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Exclusivo: Criolo fala sobre rap, política e fé. Ainda Há Tempo?

Criolo se mostra maduro e consciênte, com um olhar politizado e de amor para o próximo. Na nossa conversa, falamos bastante sobre o “Ainda Há Tempo”, sobre rap, sobre o ódio e o amor, sobre a evolução.

Entrevistei Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, que tem uma caminhada longínqua e de respeito no rap nacional. O rapper está na ativa desde 1989, já apresentou a Rinha de Mc’s, fez filme, gravou CD com Ivete Sangalo, foi ovacionado na Europa e, agora, aos 40 anos, revisita seu primeiro álbum, “Ainda Há Tempo“, lançado inicialmente em 2006 com uma tiragem de apenas 500 cópias.

Não teria um “melhor” momento para Criolo revisitar seu disco debut. Vivemos tempos difíceis como Edi Rock já cantou, assim como 2006, lembra dos ataques de maio? Passaram-se 10 anos do lançamento e as letras ainda continuam atuais e as mensagens urgentes pra uma nação que precisa mais do que nunca acreditar nela mesma.

Criolo se mostra maduro e consciênte, com um olhar politizado e de amor para o próximo. Sobretudo passa uma mensagem ampla de esperança, e reafirma que sim, ainda há tempo. Na nossa conversa, o rapper falou bastante sobre o relançamento do seu disco, sobre rap, sobre o ódio, amor, evolução e mais. Siga:

Rap, que energia é essa?
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Se áreas de formação acadêmica como a Medicina, o Direito, a Programação e tantas outras tem um papel fundamental no desenvolvimento da sociedade moderna, a musica também teria? Qual a função do rap no nosso mundo?

Criolo responde: — O rap é uma expressão de arte. E toda expressão de arte é algo sublime, no sentido de lembrar que você ainda é um ser humano, que você tem sentimentos, que você divide suas emoções com o mundo, que você recebe informações do mundo que ainda te emocionam. Então com o rap não seria diferente, é uma arte que nos ajuda num processo de comunicação de expressão, de divulgação daquilo que está em nossos corações. Por isso que o rap é tão diferente em temas em vários lugares do mundo. Porque em vários lugares do mundo existem formas diferentes de enxergar o mundo e si enxergar no mundo.

[Veja também: O dia que Chico Buarque fez um rap para Criolo]

— Então o rap é, pra mim cara, o rap é uma parada que mudou minha vida né, mudou minha vida. Me trouxe autoestima, me trouxe a possibilidade de eu me enxergar, eu enxergar que eu sou alguém no mundo a partir do momento que eu via que eu era capaz de escrever um texto o mais simples que ele fosse, de fazer uma rima, por mais simples que ela fosse. Eu era capaz de fazer algo, e mais, dividir isso com as pessoas. Isso ai é maravilhoso, dá uma sensação de que você realmente existe.”

O costume de quebrada que virou identidade

Em tempos de redes de streaming crescendo a todo vapor, divulgar download gratuito não tem sido a escolha de rappers mais populares. No entanto, Criolo é exceção, todos seus trabalhos estão disponíveis gratuitamente na internet, inclusive o novo “Ainda Há Tempo“.

Quando perguntei sobre o cuidado em sempre liberar os trampos gratuitamente, o rapper logo disse: — Eu nem sei se é um cuidado, é uma coisa tão natural nossa né. A gente já vem dessa ideia. Miliano atrás né, quando fazia um som, mandava em fita K7 pra um amigo do outro bairro. E quando veio o CD, todo mundo ia escutar aquele CDR lá, gravava um som pra dividir com as pessoas. Então, foi assim pra nós — completou, mostrando o quão natural é para ele distribuir sua arte gratuitamente.

A fé adquirida através da fonte mais valiosa

Criolo e sua mãe, Dona Vilani

Criolo e sua mãe, a professora Dona Vilani

Os trabalhos musicais do Criolo são munidos de uma espiritualidade que transcende religiões — talvez, seja um dos motivos da sua grande aceitação, não apenas no hip hop, mas em todas as tribos. O “Ainda Há Tempo” traz isso de forma bastante pura e sincera com músicas de esperança, resgate e fé na humanidade. Da onde vem essa plenitude espiritual do Criolo?

