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‘Como fabricar um gangsta’, livro de Daniel dos Santos aborda a masculinidade negra no Hip Hop

Por: Henrique Oliveira

Jay Z e 50 Cent, o que esses dois rappers norte americanos podem dizer em suas letras e clipes acerca da masculinidade negra no Hip Hop? Foi a partir dessa pergunta, que Daniel dos Santos, iniciou o #Thegangastaproject, resultando na dissertação de mestrado defendida em 2017, intitulada “Como fabricar um gangsta: Masculinidade negras nos vídeos clipes dos rappers Jay Z e 50 Cent”, pelo Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e Sociedade, na Universidade Federal da Bahia. E que se transformou no livro “Como fabricar um gangsta”, que será publicado pela editora Devires. O lançamento será no dia 17 (domingo), no teatro Gregório de Mattos as 16h.

Daniel dos Santos, 28 anos, é mestre em Cultura e Sociedade, faz parte do crescente número de pessoas negras com pós graduação no Brasil, mas que ainda assim é uma minoria no universo da produção acadêmica, apenas 30% das pessoas que cursam pós graduação são negras. Uma desigualdade que se reflete na ínfima quantidade de professores universitário negros tanto na rede pública como na rede particular, são 16% ao todo, na própria UFBA os professores negros são 2% do seu corpo docente. Um dos principais efeitos do racismo estrutural que garante para os brancos acesso aos melhores empregos e salários na sociedade.

Natural de Santo Antônio de Jesus, cidade localizada a 200 km de Salvador, Daniel dos Santos é um pesquisador interessado na constituição dos sujeitos, formado em História pela UNEB (Universidade Estadual da Bahia), Daniel também é membro fundador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro brasileiros (Afrouneb) e atualmente é doutorando pelo Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM/UFBA).

1º Qual foi o seu primeiro contato com o Rap e a cultura Hip Hop?

Meu primeiro contato com o Rap foi com um colega da época da escola, no Ensino Médio. Infelizmente eu não lembro o nome dele e nunca mais eu o encontrei aqui em Santo Antônio de Jesus. Ele fazia freestyle nos corredores, tinha uma calça larga que deixava a cueca à mostra, um sorriso bonito e doce. Achava ele incrível. Ele foi a minha primeira referência em um tempo que o Rap não era tão hypado como é hoje. Eu curtia muito Rock e a gente trocava várias ideias sobre música. O Rock 90/00 era muito influenciado pelo Rap, como Raimundos, Charlie Brown Jr., Linkin Park, bandas que ouvia na minha adolescência. Outra grande referência foi o álbum acústico da Cássia Eller, que tem aquele feat. que o rapper Xis fez com ela na faixa “De Esquina”. Acredito que foi o primeiro Rap que curti. Porém, o impacto de verdade foi com o videoclipe de “Triunfo” do Emicida passando na antiga MTV. Tinha acabado de entrar na universidade para cursar História e estava redimensionando e amadurecendo a minha consciência racial. A geração 2000 do Rap Nacional (em especial Emicida, Criolo, Rashid, Projota, Kamau) me apresentou de fato o Hip Hop, e minha iniciação na cultura remete desde o início da carreira deles que acompanho até hoje. Além disso, sempre fui obcecado por audiovisual em geral e passava o dia todo assistindo a MTV, uma época que eu ainda não tinha acesso pleno à Internet.

2ª Você diz que o seu livro é resultado do #Thegangstaproject, O que é esse projeto?

O #TheGangstaProject é um projeto que eu criei depois que eu concluí o curso de História na universidade. Depois que o curso acaba, todo mundo vai seguir seu próprio baile e o contexto muda completamente, foi muito difícil pra mim. Estava desempregado e sem perspectivas, aí decidi parar um ano pra pensar o que faria com minha carreira profissional e definir um projeto de vida, que na verdade acabou sendo um projeto de sobrevivência. Tinha sido aprovado com nota máxima no trabalho de conclusão de curso e tinha plena certeza do meu talento para a pesquisa científica. Decidi então tentar as seleções de Mestrado e a ideia de estudar e pesquisar masculinidades negras na cultura Hip Hop nos Estados Unidos foi de um amigo irmão meu, o Carlos Copioba. Um dia a gente estava almoçando e ele me fez algumas provocações sobre as representações de masculinidades negras nos videoclipes de Rap, que eu anotei e guardei, e bem depois na busca de uma ideia original para o projeto de Mestrado eu acabei reencontrando.

