebem um treinamento específico, e trabalham no restaurante, na marcenaria, no setor de informática, na biblioteca. Não há um único preso que não trabalhe. Os quartos, as celas, são meio abertos. Eles estão presos, mas são completamente soltos na unidade. Não é difícil fugir dali, mas eles não fogem. Só houve uma fuga, mas o sujeito acabou voltando. O índice de reincidência de lá é baixíssimo. Então, esses são modelos completamente diferentes, nos quais as pessoas são tratadas com um mínimo de respeito e dignidade.
“Aumento da repressão ao tráfico de drogas reduziria número de presos”
Com relação às drogas, o Brasil está em cima do muro: não sabe se opta por endurecer a repressão ao tráfico ou se decide aplicar mais penas alternativas e, eventualmente, legalizar os entorpecentes. Para o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo Márcio Sérgio Christino, o país deveria seguir o primeiro caminho. Assim, conseguiria reduzir os efeitos nocivos que os traficantes causam à população sem ter os danos sociais que viriam com a liberação da maconha, da cocaína e do crack.
Uma forma de melhorar a repressão, segundo ele, seria alterar as regras de progressão de regime. A seu ver, criminosos perigosos, muitas vezes, ficam pouco tempo na prisão. Assim, defende que, para progredir, haja um critério objetivo e a avaliação de uma junta de especialistas, que definiriam se o detento tem condições de voltar para o convívio social.
O procurador de Justiça também diz ser favorável à ampliação do regime disciplinar diferenciado (RDD). Hoje, essa medida não pode ultrapassar 360 dias. Na visão de Christino, esse prazo é insuficiente para desarticular organizações criminosas. Ele avalia que o isolamento prolongado dessas pessoas não dificultaria a ressocialização delas.
“Se esse preso tem um grau de periculosidade tão grande, ele vai precisar de mais tempo mesmo para poder se reintegrar, se é que ele vai se reintegrar à sociedade. Temos que reconhecer que não há garantia nenhuma de que um criminoso desse tipo vá ser reintegrado. Isso não existe, não é possível garantir que qualquer preso possa ser recuperado através da ação x ou da ação y. Claro que essa oportunidade tem que ser dada, mas ela tem que variar de acordo com a periculosidade da força criminosa que esse indivíduo tem. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Há momentos em que o remédio amargo é que pode curar a doença.”
Márcio Christino participou das primeiras investigações sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC). Com base nessa experiência, diz que a organização só cresceu tanto porque o Estado não controlou os presídios nem reprimiu corretamente o tráfico.
Radicalmente contra a legalização das drogas, o integrante do MP-SP aponta que “essa não é a melhor saída para nenhuma sociedade”. “Nem o álcool nem o tabaco têm essa capacidade de vício da cocaína, do crack, e da maconha também. Teria que gastar muito em tratamento, e nem sabemos se esse tratamento seria eficiente, porque o tratamento dos viciados não tem um retorno muito grande”, declara, ressaltando que a regulamentação dos entorpecentes também aumentaria o número de crimes violentos.
Embora os condenados por tráfico de drogas componham 28% da população carcerária brasileira, Christino alega que uma intensificação da repressão ao tráfico. Na realidade, reduziria o número desses presos. “Quando há uma repressão eficiente, não tem mais essa quantidade de pessoas vendendo drogas.”
Além disso, o procurador de Justiça não vê problemas no dado de que 74% das prisões em flagrante por tráfico só têm testemunhas policiais. “Por acaso alguém acha que é comum ou viável procurar uma testemunha que deponha contra o traficante? O viciado se disporia a depor contra o próprio traficante que fornece a droga para ele? É uma dificuldade absurda levar outras testemunhas para depor”, alega, ressaltando que o acusado terá ampla oportunidade de se defender no processo.
Em entrevista à ConJur concedida na sede do MP-SP, Márcio Christino ainda explicou as causas do sucesso do PCC, avaliou a influência dessa organização na redução da violência em São Paulo e defendeu a adoção de institutos do Direito norte-americano no Brasil.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor se especializou no PCC?