— Eu procuro ouvir minha mãe. Uma mulher muito espiritualizada, uma mulher de muita fé, uma mulher que me explicou um pouquinho de cada uma das coisas que fazem o crescimento espiritual pra gente, entendeu? Uma mulher sem preconceitos religiosos que passou vários ensinamentos pra gente. Então nessa parte assim eu tenho muito a minha mãe perto de mim.

— Não temos preconceito com… (pausa) A gente se liga na fé. E a energia que essa fé pode causar, que essa fé pode criar pra você. Se você é evangélico, se você é católico, se você umbandista, se você é budista, a fé que toca no coração dessas pessoas e toda energia que essas pessoas criam e mandam pro mundo, é uma coisa maravilhosa.

Na sequência completa com um alerta para a intolerância religiosa: — É muito louco isso, porque isso ai não tem nada haver com uma outra parte de preconceito religioso que existe em nosso país, que é brutal, sobretudo o preconceito com religiões de matriz africana. Mas isso aí também já vem de uma outra história né.

Conheça um pouco da história de Dona Vilani (por ela mesma), mãe e uma das maiores inspirações do Criolo, nesta reportagem feita pela revista TRIP:

A humildade em aprender, se transformar e assim, evoluircrioloFotoLuizMaximiano

Criolo fez algumas leves mudanças em letras do novo “Ainda Há Tempo”. A mais notável é na faixa “Vasilhame“, onde o rapper deixou de cantar: “Os traveco tão ali, aah! Alguém vai se iludir“. Mudando para “O universo tá aí, ah! Alguém vai se iludir“, ao perceber que o termo utilizado era pejorativo e chateava algumas pessoas. O que mudou no Criolo de 2006 para o de 2016?

— Hoje eu tenho 40 anos de idade e não tenho mais a mesma força nas pernas. Mas a gente vai aprendendo com todas as pessoas que tão ao nosso redor né. Tem uns 3, 4 anos que eu me toquei dessa palavra e já não canto mais no show e isso só se refletiu no disco entendeu? Não é que eu mudei agora. Esse registro, esse momento, essa nova versão da música no mundo, com tudo isso que aconteceu, talvez dê a entender que eu mudei agora a palavra, mas já vem de um tempão atrás. Eu senti que era uma parada que não tava somando.

— E não foi só essa mudança não, teve várias viu man, teve várias letras. Acho que, mano… isso é humildade de aprender, a humildade de ver o mundo ao seu redor, a humildade de, sei la, procurar somar da melhor forma, sem criar alarde, sem criar um caso disso. Eu não fiz nada de da hora, eu só segui o fluxo dos ensinamentos que as pessoas me passam, entendeu?

— Isso não faz de mim uma pessoa melhor, pelo contrário, uma pessoa que tá aprendendo com todo mundo e não custa nada, não custa nada. Quantas pessoas se sentiram magoadas com isso e você nem sabe? E quantas outras coisas que nós fazemos no nosso cotidiano que nem é por mal? Nós somos aglutinados por uma construção cultural cotidiana muito rica, mas muitas coisas vem ainda de reflexos de coisas não tão positivas, que são absorvidas por nós. E as vezes a gente não sabe que tá perpetuando algo que não é positivo.

Do acaso, saiu o renovado

Criolo, DJ Marco, DJ Dan Dan e Daniel Ganjaman em estúdio durante a regravação do "Ainda Há Tempo"

Criolo, DJ Marco, DJ Dan Dan e Daniel Ganjaman em estúdio durante a gravação do novo “Ainda Há Tempo”

Após os trabalhos “Nó Na Orelha” e “Convoque Seu Buda” terem produção musical montada pelos talentosos Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, a nova versão do “Ainda Há Tempo” contou com um enxame de beatmakers, no total 10 produtores distintos estão envolvidos nas instrumentais. Nave, Tropkillaz, Papatinho, Sala 70, Grou, Sem Grana, são parte do time que fortaleceu Criolo a revisitar o disco de 2006. Abaixo, Criolo fala como foi essa reunião e explica o processo até chegar num disco com 8 faixas, que não estava nos planos inicias:

— Isso ai foi uma ideia do Daniel né, do Ganja, de chamar algumas pessoas (beatmakers), algumas pessoas que a gente já conhecia e já conhecia o som. Outras pessoas que esses amigos nossos falaram pra gente. Olha, muita gente que tivemos o prazer de conhecer.

