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Djonga e Kendrick Lamar: a batalha por uma narrativa social honesta

O álbum To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar, é considerado um dos grandes clássicos da música rap, mas o disco conseguiu algo que, mesmo para os clássicos, não é tão comum: teve uma de suas faixas consagradas como um hino. No verão de 2015, em Cleveland, nos Estados Unidos, militantes do movimento antirracista Black Lives Matter entoaram o refrão de Alright, “we gon’ be alright” (nós vamos ficar bem), para protestar contra a violência policial em uma manifestação. A música, que já era um dos maiores sucessos do álbum, ganhou status de mantra, porque se trata de manter-se vivo, ainda que em meio ao caos, algo que condiz totalmente com a realidade dos pretos ao redor do mundo.

Manifestantes do Black Lives Matter cantam o refrão de Alright em protesto nos EUA

Alguns meses depois do lançamento de To Pimp a Butterfly, Alright ganhou também um videoclipe, que alçou a produção a “ôto patamar”. Imagens e sons de dor e desespero se juntam às sensações de esperança para chegar ao uníssono “we gon’ be alright”. Era impossível que Alright não ganhasse as ruas e os corações dos pretos que se viram representados nas linhas de K-Dot, que ainda proporcionou outro momento histórico da obra ao performar Alright no BET Awards. O rapper cantou em cima de um carro de polícia, com imagens da bandeira dos Estados Unidos ao fundo.

História performance de Kendrick Lamar no BET Awards 2015

A força da mensagem passada por Kendrick Lamar incomodou conservadores na sociedade norte-americana. O jornalista Geraldo Rivera, da Fox News, chegou a declarar que, por atitudes como as de Lamar, o hip-hop é mais nocivo aos jovens negros do que o próprio racismo. A fala do jornalista foi rebatida por K-Dot: “O hip-hop não é o problema. Nossa realidade é o problema da situação. Essa é a nossa música. Somos nós nos expressando”declarou em entrevista ao TMZ.

Kendrick mostrou o impacto de uma arte que explica a realidade e a importância disso contra uma narrativa que nega o racismo.

Kendrick Lamar interpreta Alright em cima de um carro de polícia no BET Awards 2015 / Foto: Christopher Polk/BET/Getty Images for BET

Voltamos ao Brasil para falar de um cara que também é um dos grandes nomes do rap. Djonga já lançou alguns clipes durante a sua carreira que incomodaram os milhares de Geraldo Rivera do Brasil. Corra, Junho de 94 e Hat-Trick seguem a linha da arte que choca por mostrar a realidade da ferida viva que o Brasil insiste em ignorar.

Reprodução / A Música da Mãe

O clipe de “Música da Mãe” foi criticado por muitos, porque no início Djonga aparece dando uma voadora em um garoto branco. O rapper também é criticado até hoje pelo refrão “fogo nos racistas”, que, como Alright nos Estados Unidos, se tornou hino anti-racista em terras tupiniquins. Tais críticas soam como a declaração do jornalista norte-americano que acusou a arte de Kendrick de ser mais nociva que o racismo. Críticas como essa não são só falta de entendimento do significado da arte, mas é também uma negação da desigualdade racial, que muitas vezes são acompanhadas da teoria “terraplanista” do racismo reverso.

O 13 de março de 2020 nos brindou comHistórias da Minha Área, o quarto álbum de Djonga, que já foi pras ruas como um bônus de luxo. A faixa 6, “Hoje Não”, foi lançada com um clipe que segue a linha das produções audiovisuais concebidas ao longo da carreira do rapper. É mensagem sem massagem, ácida, mas dessa vez é também um grito de poder e uma proposta de uma nova realidade.

Reprodução / Hoje Não: Djonga — 2020

O ronco do motor do carro no início da música contrasta com a abordagem policial que simplesmente não o deixa curtir o seu rolê em paz. “É o cara sendo parado pela polícia. E é parado por ser um preto em um carro dahora. E esse cara de alguma forma sou eu, mas são vários caras pelo Brasil afora, pelo mundo afora”disse Djonga, ao Multishow, sobre umas das principais cenas do clube.

Tirando lazer de Porsche, peita da Lost e tudo
Movimento suspeito, pediram pra encostar
O doc tá no meu nome, é o que te deixa puto
“Só pode ser brincadeira,” começa a perguntar
“Tem coisa errada na fita, filhão, cê tá com quem?”
Sou eu por eu, doutor, sei, parece conto de fada
Vai no histórico do Mac ver quem seu filho ama
Achou mesmo que o herói dele ia ser alguém de farda

Uma das faces do racismo retratada na música é o que podemos chamar de violência cultural. “Hoje Não” fala sobre o preto em ascensão sob olhares de uma sociedade que se recusa a ver o negro em um lugar que não é a miséria ou o crime. Mas a chave é como Djonga propõe uma atitude de resposta que passa por se impor e colocar o racista em seu devido lugar.

