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Matuê e o seu show de rap em um local considerado o purgatório dos negros

Essa matéria está pronta desde ontem a noite, terça-feira (30), esse texto está saindo hoje por uma decisão do editorial do RND e do Henrique, do Quadro em Branco. Como a denúncia partiu dele, nada mais justo que saísse um vídeo primeiro em seu canal no Youtube, o qual você pode conferir aqui: Matuê, Charqueadas e a Insensibilidade Política.

Esse não é um texto escrito apenas pelo RND, é um texto escrito por Daniel Morais, uma pessoa que adora o Matuê, uma pessoa que fez de tudo para que o artista Matuê tivesse uma estrada bem pavimentada para alcançar o seu sucesso. Ele alcançou, por seus méritos.

Terça-feira (30), chegou até mim, após um monte de telefone sem fio, uma denúncia bem grave. Após um trabalho de apuração e com uma fonte importante e confiável, as informações preponderantes foram aparecendo, quando de repente se tornara obrigatório uma matéria sobre o assunto.

Matuê e o seu rápido sucesso

Matuê estourou dentro do cenário do rap nacional ano passado (2017), esse é o seu segundo ano surfando o hype da grande onda trap que invadiu o mercado nacional. O seu nível mercadológico subiu de forma estratosférica, o seu cachê acompanhou todo o seu sucesso, todas as suas músicas se tornaram hits e hinos dentro do trap. Esse é o resumo: do fenômeno Matuê.

Um artista não tem obrigação de ser politizado, a sua música não tem obrigação de ser politizada, mas em meio a esse caos politico e social em que vivemos, tudo consegue ter um peso ainda maior tanto para quem se posiciona como para quem não se posiciona.

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Nesse período eleitoral, o rapper cearense sempre foi acusado de se posicionar politicamente de forma quase que forçada, as pessoas não conseguiam enxergar um discurso genuíno e sim um discurso de uma pessoa que estava seguindo o fluxo, diferente de Ret e Emicida, que fizeram seus discursos e tiveram posições firmes e inquestionáveis.

Evento de rap e a celebração da cultura negra em um ambiente hostil

Matuê vai fazer show dia 2 de novembro na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, o evento será o Baile do Ferraz 2.0, muitos ingressos já foram vendidos e provavelmente a casa estará lotada.

A descrição do evento no Facebook segue assim: “C.A Produções é um novo conceito de festas em Pelotas, que veio com o intuito de fortalecer a cena Funk/Rap/Trap no Rio Grande do Sul. Para deixar o clima do dia 2 de novembro Boomzin, viemos apresentar nosso evento de lançamento trazendo uma das maiores revelações do rap nacional. Então, põem “Lama no Copo” mano porque a C.A tá “De Alta”.

Local do evento: Charqueada Costa do Abolengo. Chegamos ao real problema disso tudo, o local onde o Matuê irá fazer sua apresentação no dia 2 de novembro. As charqueadas historicamente sempre foram sinônimo de um ambiente hostil para os negros, que eram obrigados a trabalhar nesses locais de forma desumana, sim, voltamos até a época da escravidão brasileira, estamos falando daquele assunto que incomoda e que machuca, por que o hip hop jamais poderá esquecer isso.

O cotidiano nas charqueadas

Antes de mais nada, precisamos explicar que as antigas charqueadas eram o local onde se produziam o charque, um tipo de carne seca. No auge da safra, o dia de trabalho poderia ter 16 horas, pelo menos. Após o serviço, os trabalhadores estiravam-se sobre a tarimba para acordar novamente com a sineta à meia-noite e iniciar nova jornada.

Quando se acidentavam, ficavam doentes ou eram castigados no tronco, o que se mostrava comum devido ao excesso de trabalho, os escravos eram então levados ao que se chamava de hospital, na própria charqueada, mas que não passava de uma enfermaria com poucos recursos.

A característica de concentrar uma população escrava numerosa, armada com facões e instrumentos cortantes, acrescida do alto grau de tensão provocado pelo trabalho, requeria vigilância armada e disciplina forte para que não houvesse revoltas.

As charqueadas funcionavam como uma espécie de prisão. Por conseguinte, faltas pequenas poderiam dar origem a castigos severos, os quais, tal como em outros locais de grande concentração de escravos, eram aplicados na frente de todos, para dar exemplo aos demais. Sob a fiscalização do feitor, o trabalhador a ser punido era amarrado ao tronco e chicoteado por outros cativos.

Ainda assim, os jornais costumavam apresentar um grande número de fugas do território das charqueadas justamente nos meses do verão, o que demonstra que, na cabeça dos cativos, nem o medo do castigo poderia ser pior do que continuar trabalhando naquelas condições.

Pelotas teve sua riqueza construída pelo braço escravo, o que exigiu a importação de milhares de cativos.