O #TheGangstaProject é um projeto de pesquisa que contou e conta com o apoio de inúmerxs colegas, amigxs, apoiadorxs e colaboradorxs desde a sua ideia original até hoje com o processo de construção da minha tese de Doutorado. Recebi muito apoio afetivo e financeiro até de pessoas desconhecidxs, por isso Como Fabricar um Gangsta é um sonho coletivo. Atualmente o #TheGangstaProject está em sua segunda fase e estou iniciando uma investigação sobre a obra audiovisual do rapper Kendrick Lamar. 

3ª A sua fonte de trabalho é o “Cinema Hip Hop”, a qual você diz ser mais um elemento da cultura Hip Hop. Como o cinema contribui para a cultura Hip Hop?

A cultura Hip Hop é bem mais complexa e profunda em sua estrutura como comumente é discutida. É uma cultura relativamente nova, ainda em processo de expansão e difusão pelo mundo, sempre em contato com outras culturas, pois nenhuma cultura é isolada. Pensar em somente quatro, cinco elementos fundamentais é simplificar e reduzir a cultura Hip Hop em um padrão comum e fácil de ser compreendido. O teórico e MC KRS-One levanta a necessidade de nós que integramos a cultura redefinirmos esse padrão, pois suas estruturas se modificam a todo momento e novas configurações surgem no decorrer da história. O cinema também é um dos fundamentos do Hip Hop e sua importância se deve principalmente à sua função social de construção do imaginário coletivo e da memória dessa cultura. Os videoclipes, juntamente com os filmes, fotografias e outras expressões imagéticas, compõem um sistema iconográfico autêntico e singular que deve ser preservado como patrimônio da Diáspora Negra. São documentos históricos preciosos que registram as experiências negras na contemporaneidade. O mundo do século XXI é extremamente imagético, e a produção iconográfica cresce vertiginosamente na cultura Hip Hop, pois essa é uma das formas de nós negrxs do presente nos inscrevermos no mundo.

4ª A sua análise é sobre os vídeos clipes dos rappers norte americanos, Jay Z e 50 Cent, na sua visão esses clipes extrapolam o seu papel mercadológico, de vender o produto musical, eles difundem uma masculinidade negra. Qual tipo de masculinidade negra é reproduzida por esses dois artistas?

Os videoclipes são uma das principais plataformas de produção e difusão de representações de masculinidades negras agenciadas pelos próprios homens negros. Durante grande parte da história da população negra estadunidense, o sistema iconográfico de representação racial foi utilizado como um dispositivo de dominação e controle. Houve uma espécie de contaminação do imaginário coletivo com os mitos e estereótipos raciais, desde o passado colonial escravocrata. A produção autônoma de imagens de si pelos rappers é uma estratégia política de subversão desse sistema imagético que sempre corroborou para a abjeção, exclusão, opressão e extermínio dos homens negros.

O que chamo de masculinidades rappers são os constructos específicos de masculinidade negra que são  influenciados por vários outros tipos de masculinidades internas e externas à cultura afro-americana, e que estabelecem permanentes contatos e diálogos entre os homens. Os videoclipes materializam os tipos de masculinidades rappers através dos discursos iconográficos e determinam qual é a imagem do homem negro que nós da cultura Hip Hop mimetizamos e corporificamos. Em “Como Fabricar um Gangsta” eu investiguei as videografias dos rappers Jay-Z e 50 Cent, dois ícones do Gangsta Rap que contribuíram muito para esse projeto transgressor de práticas de representação e poder. Pude perceber que existem sim tipos de masculinidades negras que estão presentes nas narrativas audiovisuais e compõem uma atmosfera singular na qual os homens negros estão inseridos. Conhecer esses tipos específicos é só um contato de primeiro grau com essa atmosfera, que é bem mais densa que possamos imaginar.

5ª Você diz que o gangstabox, representa um tipo de masculinidade negra positiva, pois faz circular uma simbologia ligada ao dinheiro, a posse, aos bens materiais, elementos que são negados aos homens negros pelo capitalismo. No entanto, aqui no Brasil esse tipo de representação é muito criticada no Rap, por está vinculada a ostentação, alienação, futilidade, que desvia o Rap do seu papel social e político de protesto. Como você enxerga isso?