Márcio Christino — Não é que eu me especializei no PCC. Eu estava no lugar certo, na hora provavelmente errada. Era um momento onde o PCC ainda não tinha ganhado essa amplitude, foi antes da megarrebelião. Eu trabalhava investigando abuso de autoridade, crimes praticados contra presidiários, espancamento por policiais, torturas. Quando ouvia os presos, eles faziam referência ao “partido”. Comecei a perceber que existia alguma coisa ali. Nesses casos, o preso era a vítima, não réu, então ele tinha uma tendência a se abrir mais para nós [do MP]. Com essa informação, avisei o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e comentei o caso com o Roberto Porto, que era meu colega na época. Eu continuei acompanhando as investigações até que veio a megarrebelião de 2001. Quando isso ocorreu, o impacto político-social deles cresceu muito. Daquele momento em diante, o PCC passou a ser notoriamente reconhecido. A partir dali, os trabalhos foram intensificados. Como eu já tinha esse contato com os presos, foi natural que eu também participasse dessa apuração. Meses depois da primeira operação, fui designado para compor o Gaeco e comecei a me concentrar nessas investigações.
ConJur — Como estão essas investigações hoje em dia?
Márcio Christino — Já estamos em uma segunda geração de investigadores. Temos promotores excelentes, que estão produzindo operações como a ethos [que prendeu advogados suspeitos de envolvimento com o PCC]. Nesses 16 anos, surgiu a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), que modificou as formas de investigação.
ConJur — Algum ex-integrante do PCC já firmou acordo de delação premiada?
Márcio Christino — Sim. Um dos fundadores do PCC, o José Márcio Felício, vulgo Geleia, Geleião, Cavalo Branco, fez delação premiada em uma época em que esse instrumento estava previsto na Lei de Proteção a Testemunhas (Lei 9.807/1999). Eram formatos ainda primários, não tinha o contorno que tem hoje, mas já naquela época ele fez delação premiada. Inclusive foi ele que trouxe a prova direta da participação do Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, no esquema, o que levou à condenação dele e de outros líderes que à época comandavam o Primeiro Comando da Capital. Foi a primeira condenação específica por chefiar organização criminosa, em um processo que só tinha esse objeto, e acabou dando certo. Também houve alguns personagens menores que fizeram delação premiada.
ConJur — Houve alguma delação premiada nos moldes da Lei de Organizações Criminosas?
Márcio Christino — Se houve, eu desconheço. Mas, cedo ou tarde, isso acontecerá. Estamos vendo o efeito das delações premiada nas grandes operações. E o mecanismo está começando a se espalhar, deixando de ser um mistério. Assim, os envolvidos começam a ter ideia de que isso pode acontecer.
ConJur — Como o PCC se difere de outras facções criminosas, como Comando Vermelho, Terceiro Comando da Capital ou Amigos dos Amigos?
Márcio Christino — Essas facções têm uma história diferente. O Comando Vermelho surgiu muito antes, na prisão de Ilha Grande (RJ), fruto da ligação entre presos políticos e presidiários comuns. Já o PCC surgiu de um grupo de indivíduos que queriam criar o que seria, para os norte-americanos, um sindicato do crime. Ou seja, uma aliança entre os grandes líderes de quadrilhas de criminosos que tinham uma ascendência muito grande. Esse é o elemento comum que havia. Eles tinham uma ascendência muito grande sobre a massa carcerária, então criaram essa liderança com o intuito de comandar de dentro dos presídios as ações fora, e também de dominar os presídios impondo a força deles sobre o Estado. Isso aconteceu antes de 1993, mas foi nesse ano que eles formalizaram a existência do grupo com uma rebelião — na verdade, com dois homicídios, que foram praticados em 31 de agosto de 1993 na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Eles eram sete, e tiveram essa ideia de fazer um avanço inicial. A partir de lá, foram crescendo. Mas o PCC é fruto dessa ideia de dominação externa. Ou seja, o PCC surgiu de forma completamente diferente do Comando Vermelho. As facções que vieram depois são espelhos do que o PCC fez, porque como a organização foi considerada “bem-sucedida”, passou a criar espelhos, e esses espelhos são facções ou microfacções, que ou são rivais aqui em São Paulo ou buscam reproduzir uma experiência que eles acham exitosa em outros estados. Em São Paulo, o PCC domina mais de 90% do tráfico de drogas. O PCC se espalhou de Taubaté para São Paulo, depois para o estado inteiro, depois Paraná, Mato Grosso, depois o Nordeste, Sul, e hoje se associaram a produtores de cocaína da Bolívia, transportando a droga também com uma base no Paraguai. De certa forma, o PCC se tornou um cartel internacional.
ConJur — Mas realmente há células do PCC em outros países?
Márcio Christino — Não sei se é possível conceituar isso como uma célula, mas o PCC mantém focos no Paraguai e na Bolívia, sem dúvida. Aliás, no Paraguai, o diálogo deles é supostamente travado com um traficante famoso, o Jarvis Pavão, que teria mandado matar o presidente do Paraguai, Horacio Cartes. E ele que manteria toda essa estrutura.