Reprodução / Hoje Não: Djonga — 2020

No clipe, um dos simbolismos que melhor representa esse enfrentamento são os takes em que a perspectiva da câmera é o próprio cano do revólver do policial. Por mais que o agente do estado veja o preto somente pelas lentes do gatilho, Djonga encara essa ameaça, olho no olho do cano do revólver. Essa imagem possui uma força enorme, unida aos versos que o rapper compôs. É uma resposta à abordagem racista que propõe impor respeito com base nas conquistas que escancaram: o lugar do preto não é o que o racista sonha, por mais que façam de tudo para colocar os negros para baixo. “1–7–1 pra mim não é mais crime, seu guarda. É o número em milhões de streamings no meu Spotify”, canta.

Perguntam se eu não me arrependo do que tenho dito
Mas não se arrependem de Jenifers, Kauãs e Ágathas
Nós aqui carregando o peso do mundo nas costas
Por coisa que nem o peso na sua consciência paga
Eu tô puxando a boia pra ver se os otário afunda
Tipo esses cara que acha que mulher preta é bunda

Outro ponto chave da música é a forma como Djonga coloca lado a lado outras faces do racismo. E nesse sentido, o clipe é cirúrgico para dar ainda mais profundidade à track e evidenciar que “Hoje Não” é sobre outras faces do racismo também, não só do lugar do preto em ascensão, não só da violência cultural, mas de outras expressões do racismo que são ainda mais violentas. A menina desperta dos sonhos e acorda para viver a vida de uma criança normal. Faz o lanche, recebe o carinho da mãe e se prepara para ir à escola. Mas logo o clipe identifica que não se trata de uma criança como as outras. A mãe tem um olhar tenso, preocupado, porque teme pela vida da filha. A oração é um símbolo importante para a família preta que sente o coração apertar a cada vez que um de seus sai de casa.

Reprodução / Hoje Não: Djonga — 2020

Se o discurso de Djonga é tido por muitos como exagerado e extremo, o rapper responde como Kendrick Lamar confrontou os críticos de sua performance no BET Awards. O problema é “fogo nos racistas” ou Jenifers, Kauãs e Ágathas? O rapper eterniza em suas rimas os nomes de crianças mortas pela violência no Rio de Janeiro em 2019 (foram seis ao longo de todo o ano). Um dedo na ferida que mostra, mais uma vez, a importância que a arte pode ter para a construção de uma narrativa honesta, muito mais que apenas uma linha em que o rapper responde quem o ataca.

No clipe, isso funciona de maneira genial e surpreendente nas cenas finais. Os tiros evitados e a imagem da garota olhando os policiais de cima pra baixo e fazendo o sinal de negativo com a cabeça é o ponto alto do vídeo. Porque é uma menina. Porque é uma menina preta, acompanhada de sua gente. Depois disso, vem a cena que mostra o senhor engomado e o playboy — com a droga sobre a barriga — , mortos no chão, imagem que não costuma acontecer na realidade, pois a guerra às drogas que assola as favelas do Brasil é uma guerra aos pobres e aos pretos. Também no chão, estava o policial, sem rosto, simbolismo esse que pode ter várias interpretações. Conversei com amigos que acompanham o trabalho de Djonga, sobre esse aspecto em específico, pois tinha dificuldade para ter uma interpretação mais sólida, e a hipótese que mais me pareceu plausível foi a de que a omissão do rosto do policial é uma tentativa de não pessoalizar o crime, culpando a própria instituição policial.

Reprodução / Hoje Não: Djonga — 2020

Hoje Não choca por apresentar um desenvolvimento e um desfecho que infelizmente ainda não é possível na vida real. Se o cara preto debater e argumentar com a polícia durante uma batida, sabemos muito bem o que acontece na ampla maioria das vezes. Sabemos, também, que o playboy que sobe no morro para consumir do tráfico não é penalizado, e que as vítimas dessa pretensa guerra ao tráfico têm outra cor. Assim como, considerando o que acontece no clipe de Alright, o preto que toma um tiro não cai sorrindo sabendo que tudo vai ficar bem.

Reprodução / Alright: Kendrick Lamar

De qualquer forma, as produções de Djonga e Kendrick Lamar apresentam uma narrativa que expressa uma realidade racista, lutando por uma nova condição em que os pretos possam contrariar essa lógica. Embora o presente seja de caos é importante ter a esperança de que no futuro nós vamos ficar bem e que vamos poder dizer: hoje não.

Querem nos botar na cruz, toda semana é santa
Abriram a porta do fundo, mas não vou pra caçamba
Entrei no carro e acelerei, isso aqui é Panamera
E eu não vou tirar o pé, pô
Nem se quiser cês me alcança


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