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Memórias do Subsolo, uma reflexão sobre Ordem de Despejo

É dentro de nós mesmos que acabamos encontrando o outro. A individualidade dita as relações, por criar nossos conflitos interpessoais e as diferenças, e a partir do momento que existe o próximo, somos obrigados a lidar com quem divide o espaço e tempo conosco.
Consequentemente, a relação eu/outro é uma via de mão dupla, onde tudo é construído pelo que é feito e visto. Existe quem você é e quem é observado pelas pessoas, quase que criando uma personalidade multiforme de cada um. Porém, em meio a essas diferenças e contradições que conseguimos nos indentificar e construir empatia, percebendo que o outro tem um pouco de ti.

Em época de isolamento social é possível perceber, de maneira quase involuntária, o peso de cada construção social criada pelos nossos relacionamentos. Cada elemento de vida se torna mais vívido quando é quase obrigatório contemplar a existência e a influência que cada tem na rotina de cada um.
E sobre essas desventuras de estar presente no caminho de alguém e de ter suas particularidades para cuidar, que o álbum “Ordem de Despejo” do lendário grupo Subsolo é construído.

Nascido de eventos únicos dentro do rap nacional, Subsolo é um dos presentes que a música brasileira pôde nos dar e o contexto da criação de seu clássico álbum é algo que talvez nunca mais se repita na cena. Formado pelos remanescentes de outra conceituada formação de MC’s, o saudoso Quinto Andar, o grupo era composto por Gato Congelado, Kamau, Lumbriga, DJ Mako, Matéria Prima, Pai Lua, Shawlin e Xará. Talvez o melhor time já composto dentro do rap e que produziu um dos trabalhos mais memoráveis da cultura hip-hop.

Enquanto no fim da década passada o cenário estava prestes a ver um revolução fonográfica e mercadológica por meio de nomes como Emicida, Rashid e Projota, os caras do Subsolo estavam produzindo um outro tipo de material, infelizmente bem menos visado que o dos Três Temores, mas de uma relevância de igual tamanho. Não era um período de transição apenas na música, mas também na vida dos integrantes do grupo. Após a desintegração do Quinto Andar, restou aos 8 artistas descerem até o Subsolo para continuar a fazer sua arte, num misto de celebração e sobriedade pelo seus lendários históricos como rappers, mas também por reconhecer a nova fase de vida de cada um.

“Abaixo do solo
Além do que vejo, desocupamos o prédio
Ordem de despejo
Mudança que almejo, desejo que me carrega a outro polo”
(Ordem de Despejo)

Mais do que um clássico, Ordem de Despejo é o exemplo perfeito de quem sabe que tá a frente do tempo. Com músicas que falam desde a relação do homem com o trabalho até a destruição ambiental promovida pelo capitalismo, o álbum soube muito bem respeitar a caminha de cada MC por não apenas seguir toda a estética underground do Quinto Andar, mas por permitir que cada um evoluísse como artista e pessoa. Além é claro, por saber tratar de assuntos que nem eram sequer mencionados pela maioria dos rappers de destaque da época.

Porém, além de toda qualidade técnica indiscutível que está presente neste trabalho, não é apenas nisso que se encontra esse diferencial. A caneta afiada, os samples bem escolhidos e os beats bem ambientados são apenas ferramentas dos artistas para poderem transmitir com serenidade e força todas suas sensações naquele momento. Ordem de Despejo ganha por abrir um leque de possibilidades quando pensamos no que o rap poderia transmitir e representar. Mesmo que de maneira quase inconsciente, o grupo reconhece suas contradições, dificuldades e conseguem fazer um retrato amplo de sua realidade.
O álbum valoriza as diferenças entre cada artista que o compõe, onde cada individualidade é essencial para a construção de sua estética. A percepção que fica para nós é que os diferentes questionamentos como os de Xará, Gato Congelado e Matéria Prima na faixa “Ensaio Sobre A Cegueira“, por exemplo, são pontos de vistas sobre problemáticas parecidas, mas que são absorvidas de diversas maneiras por quem está se expressando e quem os ouve.
Ordem de Despejo é multiforme por entender que a individualidade consegue construir um laço de compreensão e identificação.

Existem diversos caminhos para que este processo seja feito e o grupo escolhe seguir um bastante sensível ao ambientar todos as músicas em uma atmosfera serena. Em nenhum momento os músicos deixam de ser contundentes, entretanto ouvir o álbum é uma experiência apaziguadora, mesmo que em nenhum momento ela tente soar desconectada da realidade. É a perfeita manipulação da forma, que entrega um conteúdo certeiro, mas que possui uma estética bem trabalhada e que só quem sabe fazer consegue. Talento utilizado como ferramenta para transmitir uma mensagem relevante, arte em seu estado mais puro.

O Subsolo foi extremamente importante na construção do underground como a gente conhece, mas além disso, ele foi um dos primeiros passos para muita gente entender a expressão artística como deve ser. Ordem de Despejo é essencial pelo que fez, representante e mesmo vindo do “subsolo“, reverbera até hoje.