ConJur — Por que o PCC conseguiu se expandir tanto?
Márcio Christino — O PCC se expandiu seguindo as rotas do tráfico. Quando ele vai em direção ao Paraguai, Mato Grosso, Paraná, ele está seguindo as rotas do tráfico. Isso também foi fruto da transferência de alguns presos para essas regiões, principalmente as lideranças, como o Cesinha, o José Márcio. Quando eles saíram, passaram a repetir o modelo de organização do PCC em outros estados. Fora isso, havia um vácuo, porque não tinha crime organizado com essa proporção nem com esse tipo de estrutura, com essa divisão, essa amplitude. Eles foram ocupando um espaço onde não havia opositores. E cresceram tanto está em conflito com a Família do Norte, mas no começo este grupo era um braço do PCC, que havia se organizado à semelhança do próprio PCC. E não havia resistência a essa expansão. Como o Estado não tinha tomado consciência desse movimento, naquele primeiro momento não conseguiu opor um obstáculo a essa expansão.
ConJur — Alguns pesquisadores afirmam que a estrutura corporativa do PCC seria outro fator que contribui para o seu sucesso. Segundo eles, a facção funciona como se fosse uma empresa. O que o senhor pensa dessa avaliação?
Márcio Christino — Eu não sei se a estrutura do PCC é semelhante à de uma empresa, mas, de fato, eles têm organização. Por organização entenda-se divisão em órgãos, com atividades específicas, hierarquia, divisão de funções. A facção tem tabelas de preços, organiza a distribuição, monta uma estrutura para isso. Então o PCC tem uma atividade empresarial, e isso faz com que eles tenham lucro. Por isso, eles deixaram de ser uma quadrilha que executa uma determinada ação e divide o dinheiro, cada um fica com uma parte. Eles passaram a ter um corpo, e esse corpo é que fez o sucesso deles.
ConJur — Os presídios federais, de segurança máxima, falharam em desarticular as facções criminosas?
Márcio Christino — Quando eles foram construídos, as facções já estavam bem evoluídas. Talvez eles tenham chegado tarde demais. Os presídios federais são bons instrumentos, mas isso não basta para desarticular as facções. É preciso ter outras ações, como uma mudança legislativa para criar condições de isolamento dos líderes das facções criminosas. O isolamento dos líderes no Brasil não é eficiente, porque a lei não permite. Isso precisa ser eficiente como nos EUA. Al Capone, por exemplo, foi transferido para a prisão de Alcatraz [em São Francisco], e a organização dele feneceu. Ou mesmo como na Itália. Depois do homicídio do juiz [que comandou a operação mãos limpas] Giovanni Falcone, o mafioso que o matou foi isolado, e nunca mais conseguiu influenciar sua organização. No Brasil, porém, o líder continua organizando e liderando a facção criminosa enquanto está preso. No regime de pena que temos, a contenção do regime fechado não é suficiente. Nem mesmo o regime disciplinar diferenciado. O RDD não é regime de cumprimento de pena, ele é pontual, uma medida que pode ser aplicada de 6 meses a 2 anos, geralmente de 6 meses a 1 ano. Isso não é suficiente.
ConJur — O RDD deveria poder ser decretado por um período indeterminado?
Márcio Christino — Não digo indeterminado, o RDD deveria entrar em alguns casos em que uma parte da pena tivesse que ser cumprida em regime fechado. Se o sujeito foi condenado a 20 anos de prisão, teria que ficar 4, 5, 6 anos em RDD. O regime fechado tem que ser suficiente para retê-lo. Não que isso deva ser aplicado a qualquer crime, seria para aqueles em que se reconheça um líder criminoso ou uma periculosidade excessiva. Nós necessitamos de um regime de cumprimento de pena mais rigoroso para neutralizar essas lideranças e pessoas com esse grau de periculosidade.
ConJur — Mas deixar essas pessoas mais tempo isoladas não compromete ainda mais a possibilidade de elas voltarem a se reintegrar à sociedade?
Márcio Christino — Olha, se esse preso tem um grau de periculosidade tão grande, ele vai precisar de mais tempo mesmo para poder se reintegrar, se é que ele vai se reintegrar à sociedade. Temos que reconhecer que não há garantia nenhuma de que um criminoso desse tipo vá ser reintegrado. Isso não existe, não é possível garantir que qualquer preso possa ser recuperado através da ação x ou da ação y. Claro que essa oportunidade tem que ser dada, mas ela tem que variar de acordo com a periculosidade da força criminosa que esse indivíduo tem. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Há momentos em que o remédio amargo é que pode curar a doença.