Pelotas, o purgatório e o sofrimento

Pelotas foi o “purgatório” dos escravos angolanos e moçambicanos no sul do Brasil. Milhares de escravos de Angola e Moçambique foram enviados pelos portugueses para o Brasil para servir a classe nobre até à morte. Muitos chegaram à cidade de Pelotas, no extremo sul brasileiro, entre os séculos XVIII e XIX, para trabalhar nas charqueadas – grandes propriedades onde era produzida carne salgada e seca ao sol.

Existe uma análise feita por Beatriz Ana Loner, Lorena Almdeida GillMicaele Irene Scheer sobre as enfermidades que recaíam sobre os escravos que trabalhavam nas charqueadas pelotenses: “Enfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, 1870-1880“. Um estudo denso e completo sobre o assunto, assunto esse que não deve ser ignorado.

Em 1814, considerando toda a província, foram encontrados 20.611 escravos, 8.655 indígenas, 5.399 livres e 32.300 brancos, além de 3.691 recém-nascidos, perfazendo o total de 70.656 habitantes.

O jornal Onze de Junho, do dia 6 de novembro de 1883, noticiou em sua primeira página – com incisivas palavras desde o título: “Crime Abominável” – que Paulo, “um infeliz pardo”, escravo do senhor Antonio Rodrigues Condeixa, sofria de enfermidade pulmonar que certamente o levaria à morte. Segundo a notícia, mesmo diante desse quadro de profundo padecimento humano, seu proprietário só concordaria em libertá-lo com a condição do pagamento de um conto de réis, o que, naquele momento, representava o valor de um escravo sadio.

O fato ocasionou uma intervenção do Clube Abolicionista, por meio da divulgação da história, visando à obtenção da liberdade de Paulo, para que pudesse procurar algum tratamento que prolongasse sua vida ou lhe proporcionasse condições mais amenas. O senhor Condeixa, no entanto, não se compadeceu com o pedido e, mesmo com o fornecimento de atestados de dois médicos pelotenses sobre as péssimas condições de saúde do escravo, puniu-o com quatro dúzias de palmatoadas, além de mantê-lo retido em uma delegacia de polícia.

A expectativa de vida de um escravo na época era de 30 a 35 anos, porém a expectativa de vida de um escravo de charqueada na cidade de Pelotas era bem menor do que 30 anos de idade, pela forma que esses escravos eram tratados pelos seus senhores.

Posicionamento da equipe de Matuê

Antes do Henrique soltar o seu vídeo, antes do RND soltar essa matéria, resolvemos entrar em contato com a parte do Matuê e segundo a produtora da 30PRAUM, Clara, que é responsável por todo gerenciamento de carreira e de shows do artista.

“Não preciso nem dizer que isso é totalmente contra a nossa política de empresa (30PRAUM). Agora não vai ser tão fácil cancelar um show tão próximo, principalmente levando em consideração os fãs. Entraremos em contato com os contratantes desse show para ver se existe a possibilidade de mudar o local.”

Existe um grande problema nesse posicionamento da Clara, não existe margem para “vai ser difícil cancelar”, ainda mais quando o assunto é tão sério. Esse não é um tema que ofende e fere os negros, mas sim um tema que ofende o hip hop, local onde a música do rapper Matuê está inserida. Você não coloca nenhum tipo de empecilho por menor que seja quando o assunto é tão grave assim.

Matuê e Clara

De fato a produtora não sabia a história sobre o local do evento, em determinado momento ela indaga sobre: “No caso estamos falando sobre a cidade ou a casa de show mesmo?”, isso mostra o total desconhecimento sobre o assunto.

Como o próprio Henrique reitera em vídeo, isso não é um vídeo ou matéria para culpabilizar o artista, mas sim um informativo de que toda ação gera uma reação e que sua carreira (artistas em geral) tem que ser construída em bases solidas, respeitando as origens e crenças do hip hop e de toda cultura negra de um modo geral, por que o rap continua sendo e sempre será parte importante e fundamental da cultura negra.

Quadro em Branco e obrigado Henrique

“Fazer um show de rap sem nenhuma consciência politica, em um dos ambientes mais historicamente violentos das memórias escravistas do Brasil. Esse é um sintoma, que também é contraditório com a história do rap, talvez no fundo seja o mesmo processo de apropriação e de esquecimento desses espaços que motive o problema todo, capaz de acharem que é exagero, mas em tempos onde se fantasiam crianças como escravos para festa de Halloween e onde a alienação coletiva faz com que a maior parte das pessoas esqueçam da nossa história na hora de tomar as decisões mais importantes, um show de rap em uma charqueada não é uma coisa pra deixar passar”, trecho da fala de Henrique retirada de seu vídeo.

Henrique deixa claro que ele não gosta do Matuê em seu vídeo, eu deixo claro que eu gosto muito do Matuê nessa matéria, mas não é por que gostamos de algo ou alguém que iremos passar pano para um atitude incorreta ou falha, mesmo que cometida de forma indireta e não intencional.

Fonte: DWEnfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, 1870-1880, Quadro em Branco.

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