O Gangsta Box na verdade é um conceito que eu criei para explicar como o sistema iconográfico de representação racial desenvolvido pelo Gangsta Rap se configura e quais são suas propriedades e funcionalidades. O cineasta Spike Lee que me inspirou com o filme “A Hora do Show”, no qual ele critica os mitos e estereótipos raciais com a “Idiot Box”, uma afronta à televisão, símbolo da indústria cultural de massa racista. O Gangsta Box é uma caixa metafórica de códigos e símbolos imagéticos que se repetem exaustivamente nos videoclipes de Rap para causar efeitos e fascínios de poder masculino para os homens negros. O legado sórdido do colonialismo e da escravidão bloqueou o acesso ao poder aos homens negros, plenamente despossuídos de sua humanidade. Falar de masculinidades negras é falar do anseio perturbador dos homens negros de experimentarem e usufruírem o poder, que sempre foi monopolizado pela hegemonia do homem branco eurodescendente. Como diz o rapper Mobbiu, os rappers habitam uma atmosfera onírica de poder quase que ilimitado, uma fantasia tão fantástica e impossível que provoca nos homens negros o desejo de materializar isso em suas vidas, pois o poder não faz parte de sua herança cultural e histórica. O poder é construído e performatizado principalmente a partir do discurso imagético.

Você reconhece um rei, por exemplo, principalmente através de sua imagem pública, de sua aparência visual. Os rappers utilizam os códigos e símbolos do Gangsta Box para fazer o poder habitar seus corpos. Nessa prática política de empoderamento simbólico nem tudo é positivo, pois os homens negros ainda mimetizam muito as formas de poder do patriarcado de supremacia branca, extremamente racistas, machistas, sexistas, classistas, LGBTQIfóbicas, fundamentadas em uma cultura de violência. A necessidade de reconhecimento de sua humanidade induz os homens negros a caírem nessa armadilha. São outros aspectos que compõem a atmosfera que eu falei anteriormente, que entorpece nossos subjetivos negros masculinos como uma droga: nos causa prazer, mas também nos entoxica e pode nos matar.

6º Em suas colunas que eram escritas para o site Rapologia, os textos faziam um diálogo entre as questões LGBT e o Hip Hop, inclusive uma crítica ao MC Baco Exu do Blues, por causa de trechos transfóbicos da música ‘Sulicídio’. Qual o impacto que a masculinidade negra gangsta tem sobre LGBT’s e mulheres?

Como falei anteriormente, os homens negros de maneira geral, não somente os detentores de masculinidades rappers, reproduzem muito as formas nocivas e tóxicas de empoderamento que o patriarcado de supremacia branca impõe. Vivemos em uma sociedade que tem como mito fundador o genocídio em massa, que possui a vida social mediada pelo terror e pela violência desde os tempos dos engenhos. Uma sociedade erguida por hierarquias complexas que posicionam os homens negros de maneira bastante ambígua no campo de forças. O modelo de masculinidade hegemônica imposto historicamente pelos homens brancos eurodescendentes instituiu a subordinação sistemática dos outros sujeitos que estão abaixo de sua supremacia, além de oferecer falsas formas de empoderamento para os homens negros.

O machismo, o sexismo, a misoginia e a LGBTQIfobia são manifestações de tais formas, que provocam consequentemente nosso extermínio endógeno enquanto povo negro. A cultura Hip Hop está imersa nesse contexto e acredito que principalmente nós homens negros devemos ter a responsabilidade política de, no mínimo, problematizar e desconstruir tudo isso. Baco Exu do Blues foi sim transfóbico em “Sulicídio”, mas aparentemente mudou seu posicionamento político em relação às questões LGBTQI’s como na letra de “Capitães de Areia”. Porém, não temos amplo acesso à subjetividade e ao desejo de ninguém e só podemos criticar as pessoas por seus discursos e ações. Rappers que considero grandes ícones atuais do Gangsta Rap Brasileiro, como Diomedes Chinaski e Djonga, também já manifestam sinais de mudança em suas obras artísticas.

Acredito que temos que parar de praticar o jogo da imitação das masculinidades da branquitude e encontrarmos formas não tóxicas e nocivas de sermos e existirmos enquanto homens negros. Entretanto, somos uma geração de homens negros que temos o privilégio de estarmos refletindo e discutindo isso juntos, oportunidade que nossos Ancestrais não tiveram no inferno a céu aberto da escravidão colonial. Isso significa que os devires dos homens negros no mundo estão tomando novos caminhos, para longe dos precipícios.