ConJur — Que outras alterações legislativas poderiam ser feitas para reduzir o poder das facções criminosas?
Márcio Christino — Penso numa legislação semelhante à americana do plea bargain, onde há possibilidade de negociação, que não é propriamente delação premiada. Por exemplo, em uma ação penal eles não denunciam necessariamente todas as pessoas, mas os principais suspeitos, dentro do conceito de crime organizado. Quanto aos de nível hierárquico inferior, eles usam medidas penais mais leves, permitindo que a investigação se concentre em determinadas lideranças. Outra coisa: da maneira como é feita hoje, a execução penal da maneira está falida. Não existe possibilidade de aplicação da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) da maneira como ela foi concebida. Essa estrutura que foi prevista na lei não corresponde à nossa realidade. A lei tem que ser adequada à nossa realidade, para que pudesse atingir o sistema prisional e fazer com que a pena fosse cumprida de maneira mais justa e eficiente. Juntando esses fatores, pode-se chegar a um resultado positivo. Não acredito que isso vá acabar com o crime ou com as facções, mas vai reduzir a capacidade de atuação delas de uma maneira muito eficiente.
ConJur — O senhor poderia dar alguns exemplos de como a Lei de Execução Penal poderia ser modificada?
Márcio Christino — Da maneira que ocorre hoje, a progressão de regime é uma fantasia. Em um primeiro momento, o condenado fica em regime fechado. Depois, ele progride para o regime semiaberto. Mas como não há vagas nos estabelecimentos adequados, ele passa imediatamente para o regime aberto. Ou seja, o condenado acaba cumprindo uma quantidade ínfima da pena em relação ao total. Se o sujeito foi condenado a 12 anos, acaba cumprindo dois. Seria preciso mudar isso, talvez com uma alteração nesses parâmetros de tempo, talvez com limitação quanto aos regimes, sem seccioná-los tanto. E exigir mais exames criminológicos para essas progressões.
ConJur — O senhor pensa que o combate ao crime organizado tem ajudado a diminuir o poder desses grupos e reduzir a criminalidade?
Márcio Christino — Temos tidos ações muito eficientes, que alcançaram seus objetivos. Elas podem não acabar com o PCC, mas retardaram o crescimento dessa facção. O Estado deveria se impor mais? Sim, deveria, deveria reconquistar o espaço dentro dos presídios. Mas repito: para isso, é preciso ter ajustes legislativo, administrativo e de gestão em torno da questão prisional.
ConJur — Alguns pesquisadores, como Graham Williams, da Universidade de Cambridge, Bruno Paes Manso, da Universidade de São Paulo, e João Manoel Pinho de Mello, do Insper, afirmam que a redução da taxa de homicídios em São Paulo — que caiu de 52,58 assassinatos por 100 mil habitantes em 1999 para 8,73 em 2016 — não ocorreu por um aumento de eficácia do combate ao crime e de melhores políticas públicas, mas porque o PCC dominou todas as favelas, acabando com os conflitos nessas áreas. O que o senhor pensa dessa avaliação?
Márcio Christino — Eu concordo com eles. Ninguém pode determinar até que ponto isso ocorreu por influência de um ou outro fator, porque para saber seria preciso catalogar todas as ações do PCC — algo impossível de se fazer. Mas um dos reflexos do domínio de uma organização criminosa sobre um determinado lugar é o seu predomínio sobre tudo o que acontece ali. O crime organizado não aceita concorrência, não aceita que os seus negócios sejam perturbados. Então eles dominam o espaço e, lá, não permitem que nada ocorra para não ferir os seus próprios interesses comerciais. É evidente que eles não vão permitir que sejam praticados roubos ali, que sejam cometidos homicídios. Outro ponto é que as facções criminosas têm um aspecto semelhante a organizações militares. Não é que eles estejam atuando em brigadas, é como se fosse uma ocupação militar, como se tivessem invadido um espaço, e, a partir daquele momento, eles controlam o ambiente em todos os sentidos — não permitem que se faça a, b ou c lá. Essa ocupação do PCC, de certa forma, afeta os índices de criminalidade.
ConJur — Estima-se que o PCC fature R$ 240 milhões por ano. Desse total, avalia-se que 80% venha da venda de drogas. A guerra às drogas é responsável pelo crescimento de facções criminosas como o PCC?