— Foi um processo bem natural viu cara. Porque na real não era um projeto de um disco isso aí. O que gente queria fazer era pelo menos um show de celebração de 10 anos do Ainda Há Tempo. E a partir disso fomos fazer esse show. E a master se perdeu, a master do Ainda Há Tempo se perdeu, o de 2006, ela se perdeu. A gente não tem 70/80 por cento das instrumentais daquele disco. Nunca teve um show do Ainda Há Tempo.

— Então, daí, a partir disso ele (Ganjaman) falou “pô, vamos chamar (os produtores)”. O Ganja teve essa ideia aí que foi muito bem vinda, porque trouxe esse ambiente hip hop da parada né, muita gente reunida, entendeu?

— Então ai depois chamou o Pedro Inoue pra fazer a direção de arte aí ele falou “caramba, com essa monte de coisa acontecendo aqui, acho que vale o registro da parada (gravação em estúdio)”. Então foi esse o caminho, não foi “vamos fazer um CD comemorativo e sair numa pequena tour”. Foi ao contrário, o disco é fruto de um monte de corre que rolou pra celebrar essa história.

Na sequência, perguntei se tinha algum motivo do novo disco ter apenas 8 faixas, ao invés das 22 da primeira versão. Criolo então respondeu:

— Vamos fazer dessas aqui, daqui a pouco alguma coisa acontece com os outros sons ali. É uma celebração man, as coisas vem numa tranquilidade desse intuito de fazer algo, por mais singelo que seja, fazer algo e não deixar passar batido esses 10 anos.

A arte gráfica de Ainda Há Tempo

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Da esquerda pra direita: capa da primeira versão do “Ainda Há Tempo”, do lado a versão 2016

Como você leu acima, o novo registro “Ainda Há Tempo” veio de uma ocasionalidade de acontecimentos, todos executados com muito carinho. A reconstrução da capa do trampo também foi um fator marcante no processo, no qual os artistas Pedro Inoue e Gil Inoue, de certa forma, revisitaram o clássico semáforo amarelo do primeiro disco. Criolo falou sobre o processo de feitura das duas artes.

— Essa capa, o Pedro e o Gil (Inoue) tiveram uma sensibilidade de visitar a arte do primeiro disco. A arte do primeiro disco é um semáforo com a luz em amarelo. E essa arte foi feita pelo Família Tese. Foi uma crew de amigos, o Danel, que é um tatuador, acho que hoje ele tá morando na Austrália; o Umbigo, que é um artista gráfico também lá do Grajaú, e o Henrique — que é uma pessoa que a gente amava muito e hoje não está aqui entre nós em físico, mas está entre nós com sua memória, com sua energia, com seu bom coração. Um fotógrafo maravilhoso, um fotógrafo muito especial. Então esse grupo de pessoas fez esse trampo né, o Danel fez as letras, o Henrique chegou com a fotografia e o Rodrigo chegou com a arte gráfica e foi uma coisa muito especial que eles fizeram ali.

— Então o Pedro e o Gil Inoue, eles se inspiraram naquela arte, é como se tivesse sampleado, continuando ali também. Uma arte dessa inspiração, entendeu? Eles se inspiraram naquilo alí, naquele céu, naquelas nuvens, e no olhar que de repente a gente tá pesando né. Tá vibrando, vibrando positivo, vibrando né. Esse Ainda Há Tempo se alimentar dessa esperança, entendeu? Eles tiveram a humildade de visitar o trampo antigo e respeitar uma história.

A humanidade e o rap
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Fugindo um pouco do Rap, na sua opinião qual o rumo que a humanidade esta trilhando?

— Isso não foge nada do Rap né, porque o rap, ele, ao mesmo tempo, aqui em nosso país, o que tantas pessoas que a gente conhece de agora e das antigas. Desde o início de tudo né, que ainda era muito ligado a dança, ao grafite né. Vem com a ideia de positividade né. O rap sempre vai ter um texto forte, contundente, ligado a muita emoção e jogar essa energia pro mundo. Mas não só isso, junto a isso, vem uma positividade. A gente pode, temos força pra mudar, nos temos força pra construir algo melhor, então. Tá totalmente ligado a isso entendeu? A gente não pode perder a esperança no ser humano nem por um segundo mano.

O primeiro retrocesso de um governo ilegítimo

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Criolo na Virada Cultural 2016 (foto: Metro)

Criolo já falou publicamente que não concorda com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Não concordo. Se fosse pelos motivos certos, sim. A questão não é limpar o país da corrupção. Parece que descobriram que só há corrupção agora. Mas o presidente da Câmara é o primeiro parlamentar citado na Lava Jato“, disse à BBC.

Conversei com Criolo justamente no dia em que Michel Temer fez seu primeiro ato como presidente interino, que foi a extinção dos ministérios da Cultura (retomado alguns dias depois); das Comunicações; do Desenvolvimento Agrário; das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos; e outras diversas secretarias. Era uma sexta-feira 13:

— E hoje é um dia muito triste né, você vê o decreto né, vê o decreto do primeiro pedido do rapaz (Temer) é deixar algumas coisas que a gente lutou a vida inteira. A gente fala ‘a gente’ é nosso povo né, nossos pais, nosso avós. É… é bem difícil viu cara. Como que é isso né, como que faz, né? O ministério que se preocupa com o direito da mulher, que se preocupa com as nossas questões…. É cara, hoje é um dia muito pesado viu, é um dia meio…

E após um breve silêncio, Criolo retorna uma valiosa mensagem de esperança:

— Mas a gente não pode baixar a cabeça cara, tem que ter serenidade sim, tem que ter muita serenidade, tem que ter esperança, fé. A gente não pode se deixar levar por uma onda negativa, por mais brutal que ela seja. É difícil falar em serenidade né, eu sei que é difícil, é difícil em épocas de guerra falar de amor. Sempre criticaram todos os homens que foram atrás da palavra amor no tempo do caos. E depois se percebeu que era assim o melhor caminho.

Criolo ainda pede para não nos desconectarmos da nossa esperança, da nossa fé e alerta: “O rap já avisou isso lá trás, já avisou a 30/40 anos que o rap tá falando, gritando berrando. E vamos continuar assim.

O rap que combate o ódio ao próximo

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Criolo na Virada Cultural 2016

A cada novo ano que chega, as pessoas tem ficado mais polarizadas, chegamos num ponto onde posições ideológicas ou políticas estão se tornando um fator decisivo pra manter relações amistoras. As redes sociais são a maior prova que isso tem gerado cada vez mais discursos de ódio contra o próximo. O que Criolo tem a dizer sobre a maré de ódio que a sociedade está surfando?

— O ódio não vai levar ninguém a nada, ódio só vai levar você a mais ódio. Ódio só leva a pessoa a um caminho de auto destruição. O rap tá falando isso a 40 anos aqui no Brasil. O rap nunca deixou de passar essa mensagem positiva, o rap nunca deixou de expressar todas as coisas erradas que acontecem sobretudo com os menos favorecidos.

— O rap, ao seu jeito, com a sua força, sempre procurou construir um ambiente com dialogo, de chamar atenção, fazer tudo pra quem também não tá muito afim desse diálogo. Mas só através do diálogo a gente vai conseguir construir algo. Mas um diálogo real.

— E ódio meu irmão, ódio só vai levar você e todos que tiverem perto de você a destruição. E ninguém quer isso, ninguém quer ver ninguém se destruir, entendeu. O rap não quer ver ninguém se destruindo, por mais que exista diferenças, por mais que exista uma série de barreiras, muitos brasis dentro de um Brasil, eu sempre vou enxergar o rap como uma energia que auxilia nesse processo de construção, de coisas positivas.

Muito obrigado pela entrevista Criolo!

— Eu que agradeço o rap, o rap é isso mano. Não tem competição no rap, o rap somos todos nós unidos. Cada um com sua sentença, com seu jeito de se expressar, cada um com o beat que lhe agrada, cada um com seu flow, cada um com seus temas, mas todos nos estamos reunidos numa boa energia. No final é isso man. O rap é união, o rap é união total, por respeito a todas as diferenças. O rap é uma música pra todos, a energia global. E isso gera melhoria pra todo mundo.