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Conheça ‘Estamos Aqui’, de Cijay

O rap baiano vem apresentando produções que trazem críticas políticas pesadas e colocam o dedo na ferida do racismo. Na Bahia, apesar de 76,3% da população se autodeclarar preta ou parda – o que confere ao estado um falso status de democracia racial -, ainda são mantidas práticas coloniais que colocam o corpo negro como um alvo das políticas institucionais de extermínio.

Nesse contexto, o Rap BA tem se mostrado como um forte instrumento de denúncia e expressão de resistência frente ao racismo que é praticado, sobretudo, pela ação direta da Polícia Militar, fazendo tombar corpos negros todos os dias.

Us Pior da Turma, 16 Beats, Átila Collin, Dark e muitos outros, trouxeram em seus últimos trabalhos, narrativas contundentes acerca da realidade de terror racial sob a qual a população negra baiana está mantida.

Direto da 073 (região sul da Bahia), em dezembro do ano passado, o ilheense Cijay lançou o álbum “Estamos Aqui” que merece destaque por sua lírica agressiva, sem meias palavras, mas também por seu discurso afirmativo, buscando a valorização da identidade e do território negro.

Muitas das 10 faixas são inspiradas em experiências vivenciadas pelo próprio rapper e narram o cotidiano do negro na periferia. O álbum também faz uma crítica à invisibilização do rap baiano em função das produções de fora.

Em entrevista, Cijay fala sobre suas referências, processo de produção do álbum, cena 073 e o papel social do rap. Confira:

Por que “Cijay”?

É por causa das iniciais dos meus dois primeiros nomes de batismo, Christian Jesus. Então quando eu comecei a fazer Rap havia um movimento de MCs em Ilhéus chamado “Sagacidade Urbana”, quando nos reuníamos uma  ou duas vezes por mês num estabelecimento comercial no centro do centro da cidade, daí os caras me batizaram com esse codinome, e eu abracei como nome artístico.

Quais são as suas principais referências musicais?

Quando eu era criança minha mãe era dona de bar e eu ouvia praticamente de tudo. Nosso vizinho tinha um som potente, e quando o grave batia com força ao som de Racionais, Facção Central, MV Bill, Expressão Ativa, os copos da estante do nosso barraco vibravam tanto que caiam. Quando eu ia pra casa da minha vó, meus tios faziam sempre uma roda de violão e só tocavam Legião Urbana, Raul Seixas e Edson Gomes. Depois meus pais se converteram na Assembléia de Deus quando eu tinha uns 7 anos e então comecei a cantar na igreja lá da rua e a ser convidado por outras igrejas. As vezes eu não ia pro culto com meus pais e ficava em casa com meu irmão mais velho, e ele colocava as fitas do Racionais escondido da minha mãe.

Como você se envolveu com o rap?

Eu comecei a fazer Rap em 2012 através do movimento “Sagacidade Urbana”. Eu tava no ensino médio s já tocava violão, já escrevia e até já tinha participado de alguns festivais estudantis. Tinha uma lanchonete ao lado do colégio onde eu estudava e o Elton, que era o proprietário, gostava muito de música e também tocava violão. Nós começamos a fazer um som lá todas as sextas, na saída da aula, no final da tarde. Um dia ele me disse que viriam uns MCs pra fazerem um improviso. Eram Shiva, Rangel e Lipin, aquela foi a primeira vez que vi pessoalmente alguém rimando de improviso, e foi tudo na base o meu violão. Aí os caras se reuniram com e deram um formato ao evento, que virou o maior movimento de Hip Hop da história da cidade, o que provocou uma erupção na cena, que dura até hoje.

A faixa “Aquele Salve” ganhou o II Festival Universitário de Música da Rádio UESC, em 2017. O que te inspirou a escrever esse som?

“Aquele Salve” é uma música de preto para os pretos. A fonte de inspiração veio dos meus roles pela quebrada no São Domingos, das reuniões de MCs e as rodas de free style na Pista de Skate. Nesse rolê a gente sempre trombava com a viatura, daí “passou a 68, acende mais uma bomba”. Eu quis recontar a nossa história do nosso ponto de vista pra dizer que o povo de periferia é o legado da África no Brasil e que a gente tem que bater no peito e se orgulhar da nossa cor, da nossa essência e dos nossos ancestrais e acredito que por esse motivo as pessoas se identificam tanto com esse som, o que fez ela vencer o festival e por causa disso eu apareci até na TV.

Fale um pouco sobre o processo de produção do álbum.

Quando eu comecei a gravar, não tinha tanta oferta de beats como hoje, os poucos produtores ainda estavam começando e tinham dificuldade de assimilar o que a gente queria, então fiz uma seleção de bases da internet pra cantar meus sons na rua. Esses sons começaram a cair na boca da galera e então eu tive que começar a gravar a partir dessas bases que encontrava no YouTube para não destoar do que eu já estava cantando. A gravação, mixagem e masterização foi com Mano Nery Produções, de Itabuna. “Estamos Aqui” tem uma introdução e 9 faixas de músicas, colaboram comigo Reinaldo RTS, do Morro da Jamaica em Ilhéus, em “Histórias Cruzadas”, Negro Dune, que é rapper de Ilhéus residente em São Paulo, participa em “A Guerra Que Virá”, que ainda tem a colaboração do rapper paulista Maradona Bala, e a última faixa do álbum “Som de Revolução”, tem a participação do Ntrees, rapper paulistano que mora em Sydney, na Austrália. O trabalho ficou entre os 30 melhores álbuns lançados na Bahia em 2017 segundo votação do site “ElCabong”.

Fale um pouco sobre a cena 073.

Hoje temos uma cena forte, com grupos ou MCs em quase todas as cidades do Sul e Extremo sul da Bahia. Claro que em Ilhéus e Itabuna acontecem mais eventos, porém vejo um movimento que se fortalece também em Itacaré, Eunápolis, Canavieiras. Hoje também temos mais produtores na região, o que facilitou o acesso a um estúdio, principalmente por que a maioria da cena grava em estúdios caseiros. O grande desafio ainda é a falta de apoio do poder público, que precisa reconhecer a cultura Hip Hop como um patrimônio imaterial e dar o devido valor e respeito que a cena merece.

Seu álbum traz uma crítica pesada e necessária à brutalidade que marca a ação da polícia na periferia. Pra você, qual é o papel do rap nesse contexto?

Eu aprendi que o Rap é sobretudo escrita, por que rapper é sobretudo quem escreve e canta o que escreve. Além disso o rap nacional surgiu das entranhas das periferias e a periferia acreditou no Rap quando todo mundo dizia que era coisa de vagabundo, isso por que as letras carregam os elemento do cotidiano da periferia, enaltecem nosso jeito de falar e de se vestir e denunciam as ações arbitrárias do Estado através da Polícia Militar e a guerra as drogas, que provoca encarceramento em massa do povo preto e mortes, como nenhum outro estilo musical. Hoje já existem estudos acadêmicos sobre como o rap ajudou a produzir narrativas que permitem o acesso ao universo dos excluídos, principalmente em São Paulo nos últimos 20 anos. Agora o rap está em forte ascensão no Nordeste e nós temos a oportunidade de colocarmos temas importantes em evidência através de nossas letras, o que nos dá o status de formadores de opinião.