Márcio Christino — Primeiro que ninguém sabe a real extensão de quanto eles faturam: pode ser R$ 240 milhões mesmo, pode ser mais. Agora, o PCC, quando nasceu, não era só baseado no tráfico. A especialização do tráfico veio depois, quando a organização já estava estruturada em torno do Marcos Willians Herbas Camacho. O PCC se concentrou no tráfico de drogas porque ele é um crime que permite um rendimento permanente. Não é como o roubo, não dá para praticar um roubo todo dia. Mas é possível vender droga todos os dias. Aí, a organização conta com a aquiescência da suposta vítima, que é o viciado, não tem confronto. Há uma série de fatores que fazem com que o tráfico seja um crime mais eficiente. Eles entram na guerra às drogas? Sim. Agora, a guerra às drogas está ligada ao crescimento do PCC? Não. O tráfico tem que ser combatido, seja como for. A guerra às drogas favoreceu o PCC? Se o combate às drogas fosse mais eficiente, teria acabado com o PCC, porque impediria que ele se espalhasse. Talvez precisássemos rever a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), não para evitar combate ao tráfico, mas que ele seja mais eficiente, mais duro em relação a traficantes. Nós temos as menores penas para tráfico no mundo. O Brasil é um país atrativo para quem quer traficar, é um paraíso. Com a redução da pena, que é praticamente obrigatória, o sujeito acaba sendo condenado a 1 ano e 8 meses de prestação de serviços à comunidade. Na prática, a pena acaba não sendo cumprida.
ConJur — A regulamentação das drogas não seria uma forma de reduzir a força do PCC?
Márcio Christino — Não, porque, para reduzir a força do PCC, seria preciso liberar todas as drogas, especialmente a cocaína e o crack, que é onde eles estão mais focados. Se liberarmos o consumo, também temos que liberar a venda. Caso contrário, o comércio de drogas continuaria na mão das facções. Mas vamos fazer isso com o crack, com todos os efeitos nocivos que ele tem? Vamos fazer isso com a cocaína, com todos os efeitos nocivos que ela tem? Nós não temos estrutura nenhuma para absorver as consequências que o alastramento do tráfico causaria. Nós não temos estrutura de saúde sequer para atender às pessoas com doenças graves, vamos ter para absorver todos os viciados? Veja o exemplo da cracolândia. Como o Brasil vai lidar com esses guetos de consumidores de drogas? Nós temos condições para isso? Eu não acho que temos condição para isso, ainda mais com as restrições econômicas que nós temos. Essa é uma via que, se for escolhida, vai trazer um resultado extremamente desfavorável para a sociedade.
ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Márcio Christino — Esse é um conceito que já está fora de moda. Quem usa uma substância tóxica dessas não afeta apenas a si mesmo, mas também o entorno social que está à volta dele. Além de atingir o núcleo familiar, essa pessoa coloca em perigo as suas relações sociais. Se uma pessoa usa cocaína, ela perde o sentido da realidade, perde até o domínio sobre a sua própria vontade. Ela se sujeita a realizar qualquer tipo de ato para satisfazer o seu vício. Essa pessoa é agressiva, perde o sentido de obediência ao sistema legal e ao sistema social, ao convívio social. Então, essa pessoa não afeta só ela própria. Antigamente, os índios americanos se isolavam em uma montanha, fumavam, ficavam lá, depois voltavam para a aldeia, e faziam isso como uma experiência mística ou religiosa, completamente isolados. Isso não ocorre hoje em dia. O indivíduo prejudica todos que estão à sua volta, e não somente a si mesmo. Esse conceito de que “eu só me prejudico” já está vencido. Além disso, quem usa droga se coloca numa situação de necessidade de ser atendido, ocupa um espaço que, teoricamente, deveria ser preenchido por uma pessoa que não se expôs a esse risco.
ConJur — A guerra às drogas não reduziu o consumo de entorpecentes no mundo. Não seria melhor regulamentá-las de alguma forma e mudar o foco para o atendimento médico dos usuários do que ficar fortalecendo facções que comercializam entorpecentes? Os danos sociais não seriam menores?
