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Djonga: entre o chão e o trono

Desde que o verso “fogo nos racistas” ganhou as ruas, Djonga consolidou a imagem de um artista que não se alinha ao discurso de conciliação racial e de classe. O rap agressivo e contundente do mineiro veio para desconstruir a narrativa pacífica e conservadora, que conta com a simpatia das camadas hegemônicas da sociedade, e que diz que todos são iguais, com brancos e pretos supostamente vivendo em harmonia e pobres e ricos sendo a mesma coisa.

Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

O discurso artístico de Djonga não é exatamente uma novidade na cena musical brasileira, mas ganha uma conotação mais impactante pelo momento social vivido no Brasil, e também pela fase do Rap na música popular. O gênero já teve auge em diferentes momentos no país, mas possivelmente tem, atualmente, a maior popularidade entre classes da sociedade que antes não eram tão identificadas com o Rap. Também se vive um período em que a cultura negra volta (ou continua, como sempre foi) a ser perseguida e marginalizada, por camadas da sociedade e por membros do governo.

Não vão mais empurrar sujeira pra debaixo do tapete
E nem pra de baixo da minha goela
Eu sou ladrão, os cara faz rap pra boy
Eu tomo dos boy no ingresso o que era do meu povo

A forma sincera e direta com que o cantor lida com a capitalização da arte é muito interessante. Sem clichê, admite que dinheiro é bom e essencial. Por outro lado, não deixa de abordar de forma crítica boa parte dos próprios fãs, que contribuem para essa capitalização. Seja em entrevistas, nos shows, ou nas próprias músicas, o rapper estabelece um diálogo direto e reto com seu público branco. Antes de qualquer tentativa de discurso conciliador, ou do nefasto racismo reverso, Djonga age como anti-herói na cena, diante da ausência de consciência de raça e classe, como na declaração que deu ao canal RAP TV. “Eles invisibilizam a gente sempre que podem e escolhem quem será o artista da vez que vão gostar. Por mais que concordem que é fogo nos racistas, eles têm resquícios de racismo. A tradição da família deles é racista, e quando a coisa aperta, vão correr para o colo dessas pessoas. Agora, são todos legais e estão no nosso lado da luta, mas vão cansar de brincar disso”.

Diante de uma aflorada discussão social e racial no país, Djonga produz em sua própria base de fãs, de forma quase didática, reflexões sobre privilégios e injustiças. Nada impede que pessoas privilegiadas curtam rap, mas é necessário deixar claro que a cultura hip-hop tem um teor político em sua origem e nele não se negocia a essência negra e periférica. Dentro da cultura, cada um tem seu lugar, e o do branco, no caso, é assumir os próprios privilégios. A conciliação pacífica não é o objetivo.

“Nós enchemos a Savassi (área dos boy), de preta e preto só com a voz e com a verdade, no peito e na raça, sem patrocinador oficial, só com o esforço de todas e todos que trabalham comigo ”

Djonga, em publicação no Instagram

21 de abril de 2019, Savassi, região nobre de Belo Horizonte. No KM de Vantagens Hall, Djonga realizou o show de lançamento de seu novo álbum, Ladrão. Isso por si só já seria histórico, impactante. Um artista negro lotando a maior casa de shows da cidade, com um discurso contra o racismo, classismo, homofobia e machismo. Falando sobre a morte do músico no Rio de Janeiro, executado pelo exército. Dizendo o quanto a própria Savassi, lugar em que aconteceu o show, é um local que escancara as injustiças que machucam o seu povo. Mas tudo isso ganha mais sentido quando se observa o conceito artístico do álbum, e como o rapper conseguiu dar forma ao discurso na prática.

Não sou querido entre a nata de apropriadores culturais
Ó que onda!
É que pra cada discurso que eles fazem
É uma vida salva pelo Djonga

Ladrão fala de amor, ancestralidade, empoderamento, e outros temas inerentes a vida de um jovem negro no Brasil. Mas o conceito narrativo escolhido por Djonga para representar tudo isso é o que chama a atenção. O artista se coloca como uma espécie de Robin Hood, que rouba da elite o que a elite roubou do seu povo. Se alguém não entende a estética desse discurso, as metáforas presentes nos versos se materializaram naquela tarde de domingo. Artista em alta, com músicas que alcançam números gigantes nas plataformas de reprodução, agenda lotada de shows. Ainda assim, para o lançamento do álbum, na cidade em que nasceu e cresceu, cobrou um preço simbólico nos ingressos: R$ 10. Não basta o discurso, o esforço para situar os fãs privilegiados nos lugares que ocupam na sociedade. Era necessário um recado ainda mais direto, ou seja, colocar os protagonistas da cultura hip-hop para ocupar um lugar da elite, ou a “área dos boy”, como o próprio artista define. A Savassi abriu alas para o rei e ouviu o grito de quem mora distante e costuma ser visto como ameaça na região.

Tão pequenos diante do sangue da sua família
Eu acho que Davi só vence Golias na Bíblia
Daí formamo um pelotão de 50 mil mano
Que só serve pra confirmar que os cara tá ganhando 

Mas se a postura do rapper, por meio da arte, consegue ser tão real e precisa, não faria sentido que tudo isso soasse totalmente otimista, como se a mensagem fosse perfeitamente entendida por todos. A estética da cultura é utópica quando se expande a visão para a realidade das ruas, do dia a dia. Djonga sabe disso, entende que o empoderamento do negro ainda é algo frágil. A música “Falcão”, a última tocada no show, e que também fecha o disco, fala sobre isso. Ainda que o negro consiga protagonismo na vida social e no trabalho, conquiste dinheiro e poder, ele segue sendo um alvo. E existem tantos e tantos outros que estão fadados a ser somente um alvo mesmo. Gustavo olha para corpos negros no chão e se vê no espelho. Djonga olha corpos negros no trono e se vê no espelho. No fim, Gustavo e Djonga são a mesma pessoa, que mesmo com a vida batendo na porta, ainda sente medo da morte. A arte é forte, mas só ela não basta. Por mais arte que se materializa, para que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho.