Alguns acreditam que o princípio de tudo vem do Verbo (palavra) e que a história dá-se inicio através da materialização das vontades por meio das sílabas. Independentemente das controvérsias a respeito disso, as letras e os fonemas possuem uma importância imensa na construção de “Meu Lugar“, álbum dos paulistas, Anderson e Rafael, aqui conhecidos como Supperbiro e DJ Comum. Membros do coletivo BeatBrasilis, a dupla trilhou um longo caminho individual, até encontrar-se para a concepção de seu trabalho em conjunto.
Exercendo seu ofício desde o início do século, DJ Comum é cria da Casa Verde (bairro da Zona Norte de SP) e cuida de seu talento como um sábio silencioso. Beatmaker e mestre de artistas como Criolo e DJ Asma (Rincon Sapiência), o DJ é quase que um artesão do hip-hop que exerce sua arte por meio dos pad’s das MPC’s.
Supperbiro também cresceu na Zona Norte de São Paulo, convivendo com as inseguranças e anseios de um jovem negro da periferia. Sua aspiração para a música vem de berço, onde cresceu com cinco irmãs que carregam consigo a aura do samba raiz e transmitiram isso de forma natural a Anderson.
Estes dois cruzaram seus destinos em 2014, nas sessões do já mencionado coletivo BeatBrasilis. A estética clássica e dançante dos beats do DJ chamaram a atenção de Supperbiro, ao remeter as coletâneas “Dinamite”, Fugges e outros sons tradicionais da época. Após conversas trocadas, decidiram juntos dar início a produção de “Meu Lugar“, lá em 2015. Com exceção das faixas “Raça” e “Paga Pra Ver“, todas as músicas que compõem o trampo foram gravadas naquele mesmo ano e performadas em apresentações ao vivo, antes mesmo de um “lançamento oficial“.
Após uma ótima recepção do público que acompanhava suas performances, a dupla decidiu finalmente expor seu projeto de maneira definitiva. Então assim nasceu “Meu Lugar“, que ainda contou com as participações dos MC’s Bonsai (Coletivo Maualoka), Phantom DK (Wu Tang Latino) e Kivitz, além de uma pós produção executada por SonoTWS, CESRV e pelos próprios DJ Comum e Supperbiro. A identidade visual do trampo ficou por conta dos artistas Tinho Sousa, Fábio Q e Ricardo Palamartchuck, que fez o som da dupla saltar os olhos de uma forma quase sinestésica.
Aconchego em meio aos seus
“Meu Lugar” é mais do que o encontro de dois artistas talentosos e que possuem uma química apurada entre si. Os 30 minutos de duração do álbum são um testemunho, um casamento e uma boa nova. Acompanhando todas vivências em comum adquiridas pela criação na ZN de São Paulo e a vontade de produzir um conteúdo relevante dentro da cultura que acolheu a dupla, o trampo valoriza a identidade de Supperbiro e DJ Comum.
“Passávamos por coisas semelhantes nesse período das nossas vidas, então os beats do DJ batiam muito certo pra mim, lembro que em todos que ele me mandava eu conseguia escrever uma letra.” (Anderson)
Por ser um diário psicológico e espontâneo, o trabalho é muito detalhista quando se trata de falar das turbulências e contradições do contexto social e político das vidas de quem teoricamente “não tem nada a perder“. Compreendendo que a dor proveniente da questão racial e de classe é inevitável, Supperbiro e DJ Comum tentam apresentar uma alternativa além do horizonte cinzento que é colocado em frente aos seus semelhantes.
Tudo isso é fruto do enaltecimento das raízes dos dois artistas, as respostas para todos os questionamentos apresentados durante as músicas são respondidos de maneira simples e encontram-se no eu e nas relações interpessoais e geográficas. Mais do que reconhecer a importância do lugar de onde vieram e dividiram suas experiências, o duo entende que todos os elementos que compõem sua realidade são essenciais para sua emancipação e a tão sonhada melhora. Sua família, sua quebrada, seus manos, sua fé, esses são os laços e pontes que fazem com que possamos chegar mais longe.
Golden Era da década
“Rap é compromisso“, já diria Sabotage e “Meu Lugar” é uma carta aberta de amor e gratidão ao hip-hop, que reforça o comprometimento da dupla com os 5 elementos desta cultura. Analisando pelo viés puramente técnico, o trabalho gabarita todos os quesitos de um bom e velho boom-bap. Os versos afiados, acompanhados de um flow e entrega dedicados (que muito lembram um Emicida mais jovem), de Supperbiro, em combinação com as batidas influenciadas pelo Rap e R&B dos anos 90 e recheadas de samples e colagens magistrais de faixas clássicas do rap nacional, feitas por DJ Comum, são uma dose de Golden Era em pleno 2020.
O álbum reverencia seus predecessores musicais e respeita seus contemporâneos, além de ser uma expressão genuína de tudo que esses dois talentosos representantes da cultura construíram até aqui. Nada mais que coerente do que o rap em seu estado mais puro e cru, mas com uma estética atual, para passar uma mensagem que casa com a natureza do hip-hop.
“Não podemos dizer que escolhemos ou abraçamos o boombap, esse é nosso estilo natural, quando nos juntamos para fazer música, é sempre isso o que naturalmente estamos fazendo.” (Supperbiro)
Esta experiência é inata, mas simultaneamente consciente, devido a uma forte postura, que vai contra as tendências mercadológicas da música, além de ser uma crítica de forma prática a alienação do trabalho causada principalmente a quem vive nas periferias. Em diversas faixas a relação homem/trabalho é questionada, levando em consideração o fato de que esse vínculo não tem suas particularidades definidas pela grande minoria representativa. Tal qual sofre todos os dias a selvageria do capitalismo que busca a desumanização da mão de obra.
Escolher ir contra a maré musical demonstra, além de coragem, uma resposta e um alento a centenas de outros músicos que produzem em seus pequenos quartos. Arte é muito mais que plays repetidos de maneira automática, é respeito, vida e acima de tudo, sentimento.
Um futuro coletivo
Ao executar todos esses fatores, “Meu Lugar” funciona como uma semente que germinará de forma silenciosa, porém muito contundente. Supperbiro e DJ Comum, seguram o tempo na palma de suas mãos, ou na ponta da caneta e no girar dos discos, e compreendem que mais do que uma música que vai tocar nos fones de hoje, o rap trata-se da construção de um legado. Todo o conhecimento adquirido por eles, nasceu de um ponto anterior às suas histórias e suas intenções são poder transmitir seus “eus” para a posteridade.
“Queremos nos conectar com as pessoas, oferecer uma nova proposta de rap, principalmente àqueles que sentem saudade do bom e velho rap, mas feito com uma roupagem bem atual, ser boa notícia e ferramenta de ânimo em todo tempo, e sinalizar a música boa de essência do hip-hop para os dias atuais.” (Supperbiro)
A dupla consegue cumprir sua missão de maneira quase evangelística, usando o rap como ferramenta de denúncia, de aprendizado e de esperança. A música de “Meu Lugar” causa um aconchego quase espiritual, influenciado pelas várias referências religiosas presentes no trabalho, mas também por respeitar a alma de seus ouvintes e produtores. O “lugar” é mais do que um espaço, mas sim um papel relevante e um momento que dura para sempre com o plantio da possibilidade.
O álbum é uma chance de se reconectar consigo mesmo ou com a realidade que encontra-se posta ao seu redor. Porém, além de música boa, é feito de bons sentimentos e intenções que dão direção e testificam a certeza de Anderson e Rafael em suas missões.
“Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para meu caminho” (Salmos 119:105)
Essa bonita experiência só nasce através de uma essência, a palavra (Verbo), que grita nas rimas e nas batidas e que é traduzida através da música, feita por quem a ama e conhece.