Márcio Christino — Esse raciocínio é frágil. Você diz que o crime continua sendo praticado independentemente da repressão. Ora, homicídio é praticado desde a época bíblica, e nem por isso você vai deixar de reprimi-lo. Assim como o roubo, ou furto, ou qualquer outro tipo de crime. Se está aumentando o consumo de drogas ou não, isso depende de você fazer uma medida que deve levar em conta o aumento populacional. Em certos países aumenta, em outros diminui, é a lei da oferta e da procura. Essa é uma opção política, mas esses argumentos são frágeis. Mesmo porque é preciso supor que qualquer alternativa ao combate ao tráfico deveria necessariamente envolver o fornecimento de drogas a quem assim o desejar. Então, vamos permitir a disseminação da cocaína, do crack, do LSD e outras drogas? Qual é o benefício disso para a sociedade? “Ah, não vai armar as facções”. Mas a que preço? Quem vai arcar com os danos que isso vai causar à saúde pública? Você vai ter situações extremas, como a Cracolândia. Eu recebi uma pergunta muito interessante esses dias: “Você seria a favor da legalização das drogas se você tivesse um filho morando na Cracolândia?”. Essa é uma situação completamente diferente. É uma situação em que o indivíduo chega a perder a sua humanidade. Então, permitir e incentivar o livre consumo de substâncias não é a melhor das saídas. Isso atenderia aos interesses daqueles que lucrariam com esse mercado. Calcule quantos laboratórios ficariam felizes com isso. Eles obteriam lucros altíssimos vendendo substâncias dessa natureza, com o número de viciados crescendo constantemente. Não vejo isso como a melhor saída para nenhuma sociedade.
ConJur — A seu ver, a legalização das drogas faria explodir o número de usuários, causando uma espécie de epidemia social?
Márcio Christino — Poderia ensejar isso, ou pelo menos, uma doença social extremamente severa, com consequências muito graves para a sociedade, e, principalmente, para aqueles que não são usuários de drogas principalmente. Existem alguns argumentos no sentido de que, se a droga for legalizada, irá diminuir o consumo. Se você for verificar o potencial viciante da cocaína e do crack, verá que essa alternativa é inviável. Isso porque a força que essas drogas têm de causar dependência fará com que o consumo cresça. É inviável admitir que o fornecimento de uma substância que, em pouco tempo de uso, faça com que a pessoa seja escravizada pelo seu uso não vá acarretar o crescimento do consumo.
ConJur — Mas com a regulamentação, os recursos atualmente investidos na repressão ao tráfico de drogas poderiam ser usados no tratamento dos usuários e na prevenção ao uso, como é feito com o cigarro e com o álcool. Isso não evitaria ajudaria a diminuir o consumo?
Márcio Christino — Pode até ser, mas também não é eficiente. Nem o álcool nem o tabaco têm essa capacidade de vício da cocaína, do crack, e da maconha também. Teria que gastar muito em tratamento, e nem sabemos se esse tratamento seria eficiente, porque o tratamento dos viciados, dos drogaditados, como se fala, não tem um retorno muito grande. É muito difícil de fazer, é longo, difícil e sem nenhuma garantia de resultado. Com isso, estaríamos jogando com uma possibilidade de benefícios que está muito abaixo das consequências negativas que ocorreriam simplesmente pela disseminação do uso. Seria melhor ter uma repressão eficiente ao tráfico do que simplesmente permitir que o tráfico se realizasse livremente.
ConJur — Outro argumento usado pelos opositores da legalização é o de que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que o senhor pensa desse argumento?
Márcio Christino — Bom, eles têm lucro, e vão querer manter esse lucro acima de tudo. Eles não vão se regenerar simplesmente porque o tráfico passou a ser considerado lícito. Eles vão partir para outra atividade criminosa. Nos vídeos das rebeliões que ocorreram em prisões do Nordeste e do Norte, vê-se que há indivíduos extremamente agressivos, que mutilam corpos. Nada disso é novidade, mas nessa quantidade, sim. Se o tráfico fosse legalizado, essas pessoas seriam libertadas imediatamente. Dá para imaginar que eles vão se regenerar automaticamente? Eu tenho sérias dúvidas de que este raciocínio esteja correto. Penso que eles vão procurar, podem procurar alguma outra atividade ilícita para suprir o que estavam ganhando na traficância.
ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Márcio Christino — Absolutamente não viola o contraditório e a ampla defesa. A defesa participa do processo, irá inquirir os policiais, questionar. Não é só a palavra dos policiais que conta. Tem também a droga apreendida. O que é espantoso dessa afirmação é dizer que, em regra, a condenação é feita apenas com base na palavra de policiais militares. Por acaso alguém acha que é comum ou viável procurar uma testemunha que deponha contra o traficante? As pessoas vão se dispor a testemunhar contra traficante, mesmo sem o Estado lhes proporcionar nenhum tipo de defesa, qualquer tipo de segurança para os dados dela? Mesmo que sejam riscados, os dados estarão visíveis para o advogado de defesa. O policial vai ter que sair na rua procurando pessoas para depor contra um traficante? Você acha que as pessoas iriam de bom grado? Ou que essas apreensões são feitas normalmente em lugares públicos, com grande trânsito de pessoas? Não é assim que o traficante age. Ele sempre age às escondidas, normalmente em locais escuros, em lugares onde ele pode ocultar a droga em algum outro lugar, onde o trânsito de pessoas é muito pequeno. Quando muito, o acesso é feito pelos próprios viciados. O viciado se disporia a depor contra o próprio traficante que fornece a droga para ele? É uma dificuldade absurda levar outras testemunhas para depor. É óbvio que dessas pessoas seria viável se o crime fosse surpreendido na presença de várias pessoas. Essa afirmação teria que ser um pouco mais repensada. Quem diz isso precisa passar mais tempo fazendo pesquisa, presenciando ou participando das audiências, e não basear seu argumento somente em uma amostragem numérica que não revela o conteúdo daquilo que foi feito.
ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Márcio Christino — Isso é uma besteira assustadora. Primeira porque o delegado faz uma avaliação preliminar da situação. Não é ele quem decide se aquilo é tráfico ou não. Segundo, aqui em São Paulo, os acusados são submetidos a audiência de custódia. Ou seja, eles são presos, e 24 horas depois estão com um juiz que vai analisar se a prisão deve ser mantida. Ou seja, o acusado de tráfico já passou pelo crivo do delegado, do defensor público, do promotor e do juiz. E outra: não é a quantidade de droga que determina se é uso ou tráfico. O dolo advém das circunstâncias que envolvem a prática do crime. Não existe prova daquilo que a pessoa faz, da intenção dela. A intenção reside na mente de cada pessoa. A intenção se revela através dos atos da pessoa, não do que ela fala. Se eu tenho um papelote de cocaína e estou numa posição onde eu entrego para um viciado qualquer e recebo dinheiro dele como pagamento, isso é um ato de tráfico. A Lei de Drogas prevê circunstâncias para verificar se é tráfico ou não, é o tempo, o local, a quantidade de droga, a postura, e o delegado tem que justificar isso do auto de prisão em flagrante. A apreciação do delegado não é completamente objetiva. É óbvio que não se pode exigir que o traficante confesse que praticou esse crime, mas tem os depoimentos dos policiais militares, a apreensão da droga, a avaliação do advogado, a audiência de custódia. Depois, tem a denúncia, a defesa preliminar, o juiz aceitando a denúncia, a defesa a instrução. Ou seja, é um processo complexo. Então essa ideia de que o sujeito é condenado por objetividade é completamente falsa.
ConJur — Muitos afirmam que deixar que o policial decida se a quantidade de droga apreendida configura tráfico ou uso, sem que haja uma tabela fixando as quantias para cada um desses crimes, viola o direito de defesa. O senhor pensa que uma tabela dessas ajudaria a reduzir arbitrariedades?
Márcio Christino — A quantidade por si só não permite que se conclua automaticamente se é caso de uso ou tráfico. Existe aquilo que chamam de “tráfico formiguinha”. Nele, o traficante fica com dois, três papelotes no bolso, e ele fica perto de onde a droga fica depositada. Aí vem o viciado, ele lhe entrega o papelote e recebe o dinheiro. Se a polícia prender o traficante nesse momento, não vai encontrar 100 quilos de droga com ele. No entanto, ele é traficante porque estava vendendo. Então, só esse critério de quantidade é extremamente perigoso, porque vai permitir a venda dentro desse esquema de quantidade. Iria criar um exército de vendedores.
ConJur — Como melhorar o sistema prisional brasileiro, a curto e a longo prazo?
Márcio Christino — O Estado tem que dominar completamente o sistema prisional, sem dar nenhum espaço para que as facções ajam dentro das unidades.
ConJur — O sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crimes punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?
Márcio Christino — Os que poderia ter penas alternativas já têm. Hoje em dia, só não podem ter pena alternativa os crimes cometidos com violência ou grave ameaça, ou os hediondos e os equiparados a hediondos. Mesmo assim, o tráfico privilegiado também tem pena alternativa – e isso constitui 99% dos casos. O Brasil, nesse ponto, está até sendo leniente demais. O Brasil tem que escolher entre reprimir ou não reprimir o tráfico de drogas. Como o Estado quer reprimir, mas ao mesmo tempo não pretende que essa repressão seja muito rígida, acaba fazendo uma legislação que acaba não atendendo nem um foco nem outro. Se for para combater o tráfico, que combata duramente, de forma a impedi-lo. Se não for, que aplique medidas alternativas. Se continuarmos no meio do caminho, nada mudará. Hoje em dia, mesmo sendo reincidente, o sujeito acaba tendo a pena reduzida. De cinco anos, a pena vai para um ano e oito meses.
ConJur — A seu ver, o Estado deveria optar por qual desses caminhos: reprimir mais ou adotar medidas alternativas?
Márcio Christino — Reprimir, fazer uma repressão eficiente. Se for reconhecido o tráfico, o traficante tem que ter uma pena que seja correspondente àquilo que ele faz. Se for para combater as facções, que se combata com um regime de pena severo, com isolamento, penas graves. Nenhum país do mundo liberou as drogas como se pretende fazer aqui. Nenhum. Por outro lado, há países onde a repressão é mais eficiente. Nessa encruzilhada, precisamos saber se nós vamos para a direita ou para a esquerda. Hoje em dia estamos parados no meio do caminho, sem saber para que lado ir.
ConJur — Se fosse aumentar essa repressão, teria que instituir penas mais graves para o uso?
Márcio Christino — Para o uso, não. Só para o tráfico. O uso hoje não tem pena nenhuma, quando muito, o sujeito recebe uma advertência. Agora, precisaria neutralizar o vendedor de drogas, que é o grande ponto fraco do tráfico. Não é a produção, não é a remessa, e também não é o aspecto da lavagem de dinheiro. O ponto fraco é o ponto da venda, porque ali o traficante tem que se revelar, e ele faz isso através de terceiros. Se cortar esse canal de comunicação, o tráfico já dará uma diminuída.
ConJur — 28% dos presos brasileiros foram condenados por tráfico de drogas. Aumentar a repressão ao tráfico não poderia aumentar ainda a superlotação do sistema carcerário?
Márcio Christino — Não, porque não vai aumentar o número de traficantes. Talvez vá diminuir o número de traficantes.
ConJur — Mas isso não poderia aumentar o número de presos?
Márcio Christino — Não necessariamente, porque quando há uma repressão eficiente, não tem mais essa quantidade de pessoas vendendo drogas.
ConJur — Então o senhor acredita que aumentar a repressão poderia diminuir o número de presos?
Márcio Christino — Iria diminuir porque não se iria permitir que esse espaço cresça. O que acontece hoje? O pratica o tráfico, recebe pena de um ano e oito meses, cumpre, e vai fazer o quê? Ele vai traficar de novo, e só será preso depois. Quando ele é neutralizado, não volta para a traficância, ele deixa de ocupar o espaço. A tendência é de que a eficiência da repressão funcione como um elemento inibidor. Vamos supor que haja uma rede de lanchonetes que tem grande movimento. Se diminuir a quantidade de vendas, também diminuirá o número de consumidores. Com isso, diminuirá o número de lojas e de funcionários. É uma lógica comercial, não literalmente penal. Nesse sentido, é possível diminuir o número de traficantes, sim.
ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Afinal, aumentar penas reduz a criminalidade?
Márcio Christino — Em determinados pontos, sim. Se ela for aplicada eficientemente, sim. Não precisa nem aumentar pena, precisa torná-la mais efetiva. A pena serve como elemento inibidor. Se atingirmos esse patamar de inibição, talvez não precisemos aumentar a pena. Aí eu volto àquela observação anterior: esse modo de execução penal não é eficiente para que o sujeito não volte a traficar.
ConJur — A seu ver, o requisito básico de cumprir um sexto da pena para progredir de regime é muito baixo?
Márcio Christino — É muito baixo, é até incompatível com a prática do crime. Se houvesse um exame criminológico, ou, como nos EUA, uma comissão de condicional, a progressão do regime poderia ocorrer com o cumprimento de um sexto da pena, um quarto ou a metade, porque aí haveria uma avaliação do caso concreto, e não apenas um requisito objetivo. Há pessoas para as quais um sexto pode ser eficiente, há outras que têm necessidade de ficar mais tempo encarceradas. Isso seria decidido a partir da pena que foi imposta. No caso do tráfico, a pena inicial tem que ser regime fechado, no mínimo. A partir desse mínimo, o sujeito passaria pela análise de uma comissão, que decidiria se o sujeito tem chance de se recuperar. Se sim, vai para a rua. Se não, fica mais um tempo preso. Mas é preciso ter um patamar mínimo. Dificilmente um traficante vai se recuperar em cinco meses, que é o que ocorre se ele pegar a pena mínima de um ano e oito meses. Esse teria que ser um critério que a lei especificaria com relação ao crime que o sujeito praticou. No caso de tráfico, isso poderia ser fixado de acordo com a quantidade de droga que foi apreendida.
Fonte: Conjur